Novas variantes da Covid-19 podem levar a adaptações das vacinas, diz especialista do Imperial College
As novas variantes do SarsCov2 encontradas no Reino Unido, África do Sul e Brasil despertam preocupação. Se confirmadas que as mutações podem torná-las mais resistentes às vacinas que começam a ser aplicadas pelo mundo, é possível que os imunizantes precisem ser adaptados. Nada muito diferente do que os cientistas já fazem com a da gripe, ou influenza, que é feita para atacar quatro tipos distintos de vírus, segundo o epidemiologista do Imperial College Nuno Faria. Coordenador do Cadde, Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus, Faria é um dos coautores do estudo que mostrou que 76% da população de Manaus foi contaminada pelo novo coronavírus entre março e outubro de 2020, como antecipou a RFI. Segundo ele, ainda é cedo para confirmar que a cepa encontrada no Brasil está mais associada a reinfecções, ou se mata mais, como a britânica, como afirmou nesta sexta-feira (22) o primeiro-ministro, Boris Johnson. Mas não descarta que a variante encontrada na capital amazônica comece a circular pelo resto do país, reporta Vivian Oswald em entrevista com o pesquisador, publicada na edição desta semana da revista Época. Continua a seguir.
O governo britânico disse nesta sexta-feira que as vacinas que começam a ser aplicadas pelo mundo são eficazes contra a nova variante britânica do vírus, mas apontou incertezas em relação às cepas do Brasil e da África do Sul. Dá para dizer que não vão funcionar?
Nuno Faria - Toda a informação que temos no momento é de que a vacina vai funcionar em relação às variantes que existem no mundo. Mas é normal. Temos que pensar na evolução do vírus, como já fazemos com o da influenza, por exemplo, para o qual fazemos uma atualização das vacinas de uma forma relativamente constante, anual, bianual.
Isso é comum, então. É motivo de preocupação, mas não é o fim do mundo. Atualizar vacinas é mais fácil do que partir do zero, não?
NF - Bem mais fácil. Muito mais rápido. É uma questão de semanas para atualizar vacinas, de forma que elas consigam refletir a situação genética do vírus. Vejamos o caso da vacina da influenza, por exemplo, que dá proteção contra quatro tipos distintos de vírus (H3N2, H1N1, Victoria e Yamagata).
É possível fazer versões “personalizadas” das vacinas para atender países como o Brasil, a África do Sul ou o Reino Unido?
NF - Acho que isso é pouco viável. Até porque as variantes do vírus circulam por aí. A linhagem do Reino Unido já está presente em 44 países, enquanto a da África do Sul está em 17 países. A do Brasil é encontrada ainda no Japão e na Coreia do Sul.
Quando conversamos, no início de dezembro, falamos de estudo do Cadde, do qual você é coautor, que mostrava que 76% da população de Manaus foi contaminada entre março e outubro de 2020. Isso estaria próximo do percentual considerado necessário para a chamada imunidade de rebanho. Mesmo assim, o número de infecções voltou a crescer. O que isso significa? Que estamos de falando de reinfecções, ou a nova variante já circulava em Manaus?
NF - Como é um vírus relativamente recente, ninguém sabe em quanto tempo a infecção natural confere de proteção. Ou seja, quanto tempo dura imunidade.
Fala-se em três meses…
NF - Pelo menos três meses. Potencialmente é mais tempo. O que temos de olhar agora, retrospectivamente, em Manaus, especificamente, é que a primeira onda começou entre o fim de abril e início de maio. Já se passaram oito meses e agora estamos vendo esses casos. É possível, sim, que tenha havido uma perda de imunidade. O que se percebe com outros quatro coronavírus mais antigos, que circulam no mundo, sobre os quais há estudos, é que somos infectados frequentemente, anualmente até. Algumas pessoas são infectadas em apenas seis meses após a primeira infecção. Portanto, é possível que esses novos casos (de Manaus) tenham a ver com pessoas que já foram expostas ao vírus e que estão sendo reinfectadas. Na América Latina, há alguns lugares com as maiores estimativas e observações de seroprevalências do mundo. Temos lugares como Manaus, Loredo (no Peru), Leticia e outras cidades na Amazônia colombiana, onde se identificaram índices de contaminação acima de 60% em estudos populacionais. Há cada vez mais provas de que as altas seroprevalências podem se dever a algumas combinações de fatos. Grande proporção da população já foi exposta à primeira infecção. Isso é uma configuração única. Talvez haja outras regiões do mundo com seroprevalência semelhante, como algumas partes da Índia e África do Sul. Mas é difícil fazer estes estudos longitudinais. É caro. É necessário fazer mais pesquisas nessas regiões onde o SarsCov2 ataca mais depressa. Usá-las como modelo para prever o que vai acontecer em outras regiões onde a vacina ainda não tenha chegado.
Quantos porcento da população deveriam ter tido contato com o vírus para se obter a imunidade de rebanho?
NF - Até atingir imunidade de grupo, se estima que é preciso que grande parte da população tenha que ter sido vacinada ou exposta ao vírus. Normalmente, o percentual está acima de 70% e 80%. Nesses lugares, onde os percentuais de contaminação são elevados, talvez esses valores já tenham sido alcançados. Então é importante olharmos para esses lugares para tentar entender o que está realmente causando esse novo aumento de casos, especialmente Manaus. Provavelmente vamos ver daqui a algum tempo outras cidades conectadas à Manaus, que é a capital, é o grande centro urbano da Amazônia. As coisas acontecem lá primeiro. Há uma defasagem de tempo.
É com base nesses dados que poderemos saber se esse valor de 70% a 80% necessário para alcançar a imunidade de rebanho é maior no caso do coronavírus, ou se o problema foi de reinfecção porque o período de imunização é menor do que se imaginava?
NF - Exatamente. E também para sabermos se não há algo diferente em Manaus e que pode estar relacionado a essas novas linhagens. A nova linhagem de Manaus tem um conjunto de 17 mutações únicas, 10 das quais na proteína do spike, que permite a introdução do vírus nas células humanas. Mas três podem ter relevância biológica. Uma delas está presente tanto na variante do Reino Unido quanto na da África da Sul.
O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, confirmou nesta sexta-feira que a variante britânica é mais transmissível. Porém, até o momento, tudo indicaria que ainda é sensível à vacina. E as variantes do Brasil e da África do Sul?
NF - A mutação N501Y1 é encontrada tanto na variante do Reino Unido, quanto na da África do Sul, e ela está associada com uma maior transmissibilidade. Já a mutação E484K, encontrada nas cepas da África do Sul e na linhagem de Manaus estaria associada ao escape à imunidade e a taxas de reinfecção. É possível. Mas não temos dados suficientes ainda para confirmar.
Está confirmado que essas novas variantes são muito mais transmissíveis. Mas o que isso significa, que o vírus fica mais tempo em suspensão no ar, que vive mais tempo em superfícies?
NF - Essa é uma excelente pergunta. Acho que há uma combinação de fatores. Mas não há uma resposta exata por enquanto. Todas as medidas sugeridas desde o início da pandemia, e tem muita gente que não as cumpre à risca, como usar máscara — e você percebe isso olhando pela janela em Londres — ou lavar as mãos, precisam, mais do que nunca, ser respeitadas. Elas vão ser eficazes também contra as novas variantes. Elas já existiam, mas foram "relaxadas". Não se sabe ainda quanto tempo (as novas variantes) ficam no ar.
Você recomenda o uso de máscaras em áreas externas, por exemplo? A Alemanha passou inclusive a recomendar máscaras médicas para a população.
NF - As máscaras têm que ser obrigatórias. Eu, pessoalmente, acho que ajuda usar as máscaras nas áreas externas para parar a transmissão.
O governo britânico diz que há indícios de que as novas cepas não têm preferência etária, em comparação com a primeira, surgida há um ano, que atinge mais pessoas em faixas etárias mais altas. Vocês confirmam isso para as cepas de Manaus e África do Sul?
Ainda não dá para dizer. É muito cedo.
E elas matam mais? Os britânicos dizem que a variante do Reino Unido causaria de 13 a 14 óbitos para cada 1.000 infectados, quando a anterior causava 10. Ou seja, um aumento entre 30% e 40%.
Também não podemos dizer ainda (em relação às variações de Manaus). Essa informação não está disponível. Veja bem, os estudos no Reino Unido andam mais depressa. O primeiro caso da nova variante foi registrado em setembro de 2020. Eles têm 32 milhões de libras (cerca de R$ 239 milhões), no mínimo, para sequenciar as variantes. Mas, se aqui chegaram a essas informações em apenas três meses, é preciso ter um pouco de calma até que obtenhamos informação relevante e boa, quero dizer, uma amostragem mais universal para os outros. Quanto mais dados tivermos, mas precisão.
É inevitável que o vírus circule pelo Brasil, para além do entorno de Manaus a que você se referiu, não? Até porque não há políticas claras de lockdown no país.
NF - Sim, o vírus circula. Mas esta linhagem específica ainda não foi encontrada fora de Manaus. Temos que colocar em um contexto. No Brasil, foram encontrados 2.250 genomas. Vamos comparar com o melhor da turma. No Reino Unido, já são 200.000. Ou seja, 100 vezes mais. Eles podem detectar mais rápido, têm mais orçamento e mais investimentos em pesquisas. O país também é menor do que o Brasil, onde a questão social tem impacto (no que diz respeito a quem é testado, por exemplo). Mas começa pelas regiões próximas. Tem o tráfego aéreo. São Paulo é uma cidade muito conectada com Manaus, por exemplo. É um bom lugar para se procurar a nova variante.
Tudo isso reforça a ideia de que não há como personalizar por país, nem fechar fronteiras. A verdade é que ninguém estará imune se não houver uma vacina universal.
NF - O melhor é prevenir e arranjar uma vacina que funcione para todas as cepas, a mais abrangente possível. A vacina tem que ser universal. O acesso à vacina tem que ser global. Se a transmissão continuar em países do Sul, não vai ajudar nada a ninguém do resto do mundo. Tem que ser um esforço global, uma vacina para todos.
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