Tatuada no rosto do protagonista de “Skin - À Flor da Pele”, a imagem da seta para cima simboliza a sua disposição para “morrer pela raça branca”. A face do personagem traz várias figuras ameaçadoras, incluindo uma navalha aberta com sangue escorrendo na ponta. A inspiração foi o americano Bryon Widner, cofundador de uma gangue de “skinheads” conhecida como Vinlanders. Por mais dor que tenha sentido na cadeira do tatuador ao cobrir o rosto com símbolos racistas, apagá-los anos depois foi algo ainda mais agonizante para o ex-neonazista apelidado de “pit bull”. O processo de remoção foi iniciado em 2009, quando Widner, aos 32 anos, abandonou suas convicções e decidiu eliminar os traços dos 16 anos em que defendeu a suposta supremacia branca, escreve Elaine Guerini no Valor, em boa resenha publicada dia 8/1.
Em cartaz no Brasil desde ontem (7 de janeiro), “Skin” relembra o trajeto do americano para limpar o rosto. Foram 24 sessões de aplicação de laser, realizadas no período de um ano e meio, para remover as tatuagens do rosto, do couro cabeludo e do pescoço, o que deixou algumas feridas temporariamente em carne viva e uma conta de US$ 35 mil, paga graças a doações.
“Conhecer o verdadeiro Bryon Widner foi o que me ajudou a moldar o roteiro para termos tanto a transição física quanto mental do personagem”, disse o diretor e roteirista do filme, o israelense Guy Nattiv, durante a première europeia de “Skin”, em Berlim. Embora o título tenha estreado em alguns mercados em 2019, o longa demorou para desembarcar nos cinemas do Brasil e de outros países devido à pandemia.
“Para mostrar o amor, é preciso mostrar o ódio também”, diz Bell, o eterno menino bailarino de “Billy Elliot”, que quase se recusou a fazer “Skin”
Nattiv soube do “skinhead” que tinha deixado o ódio e a violência para trás em 2011, ao ler um artigo de jornal sobre o arrependimento do “pit bull” do Estado de Indiana. “Tanto a sua trajetória quanto as fotos publicadas, trazendo uma montagem com a evolução do procedimento que limpou a sua face, eram impressionantes.”
Também em 2011 um documentário sobre o ex-neonazista foi lançado, “Erasing Hate”, em que o diretor Bill Brummel o mostrava tentando reconstruir a sua vida. A produção, que desvendava um pouco do passado de Widner, enquanto ele se submetia ao tratamento doloroso para apagar as tatuagens, reforçou a vontade de Nattiv de contar a sua história. “Queria mergulhar mais no aspecto emocional, já que o foco do documentário caiu na transformação física visceral.”
Depois de três anos escrevendo o roteiro, Nattiv teve dificuldades para encontrar produtores dispostos a abraçarem o projeto - além da mulher, a produtora Jamie Ray Newman, de Detroit (Michigan). “Os demais produtores americanos não queriam fazer parte do filme, alegando que o extremismo praticamente não existia nos EUA. Diziam ser algo característico da região Centro-Oeste dos EUA.”
“Skin” só foi rodado em 2018, depois que manifestações dos supremacistas brancos passaram a representar uma ameaça. “O tom mudou após a eleição de Donald Trump como presidente (em 2016) e o episódio em Charlottesville (em 2017)”, afirmou Nattiv, referindo-se à marcha de integrantes da extrema-direita que resultou no atropelamento e na morte de uma mulher.
Assim que “Skin” começa, Bryon Widner (interpretado por Jamie Bell) ainda traz ódio em seu coração - algo que foi plantado por seus pais adotivos. O rapaz é mais uma vítima do casal de neonazistas Fred (Bill Camp) e Shareen (Vera Farmiga), que recruta adolescentes carentes brancos para a militância preconceituosa, seduzindo-os com comida, álcool e drogas.
Depois de se apaixonar pela mãe solteira Julie (Danielle Macdonald), que foi criada entre “skinheads”, mas conseguiu se afastar do movimento, Widner também resolve sair. Para sustentar a nova família, incluindo as três filhas de Julie e o bebê que está a caminho, ele tenta arrumar trabalho, mas só consegue alguns bicos com imigrantes ilegais - em parte pela má impressão que as suas tatuagens causam durante as entrevistas de emprego.
Para piorar, os pais adotivos de Widner não aceitam que ele simplesmente vire as costas. Depois de sofrer ameaças e até ataques, incluindo um episódio em que os supremacistas brancos atiram na sua casa, com a família dentro, Widner pede ajuda ao ativista político negro Daryle Jenkins (Mike Colter) e à agente do FBI Jackie Marks (Mary Stuart Masterson). Em troca, eles querem informações capazes de incriminar os Vinlanders.
“Quando conheci Bryon Widner, fui honesto. Queria que ele soubesse que eu não aprovava as suas escolhas”, contou o ator inglês Jamie Bell, em Berlim. Durante a preparação para as filmagens, ele chegou a se perguntar se valeria mesmo a pena colocar o ex-neonazista sob os holofotes. “Quase desisti, mas o diretor insistiu na importância de rodar a sua história. Para mostrar o amor, é preciso mostrar o ódio também.”
Vencedor do Bafta de melhor ator pelo papel-título de “Billy Elliot” (2000), Bell passou vários dias conversando com Widner, enfurnado em sua garagem. “Como ele está em programa de proteção a testemunhas, não pode fazer muitas coisas. Como ter passaporte ou ir e vir quando quiser. Vive constantemente com medo. Quando pedi que abrisse a porta da garagem, por ele fumar sem parar, não fui atendido. Ele disse que poderia levar um tiro.”
A transformação radical do ex-neonazista ainda deixa dúvidas na cabeça do ator. Não a metamorfose física, que o filme evoca pontualmente com cenas do tratamento com laser para apagar as tatuagens. Toda a narrativa é intercalada com imagens do protagonista sofrendo no consultório médico. “Se você tem tanto ódio, será que quase dois anos de tratamento para remover a tinta odiosa de sua pele pode realmente mudar o que você sente? Eu não tenho a resposta”, disse o ator.
Bell só pode testemunhar o que sentiu fazendo o movimento contrário, cobrindo o seu rosto e o corpo com tatuagens temporárias. Ele passou a filmagem inteira com elas na pele. Assim que o ator chegava ao set, a cada manhã, as figuras eram retocadas pela equipe de maquiagem.
“Dá para perceber como as tatuagens e a cabeça raspada mudam a nossa personalidade instantaneamente”, afirmou Bell, que precisou desses artifícios para se conectar com a essência de um “predador perverso”.
Para o ator, o mais assustador foi perceber como as pessoas fora do circuito das filmagens tinham medo dele. Sobretudo quando ele saía do set para almoçar no centro da cidade de Kingston, no Estado de Nova York, onde a produção foi rodada. “Quando eu olhava para os outros na rua, todos pareciam aterrorizados comigo, algo que nunca aconteceu em toda a minha vida. Geralmente é o oposto. Quem olha para mim logo pensa: ‘Ah, aquele garoto bailarino do filme [‘Billy Elliot]’. Tão fofo”, contou Jamie Bell, rindo.
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.