Pular para o conteúdo principal

Liberalismo e teocracia, por Contardo Calligaris

Na Folha de São Paulo, excelente reflexão do psicanalista Contardo Calligaris, vale a leitura.


Governo tenta censurar os costumes, as vidas e as artes de muitos

No começo do século 17, os puritanos ingleses achavam que a igreja da Inglaterra não se afastava o suficiente da igreja católica romana.
Alguns decidiram emigrar para as colônias americanas (Massachusetts).
Suposição lógica: quem atravessa o Atlântico para garantir a sua própria liberdade saberia respeitar a liberdade dos outros.
Não foi assim. Um dia, chegaram a Massachusetts Mary Fisher e Ann Austin; elas eram quakers e começaram a divulgar sua forma de cristianismo. Foram presas, e seus livros, queimados. Os puritanos, de qualquer forma, desconfiavam de mulheres em geral, como mostraram mais tarde, em Salem, enforcando 14 bruxas (e só cinco bruxos).
Enfim, os quakers, nas colônias americanas, comportaram-se de maneira mais lógica. Quando conseguiram o governo da Pensilvânia, eles a povoaram anunciando, Europa afora, o seguinte: quem fosse para lá teria aquela liberdade de culto e de vida que eles, os quakers, não tiveram quando chegaram às Américas.
A atitude dos quakers prevaleceu. A liberdade de culto, crenças, opiniões e costumes se tornou valor fundamental na Constituição dos Estados Unidos. Zelar pela liberdade de todos (inclusive dos que pensam muito diferente de você) é o melhor jeito de você preservar a sua própria liberdade de opinião, culto e vida.
Esse liberalismo nas crenças e nos costumes talvez seja, aliás, uma condição do sucesso do liberalismo econômico americano. Uma economia baseada na iniciativa dos indivíduos supõe que cada indivíduo seja livre de viver do seu jeito.
Justamente, o maior representante do liberalismo clássico, Ludwig von Mises, em “Ação Humana”, declarava-se neutro em relação às crenças religiosas, contanto que não se metessem na condução dos assuntos sociais, políticos e econômicos, mas ele era “radicalmente oposto a qualquer sistema de teocracia” —ou seja, a qualquer sociedade em que a autoridade fosse exercida em nome de um deus.
Ora, o governo brasileiro atual se declara liberal em economia, mas exala um bafo teocrático: em nome do deus de uma parte de sua base (população supostamente representada pela bancada evangélica),
tenta censurar os costumes, as vidas e as artes de muitos.
Os teocratas são bizarros: eles não defendem sua própria liberdade (que ninguém contesta), o que lhes importa é limitar a dos outros.
Exemplos: o prefeito Crivella quer impedir as crianças cariocas de verem um beijo gay. Um governante liberal deixaria soltos os beijos gays, mas não proibiria aos cariocas assistir à pregação do bispo Crivella e tampouco obrigaria Crivella a beijar homens, visto que ele não quer.
A ministra Damares, que se reuniu em Budapeste com representantes de governos que flertam com o autoritarismo, sonha com um Brasil de famílias todas heterossexuais, numerosas e cristãs do cristianismo dela, um Brasil em que homossexuais não poderiam se casar nem adotar crianças, um Brasil sem feminismo, sem intersexuais nem transexuais.
Num governo liberal, tudo o que ela sonha em proibir seria permitido, mas não por isso ela seria obrigada a frequentar clubes de suingue e se entregar a sexo selvagem; ao contrário, permaneceria livre para se dedicar aos estudos bíblicos.
Nossa maneira de viver (feita de crenças, regras e costumes) é sempre um sintoma, ou seja, um compromisso duplo: entre vários desejos conflitantes e entre esses desejos e as exigências repressivas,
internas e externas.
Agora, o que faz com que muitos indivíduos sejam seduzidos por um projeto totalitário, ou seja, pelo projeto de impor seu sintoma a todos os outros, como uma moral universal obrigatória?
Hannah Arendt dizia que a sedução exercida pelos totalitarismos estava em suas ideologias, por elas fornecerem respostas reconfortantes aos mistérios da vida. Para o nazismo, toda a história é conflito de raças; para o comunismo, é luta de classes e, eu acrescentaria, para as teocracias, é expressão da vontade divina.
Continuando nessa direção, a sanha missionária serve aos teocratas para situar nos outros (nos “infiéis”) todos os “pecados” aos quais eles mal conseguem resistir. Tenho tentações inconfessáveis e irresistíveis? Policiando os outros cultivo a ilusão de conseguir policiar a mim mesmo.
Também, na sanha missionária, esqueço meus desejos e me confundo com meu grupo de assanhados.
Descanso assim de ser um indivíduo pensante e de fazer minhas próprias escolhas morais.

by Contardo Calligaris, psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...