Um tema sensível e preocupante em excelente matéria do Valor Econômico. Na íntegra:
Corrigir trabalhos escolares sempre foi uma tarefa trivial para Fernanda Freitas, de 28 anos, supervisora pedagógica do Centro Educacional Gesner Teixeira, escola pública localizada no Gama, bairro da periferia de Brasília. Foi assim até o dia em que ela tomou um choque diante da página aberta de um caderno. Nela, lia-se: “A única saída é me matar”. “Na verdade, nem me lembro exatamente da frase”, diz Fernanda. “Mas era um recado, um pedido de socorro feito por uma aluna.” A professora, então, decidiu se aproximar da autora da “mensagem”, uma garota de apenas 13 anos. Até aí, ela acreditava que estava puxando o fio de um problema isolado, pontual. “Mas o que veio atrás foi algo inacreditável”, observa a educadora.
Em pouco tempo, Fernanda descobriu quase uma dezena de casos de alunos que, como dizem os adolescentes, “estavam se cortando”. Ou seja, praticavam a automutilação, em que infligem ferimentos, em geral, cortes, ao próprio corpo. Houve uma adolescente que quebrou o apontador do lápis, retirou-lhe a lâmina e se feriu no banheiro do colégio. As colegas viram a cena e pediram que ela parasse. Duas outras meninas tentaram suicídio.
Diante de tantos problemas, a escola organizou uma “roda”, na qual os estudantes que apresentam quadros de depressão, ainda que tênues, passaram a conversar com psicólogos. Ela funciona uma vez por semana e tem 32 integrantes. “Mas existem perto de 50 alunos na fila de espera”, afirma a professora. “A sensação é aquela de enxugar gelo. Ajudamos alguns meninos e meninas, eles melhoram, mas logo aparecem outros na mesma situação.”
Da mesma forma que o caso da primeira estudante abordada por Fernanda Freitas não era único, a situação da escola brasiliense nada tem de singular. Ela representa parte de um problema cujas dimensões não estão nítidas no Brasil, mas seus sinais são inequívocos - e contundentes. Dados do Ministério da Saúde indicam que, entre entre 2011 e 2018, último dado disponível, ocorreram 339.730 “lesões autoprovocadas” no país. Essa categoria inclui autoagressões, automutilações e tentativas de suicídio. As ocorrências concentraram-se nas faixas etárias de 15 a 29 anos (45,4% do total). Na série histórica, o que chama atenção é o salto das cifras. Em oito anos, os casos passaram de 14.940, em 2011, para 95.061, em 2018. Houve, portanto, um crescimento de 536%, sendo 570% entre as mulheres e 472% entre os homens.
Parece ruim. Mas é pior. Em uníssono, os especialistas afirmam que tais números estão subestimados. Há fartura de subnotificações desses episódios, principalmente em se tratando das autolesões. Foi na tentativa de cobrir esse vazio de dados que o governo federal sancionou, no fim de abril, o Plano Nacional de Prevenção à Automutilação e ao Suicídio. Ele torna obrigatória a notificação dessas ocorrências (os chamados “cortes”) por parte de escolas públicas e privadas no país. Hoje, tal exigência limita-se a órgãos de saúde, como hospitais. Os novos casos também terão de ser encaminhados aos conselhos tutelares dos municípios. A lei precisa ser regulamentada - e desperta polêmica (que será discutida adiante) -, mas, para se ter uma ideia do que pode surgir de uma observação mais acurada desse fenômeno, considere estes três relatos:
1) Leila Tardivo é professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Há cerca de três anos, visitou três colégios públicos na capital paulista. Neles, falou sobre temas como bullying para estudantes com idades entre 10 e 14 anos. Nas palestras, com frequência, era bombardeada com perguntas sobre automutilação. “Comecei a me questionar sobre o estava acontecendo. Eu conhecia o problema, mas não sabia que atingia crianças tão pequenas”, afirma. “Resolvi estudar o assunto. Em pouco tempo, surgiram 42 casos de autolesões somente nessas três escolas e envolvendo meninas e meninos nessa faixa etária. Foi tudo muito rápido e surpreendente.”
2) Entre 2016 e 2017, a socióloga Miriam Abramovay, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), realizou pesquisas qualitativas com estudantes do ensino médio, com idades entre 15 e 19 anos em Porto Alegre (RS) e em Fortaleza (CE). O objetivo do trabalho era colher dados para um estudo sobre a violência nas escolas. Em determinado momento, o tema da automutilação emergiu. “Veio com uma força impressionante e nas duas cidades”, diz Miriam. “Foi uma catarse. Os jovens choravam tanto enquanto falavam das autolesões que nós tivemos de levar caixas e mais caixas de lenços de papel para as reuniões.”
3) Jackeline Giusti, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC), em São Paulo, ouviu falar de um episódio de automutilação - e envolvia um adulto - em 2005. Interessou-se pelo assunto a ponto de transformá-lo em sua tese de doutorado. Precisou de cinco anos para reunir 40 casos de estudo. “Hoje, conseguiria a mesma quantidade em menos de um ano”, diz. No ambulatório do IPq-HC, há mais jovens envolvidos com autolesões do que com drogas. “Eles representam perto de 80% dos atendimentos”, afirma Jackeline. No consultório, a situação é similar: “A maioria dos adolescentes em tratamento se cortou ao menos uma vez.”
Embora o Brasil não apresente números sólidos sobre o fenômeno, que ganha destaque em seriados como o polêmico “Euphoria”, da HBO, eles abundam nos EUA. Um estudo publicado no ano passado no “American Journal of Public Health”, produzido por pesquisadores da Universidade de Portland, analisou dados de 64.671 estudantes com idades entre 14 e 18 anos em 11 Estados americanos. Constatou que, em média, 17,6% dos entrevistados haviam praticado pelo menos um ato de automutilação no ano anterior ao levantamento. Em Idaho, o índice chegou a 31%. Ou seja, ali, Ou seja, ali, três em cada dez jovens já haviam se “cortado”.
Esse comportamento é conhecido pelos especialistas. A autolesão é mais comum na faixa etária de 14 a 18 anos e entre meninas - em média, uma em cada quatro, segundo o estudo americano. “Mas já vi casos de crianças com 10 anos”, diz o psiquiatra Olavo Campos Pinto, ex-professor da Universidade da Califórnia, em San Diego, para quem o problema se tornou uma “epidemia” no Brasil. Mas o leque de idades dos praticantes é amplo. Recentemente, a psicóloga carioca Elisa Bichels, especializada no atendimento de adolescentes, passou a receber em seu consultório, no Rio, adultos que se cortam há décadas. “Fiquei surpresa”, diz ela. “Eles têm entre 30 e 40 anos e são pessoas bem-sucedidas.”
As formas mais comuns de automutilação são os cortes, seguidos pelas queimaduras, mas há um sem-número de variações sobre esses temas. A prática pode estar associada a transtornos de personalidade borderline ou ciclotímica, depressão, ansiedade e estresse pós-traumático. Isso além de situações de abuso e violência familiar. As lesões não têm intenção suicida, embora erros ou exageros nos cortes possam levar à morte. “Em geral, ocorre o contrário”, diz Elisa. “As pessoas se machucam depois de um esvaziamento afetivo atroz. O que querem é sentir alguma coisa.” Em geral, elas têm grande dificuldade de lidar com frustrações.
Os cortes buscam uma forma de alívio para um sofrimento psíquico. A dor física, nesse caso, sobrepõe-se à emocional. Acredita-se que o ato produza uma descarga química reconfortante. “Nós falamos muito em dores como a do parto, das hérnias e das cólicas renais”, afirma Campos Pinto. “Tudo isso, claro, é muito dolorido, mas nada se compara à dor psíquica. Ela leva o ser humano a sofrimentos inimagináveis. Daí a tentativa de conseguir algum abrandamento com os cortes.”
Elisa Bichels e Campos Pinto mantêm clínicas no Rio e lidam com frequência com jovens de classe média alta que recorrem à autolesão. O esgarçamento das relações familiares é comum nesse grupo. “Os pais querem filhos vencedores, brilhantes, maravilhosos”, diz Campos Pinto. “Lamento dizer, mas isso não serve para nada. Pais existem para as horas difíceis e os filhos precisam ser acolhidos.” Para Elisa, outro problema comum é o descompasso de visões de mundo. “As gerações mais velhas foram feitas para produzir e esse objetivo que não seduz os mais jovens”, pondera. “A meninada pode não estar queimando sutiãs ou fazendo protestos, mas não quer seguir esse caminho. Quer ter propósito nas coisas que faz.”
A agravante é que as automutilações representam apenas um dos lados de um problema multifacetado e mais complexo. Os brasileiros lideram o ranking de ansiedade da Organização Mundial de Saúde (OMS). Ocupam ainda o quinto posto entre as nações com maior número de deprimidos. Para nublar ainda mais o quadro, entre 2000 e 2012, quase metade das 172 nações que fazem parte da OMS registrou quedas superiores a 10% nas taxas de suicídio. Aqui, deu-se o contrário. Houve acréscimo de 10,4%.
“O mais preocupante é que crescimento dessas mortes foi maior entre os mais jovens”, diz a demógrafa e antropóloga Sandra Garcia, do Núcleo de População e Sociedade do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Pesquisa do Cebrap, em parceria com o Núcleo de Estudos da População Elza Berquó, da Unicamp, indica que a elevação desses casos foi de 40% na faixa etária de 10 a 14 anos.
A questão, portanto, é: o que está acontecendo? Não há uma explicação linear. Suicídios, automutilações, depressão e ansiedade são multifatoriais. Não é possível enxergá-los abrindo uma só janela, acendendo um único holofote. Eles sofrem a influência de elementos biológicos, genéticos, ambientais (socioeconômicos, por exemplo), além de vulnerabilidades provocadas pela violência, conflitos familiares, ou mesmo doenças crônicas incapacitantes. Existem, contudo, fatores que os potencializam.
Há fortes indícios de que a tecnologia, ou, mais especificamente, a alta conectividade, é um deles. São numerosos os estudos acadêmicos que sugerem uma relação direta entre o uso prolongado de redes sociais, computadores e televisão com quadros depressivos entre adolescentes. Um trabalho publicado no ano passado pelo jornal “Preventive Medicine Reports”, editado pela Elsevier, indica que as chances de um diagnóstico de depressão ou ansiedade dobram em jovens que passam sete horas ou mais por dia diante dessas telas. Isso em comparação com aqueles que gastam somente uma hora com esse tipo de atividade. Tal constatação não quer dizer que as redes provocam os transtornos, mas que um tempo tão longo de conexão - e de isolamento - pode ser um sinal de problemas.
No Canadá, uma pesquisa feita com 3,8 mil jovens de 12 a 16 anos aponta que a depressão e a ansiedade também podem estar associadas a comportamentos típicos das plataformas digitais. Isso inclui a busca desesperada por “likes” e a comparação entre padrões de vida nas imagens postadas nas redes, algo que torna o usuário hipersensível ao juízo alheio. “As pessoas ficam expostas a uma ‘felicidade tóxica’”, diz a psicóloga Karen Scavacini, do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, em São Paulo. “Veem gente feliz, festas, alegria permanente. Mas aquilo não é, necessariamente, real.”
A proliferação na web de conteúdos sobre suicídios e automutilações, o que inclui exemplos e até lições sobre como praticá-los (a garotada chega a comemorar o aniversário de cortes em redes sociais), é outro fator de propulsão desses comportamentos. Ela provoca um “efeito contágio”, cujo resultado pode ser a glamorização desses atos ou a sua normalização como uma forma legítima para lidar com frustrações. Em 1974, o pesquisador americano David Phillips cunhou o termo “efeito Werther” para identificar essa influência. Trata-se de uma referência ao protagonista da obra “O Sofrimento do Jovem Werther”, de Goethe, publicado em 1774. Impedido de consumar seu amor, o personagem se mata. O desfecho trágico da história teria provocado uma série de suicídios na Europa. O mesmo teria acontecido, apontam estudos, após a morte de atores como Marilyn Monroe, em 1962, e Robin Willians, em 2014.
As redes sociais conhecem o problema. O Instagram e o Facebook informaram que coíbem a circulação de conteúdo que incentive suicídios ou autolesões por meio de denúncias e do uso de filtros tecnológicos. Imagens com cortes de automutilação são proibidas mesmo em contextos de ajuda ou conscientização. O Instagram também iniciou um teste no Brasil por meio do qual passou a remover o número de “curtidas” em fotos e vídeos, para diminuir a ansiedade daqueles que querem ganhar popularidade na rede. “Não queremos que as pessoas sintam que estão numa competição”, diz Natália Paiva, gerente de políticas públicas para a América Latina da empresa. Mas, ainda assim, é praticamente impossível conter a criatividade dos internautas quando o tema é burlar regras on-line.
A abordagem sociológica dos transtornos mentais, consagrada por Émile Durkheim, autor de “O Suicídio”, de 1897, acrescenta outras externalidades que acentuam a incidência desses problemas em grupos, ou mesmo em nações. O filósofo francês advertiu que isso aconteceria tanto pela perda de coesão social ou, ao contrário, pela integração excessiva (como entre militares), onde se desenvolve o gosto pela impessoalidade, pela renúncia e pela obediência passiva. As taxas de suicídio, advertiu Durkheim, poderiam ainda crescer em períodos de crises políticas e econômicas.
Estudos realizados pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostram que, entre 2006 e 2015, as taxas de suicídio entre adolescentes no Brasil aumentaram 24%. Tal crescimento foi associado a níveis mais altos de desemprego. Os dados sobre as mortes foram cruzados com indicadores como o PIB e a desigualdade social (medida pelo coeficiente de Gini). “Sentimentos de desesperança e inutilidade, frequentes em quadros depressivos, são vistos como mecanismos psicológicos que despertam o comportamento suicida”, diz o psiquiatra Elson Asevedo, um dos autores do trabalho. “Esses sentimentos parecem comuns na geração de jovens desalentados, sem propósitos claros, que nem trabalham nem estudam.”
Asevedo, contudo, considera que o fator mais dramático para a explosão dos casos de transtornos psíquicos no Brasil é a desassistência. “Por princípio, todo suicídio é uma morte que poderia ser evitada”, diz. “Ele é a última consequência de um problema que pode ser tratado. E existem tratamentos eficazes, mas não chegam às pessoas.” O país, por exemplo, oferece 0,041 leitos psiquiátricos em hospitais públicos e privados por mil habitantes. O mínimo recomendado pela OMS é de 0,45. Países como a Inglaterra e o Canadá têm 0,59 e 1,9, respectivamente. “Essa situação é consequência de uma política equivocada que, no passado, priorizou apenas serviços comunitários”, acrescenta o médico. “Ter serviços é importante, mas a assistência precisa ser feita em todos os níveis.”
Além do mais, a ciência tem comprovado que os transtornos mentais podem ser identificados na infância por meio de manifestações inespecíficas como a agitação, a agressividade e a dificuldade de aprendizado. Em tese, isso permitiria a realização de diagnósticos precoces. Mas eles são raros. “Em países desenvolvidos, cerca de 35% das crianças com esses problemas recebem tratamento”, diz Guilherme Polanczyk, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP). “No Brasil, são 18%.”
Ainda que nações ricas tenham deficiências técnicas e estruturais menos gritantes, elas também enfrentam grandes desafios nesse campo. Nos EUA, os suicídios entre jovens de 15 a 24 anos voltaram a crescer desde 2008, após uma queda na década de 1990. Nessa época, os casos somavam pouco menos de 10 em 100 mil habitantes. Em 2017, eram 14,5 em 100 mil. Há mais. Como adverte o escritor Andrew Solomon, em “O Demônio do Meio-Dia”, metade dos americanos pode apresentar sintomas de depressão durante a vida. Mais de 3% da população sofre da versão crônica da doença, sendo que 2 milhões são crianças. Mas apenas 6% dos deprimidos recebem um tratamento adequado.
As mortes por suicídio são ainda especialmente severas em grupos que sofrem processos de aculturação ou amargam o descaso. Essa mortalidade é enorme, por exemplo, entre indígenas em todo o mundo. No Brasil, ela atinge a taxa de 23,1 óbitos por 100 mil habitantes entre índios, sendo que o indicador para homens brancos é de 9,5 (menos da metade), de e 7,6 para negros. A média nacional é de 5,8 óbitos para 100 mil habitantes. Nos povos indígenas, a situação dos jovens também choca: 44,8% dos suicidas têm entre 10 e 19 anos.
Reverter esses quadros não é tarefa simples. No que se refere aos jovens e adolescentes, os especialistas advertem que qualquer saída passa pela difusão de informações de qualidade sobre esses temas. Isso ocorre em especial neste mês, quando entidades que lidam com esses problemas promovem uma campanha de conscientização chamada Setembro Amarelo. A ideia, no entanto, é não gerar com essas discussões o “efeito Werther”, mas, sim, seu antídoto: o “efeito Papageno”, personagem de “A Flauta Mágica”, a ópera de Mozart, que é dissuadido de se matar por três espíritos. O envolvimento das escolas nessas discussões é considerado crucial. Foi isso o que aconteceu no Centro Educacional Gesner Teixeira, em Brasília, citado no início desta reportagem. Ali, embora o problema tenha adquirido proporções inesperadas, ele foi enfrentado por iniciativa de um grupo de professores. O trabalho rendeu ao colégio um prêmio concedido pela Controladoria-Geral do Distrito Federal.
No médio prazo, o debate sobre transtornos psíquicos pode se tornar inevitável nos estabelecimentos de ensino. Isso por conta da vigência do Plano Nacional de Prevenção à Automutilação e ao Suicídio, que está sendo regulamentado. Ele prevê, como mencionado, a obrigatoriedade da notificação de casos desse tipo por parte das escolas. Elson Asevedo, da Unifesp, considera a lei positiva sob o ponto de vista de saúde pública. “Ela pode nos dar dados que hoje não temos, principalmente sobre as automutilações”, diz. “A questão é saber como as notificações serão feitas sem que as pessoas envolvidas sejam estigmatizadas.” Marcelo Dias, secretário-adjunto substituto do Ministério da Família, observa que esses informes serão sigilosos. “Isso está definido”, afirma Dias. “Mesmo porque o objetivo da lei é colher informações que nos ajudem a formular políticas públicas e sensibilizem a sociedade para esses temas. Hoje, até profissionais de saúde têm pouca familiaridade com assuntos como as automutilações.”
O Ministério da Saúde pensou em rever a metodologia de produção de dados sobre suicídios no Brasil. A mudança poderia alterar os dados disponíveis. Segundo os padrões atuais, a taxa média de mortes desse tipo por 100 mil habitantes foi de 5,5 em 2014; de 5,7, em 2015; e de 5,8, em 2016. Com a revisão, ficariam, respectivamente, em 6,7; 7,2; e 7,1. Mas a área técnica do órgão desistiu da reavaliação.
O que assusta atualmente os especialistas, contudo, não são apenas as variações estatísticas do tema, ainda que tenham impacto sobre estudos e pesquisas. A maior parte deles está preocupada com um agravamento dos índices de suicídio por causa de uma maior disponibilidade de armas no país. “O ato de tirar a própria vida é, por princípio, o resultado de um impulso”, afirma Guilherme Polanczyk, da Faculdade de Medicina da USP. “É a existência de uma oportunidade que vai definir se ele será consumado ou não.” As armas, no caso, oferecem essa possibilidade. E são instrumentos de extremamente letais. Nos EUA, respondem por 46% dos óbitos nesses episódios. Em outros países de alta renda, mas que restringem o uso de armas, esse número cai para 4,5%.
Outros elementos, que vão das incertezas a questões culturais, também atuam nas engrenagens desse cenário. “Os dados disponíveis indicam que 30% da população global, em algum momento da vida, vai passar por um episódio grave de transtorno, o que poderia incluir, a título de exemplo, a insônia”, afirma o psiquiatra Mário Eduardo Costa Pereira, professor da Faculdade de Medicina da Unicamp. “Isso nos leva à pergunta: que mundo é este no qual as pessoas nem sequer conseguem dormir?”. Em grande medida, acrescenta Pereira, podemos estar revivendo o que Freud chamou de “mal-estar da civilização”, em que o indivíduo é oprimido em suas pulsões e vive um incomodo permanente.
Pereira diz acreditar que, nestes tempos líquidos, as utopias fazem falta. “Ninguém acha mais possível criar um mundo transcendente ou poético”, diz. “A ecologia surgiu como uma alternativa, um plano B, para as sociedades, mas nem a possibilidade de detonarmos o planeta parece ter força para frear processos marcados por um individualismo extremo.” Hoje, observa, as pessoas vão ao consultório de um psiquiatra e pedem: “Aplaca meu sofrimento com remédios e me coloca para produzir amanhã.” E conclui: “Se esse for o critério de bem-estar, vai ficar difícil alterar os quadros de depressão.” De fato, com todo esse barulho, não vai ser fácil dormir.
Corrigir trabalhos escolares sempre foi uma tarefa trivial para Fernanda Freitas, de 28 anos, supervisora pedagógica do Centro Educacional Gesner Teixeira, escola pública localizada no Gama, bairro da periferia de Brasília. Foi assim até o dia em que ela tomou um choque diante da página aberta de um caderno. Nela, lia-se: “A única saída é me matar”. “Na verdade, nem me lembro exatamente da frase”, diz Fernanda. “Mas era um recado, um pedido de socorro feito por uma aluna.” A professora, então, decidiu se aproximar da autora da “mensagem”, uma garota de apenas 13 anos. Até aí, ela acreditava que estava puxando o fio de um problema isolado, pontual. “Mas o que veio atrás foi algo inacreditável”, observa a educadora.
Em pouco tempo, Fernanda descobriu quase uma dezena de casos de alunos que, como dizem os adolescentes, “estavam se cortando”. Ou seja, praticavam a automutilação, em que infligem ferimentos, em geral, cortes, ao próprio corpo. Houve uma adolescente que quebrou o apontador do lápis, retirou-lhe a lâmina e se feriu no banheiro do colégio. As colegas viram a cena e pediram que ela parasse. Duas outras meninas tentaram suicídio.
Diante de tantos problemas, a escola organizou uma “roda”, na qual os estudantes que apresentam quadros de depressão, ainda que tênues, passaram a conversar com psicólogos. Ela funciona uma vez por semana e tem 32 integrantes. “Mas existem perto de 50 alunos na fila de espera”, afirma a professora. “A sensação é aquela de enxugar gelo. Ajudamos alguns meninos e meninas, eles melhoram, mas logo aparecem outros na mesma situação.”
Da mesma forma que o caso da primeira estudante abordada por Fernanda Freitas não era único, a situação da escola brasiliense nada tem de singular. Ela representa parte de um problema cujas dimensões não estão nítidas no Brasil, mas seus sinais são inequívocos - e contundentes. Dados do Ministério da Saúde indicam que, entre entre 2011 e 2018, último dado disponível, ocorreram 339.730 “lesões autoprovocadas” no país. Essa categoria inclui autoagressões, automutilações e tentativas de suicídio. As ocorrências concentraram-se nas faixas etárias de 15 a 29 anos (45,4% do total). Na série histórica, o que chama atenção é o salto das cifras. Em oito anos, os casos passaram de 14.940, em 2011, para 95.061, em 2018. Houve, portanto, um crescimento de 536%, sendo 570% entre as mulheres e 472% entre os homens.
Parece ruim. Mas é pior. Em uníssono, os especialistas afirmam que tais números estão subestimados. Há fartura de subnotificações desses episódios, principalmente em se tratando das autolesões. Foi na tentativa de cobrir esse vazio de dados que o governo federal sancionou, no fim de abril, o Plano Nacional de Prevenção à Automutilação e ao Suicídio. Ele torna obrigatória a notificação dessas ocorrências (os chamados “cortes”) por parte de escolas públicas e privadas no país. Hoje, tal exigência limita-se a órgãos de saúde, como hospitais. Os novos casos também terão de ser encaminhados aos conselhos tutelares dos municípios. A lei precisa ser regulamentada - e desperta polêmica (que será discutida adiante) -, mas, para se ter uma ideia do que pode surgir de uma observação mais acurada desse fenômeno, considere estes três relatos:
1) Leila Tardivo é professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Há cerca de três anos, visitou três colégios públicos na capital paulista. Neles, falou sobre temas como bullying para estudantes com idades entre 10 e 14 anos. Nas palestras, com frequência, era bombardeada com perguntas sobre automutilação. “Comecei a me questionar sobre o estava acontecendo. Eu conhecia o problema, mas não sabia que atingia crianças tão pequenas”, afirma. “Resolvi estudar o assunto. Em pouco tempo, surgiram 42 casos de autolesões somente nessas três escolas e envolvendo meninas e meninos nessa faixa etária. Foi tudo muito rápido e surpreendente.”
2) Entre 2016 e 2017, a socióloga Miriam Abramovay, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), realizou pesquisas qualitativas com estudantes do ensino médio, com idades entre 15 e 19 anos em Porto Alegre (RS) e em Fortaleza (CE). O objetivo do trabalho era colher dados para um estudo sobre a violência nas escolas. Em determinado momento, o tema da automutilação emergiu. “Veio com uma força impressionante e nas duas cidades”, diz Miriam. “Foi uma catarse. Os jovens choravam tanto enquanto falavam das autolesões que nós tivemos de levar caixas e mais caixas de lenços de papel para as reuniões.”
3) Jackeline Giusti, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC), em São Paulo, ouviu falar de um episódio de automutilação - e envolvia um adulto - em 2005. Interessou-se pelo assunto a ponto de transformá-lo em sua tese de doutorado. Precisou de cinco anos para reunir 40 casos de estudo. “Hoje, conseguiria a mesma quantidade em menos de um ano”, diz. No ambulatório do IPq-HC, há mais jovens envolvidos com autolesões do que com drogas. “Eles representam perto de 80% dos atendimentos”, afirma Jackeline. No consultório, a situação é similar: “A maioria dos adolescentes em tratamento se cortou ao menos uma vez.”
Embora o Brasil não apresente números sólidos sobre o fenômeno, que ganha destaque em seriados como o polêmico “Euphoria”, da HBO, eles abundam nos EUA. Um estudo publicado no ano passado no “American Journal of Public Health”, produzido por pesquisadores da Universidade de Portland, analisou dados de 64.671 estudantes com idades entre 14 e 18 anos em 11 Estados americanos. Constatou que, em média, 17,6% dos entrevistados haviam praticado pelo menos um ato de automutilação no ano anterior ao levantamento. Em Idaho, o índice chegou a 31%. Ou seja, ali, Ou seja, ali, três em cada dez jovens já haviam se “cortado”.
Esse comportamento é conhecido pelos especialistas. A autolesão é mais comum na faixa etária de 14 a 18 anos e entre meninas - em média, uma em cada quatro, segundo o estudo americano. “Mas já vi casos de crianças com 10 anos”, diz o psiquiatra Olavo Campos Pinto, ex-professor da Universidade da Califórnia, em San Diego, para quem o problema se tornou uma “epidemia” no Brasil. Mas o leque de idades dos praticantes é amplo. Recentemente, a psicóloga carioca Elisa Bichels, especializada no atendimento de adolescentes, passou a receber em seu consultório, no Rio, adultos que se cortam há décadas. “Fiquei surpresa”, diz ela. “Eles têm entre 30 e 40 anos e são pessoas bem-sucedidas.”
As formas mais comuns de automutilação são os cortes, seguidos pelas queimaduras, mas há um sem-número de variações sobre esses temas. A prática pode estar associada a transtornos de personalidade borderline ou ciclotímica, depressão, ansiedade e estresse pós-traumático. Isso além de situações de abuso e violência familiar. As lesões não têm intenção suicida, embora erros ou exageros nos cortes possam levar à morte. “Em geral, ocorre o contrário”, diz Elisa. “As pessoas se machucam depois de um esvaziamento afetivo atroz. O que querem é sentir alguma coisa.” Em geral, elas têm grande dificuldade de lidar com frustrações.
Os cortes buscam uma forma de alívio para um sofrimento psíquico. A dor física, nesse caso, sobrepõe-se à emocional. Acredita-se que o ato produza uma descarga química reconfortante. “Nós falamos muito em dores como a do parto, das hérnias e das cólicas renais”, afirma Campos Pinto. “Tudo isso, claro, é muito dolorido, mas nada se compara à dor psíquica. Ela leva o ser humano a sofrimentos inimagináveis. Daí a tentativa de conseguir algum abrandamento com os cortes.”
Elisa Bichels e Campos Pinto mantêm clínicas no Rio e lidam com frequência com jovens de classe média alta que recorrem à autolesão. O esgarçamento das relações familiares é comum nesse grupo. “Os pais querem filhos vencedores, brilhantes, maravilhosos”, diz Campos Pinto. “Lamento dizer, mas isso não serve para nada. Pais existem para as horas difíceis e os filhos precisam ser acolhidos.” Para Elisa, outro problema comum é o descompasso de visões de mundo. “As gerações mais velhas foram feitas para produzir e esse objetivo que não seduz os mais jovens”, pondera. “A meninada pode não estar queimando sutiãs ou fazendo protestos, mas não quer seguir esse caminho. Quer ter propósito nas coisas que faz.”
A agravante é que as automutilações representam apenas um dos lados de um problema multifacetado e mais complexo. Os brasileiros lideram o ranking de ansiedade da Organização Mundial de Saúde (OMS). Ocupam ainda o quinto posto entre as nações com maior número de deprimidos. Para nublar ainda mais o quadro, entre 2000 e 2012, quase metade das 172 nações que fazem parte da OMS registrou quedas superiores a 10% nas taxas de suicídio. Aqui, deu-se o contrário. Houve acréscimo de 10,4%.
“O mais preocupante é que crescimento dessas mortes foi maior entre os mais jovens”, diz a demógrafa e antropóloga Sandra Garcia, do Núcleo de População e Sociedade do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Pesquisa do Cebrap, em parceria com o Núcleo de Estudos da População Elza Berquó, da Unicamp, indica que a elevação desses casos foi de 40% na faixa etária de 10 a 14 anos.
A questão, portanto, é: o que está acontecendo? Não há uma explicação linear. Suicídios, automutilações, depressão e ansiedade são multifatoriais. Não é possível enxergá-los abrindo uma só janela, acendendo um único holofote. Eles sofrem a influência de elementos biológicos, genéticos, ambientais (socioeconômicos, por exemplo), além de vulnerabilidades provocadas pela violência, conflitos familiares, ou mesmo doenças crônicas incapacitantes. Existem, contudo, fatores que os potencializam.
Há fortes indícios de que a tecnologia, ou, mais especificamente, a alta conectividade, é um deles. São numerosos os estudos acadêmicos que sugerem uma relação direta entre o uso prolongado de redes sociais, computadores e televisão com quadros depressivos entre adolescentes. Um trabalho publicado no ano passado pelo jornal “Preventive Medicine Reports”, editado pela Elsevier, indica que as chances de um diagnóstico de depressão ou ansiedade dobram em jovens que passam sete horas ou mais por dia diante dessas telas. Isso em comparação com aqueles que gastam somente uma hora com esse tipo de atividade. Tal constatação não quer dizer que as redes provocam os transtornos, mas que um tempo tão longo de conexão - e de isolamento - pode ser um sinal de problemas.
No Canadá, uma pesquisa feita com 3,8 mil jovens de 12 a 16 anos aponta que a depressão e a ansiedade também podem estar associadas a comportamentos típicos das plataformas digitais. Isso inclui a busca desesperada por “likes” e a comparação entre padrões de vida nas imagens postadas nas redes, algo que torna o usuário hipersensível ao juízo alheio. “As pessoas ficam expostas a uma ‘felicidade tóxica’”, diz a psicóloga Karen Scavacini, do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, em São Paulo. “Veem gente feliz, festas, alegria permanente. Mas aquilo não é, necessariamente, real.”
A proliferação na web de conteúdos sobre suicídios e automutilações, o que inclui exemplos e até lições sobre como praticá-los (a garotada chega a comemorar o aniversário de cortes em redes sociais), é outro fator de propulsão desses comportamentos. Ela provoca um “efeito contágio”, cujo resultado pode ser a glamorização desses atos ou a sua normalização como uma forma legítima para lidar com frustrações. Em 1974, o pesquisador americano David Phillips cunhou o termo “efeito Werther” para identificar essa influência. Trata-se de uma referência ao protagonista da obra “O Sofrimento do Jovem Werther”, de Goethe, publicado em 1774. Impedido de consumar seu amor, o personagem se mata. O desfecho trágico da história teria provocado uma série de suicídios na Europa. O mesmo teria acontecido, apontam estudos, após a morte de atores como Marilyn Monroe, em 1962, e Robin Willians, em 2014.
As redes sociais conhecem o problema. O Instagram e o Facebook informaram que coíbem a circulação de conteúdo que incentive suicídios ou autolesões por meio de denúncias e do uso de filtros tecnológicos. Imagens com cortes de automutilação são proibidas mesmo em contextos de ajuda ou conscientização. O Instagram também iniciou um teste no Brasil por meio do qual passou a remover o número de “curtidas” em fotos e vídeos, para diminuir a ansiedade daqueles que querem ganhar popularidade na rede. “Não queremos que as pessoas sintam que estão numa competição”, diz Natália Paiva, gerente de políticas públicas para a América Latina da empresa. Mas, ainda assim, é praticamente impossível conter a criatividade dos internautas quando o tema é burlar regras on-line.
A abordagem sociológica dos transtornos mentais, consagrada por Émile Durkheim, autor de “O Suicídio”, de 1897, acrescenta outras externalidades que acentuam a incidência desses problemas em grupos, ou mesmo em nações. O filósofo francês advertiu que isso aconteceria tanto pela perda de coesão social ou, ao contrário, pela integração excessiva (como entre militares), onde se desenvolve o gosto pela impessoalidade, pela renúncia e pela obediência passiva. As taxas de suicídio, advertiu Durkheim, poderiam ainda crescer em períodos de crises políticas e econômicas.
Estudos realizados pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostram que, entre 2006 e 2015, as taxas de suicídio entre adolescentes no Brasil aumentaram 24%. Tal crescimento foi associado a níveis mais altos de desemprego. Os dados sobre as mortes foram cruzados com indicadores como o PIB e a desigualdade social (medida pelo coeficiente de Gini). “Sentimentos de desesperança e inutilidade, frequentes em quadros depressivos, são vistos como mecanismos psicológicos que despertam o comportamento suicida”, diz o psiquiatra Elson Asevedo, um dos autores do trabalho. “Esses sentimentos parecem comuns na geração de jovens desalentados, sem propósitos claros, que nem trabalham nem estudam.”
Asevedo, contudo, considera que o fator mais dramático para a explosão dos casos de transtornos psíquicos no Brasil é a desassistência. “Por princípio, todo suicídio é uma morte que poderia ser evitada”, diz. “Ele é a última consequência de um problema que pode ser tratado. E existem tratamentos eficazes, mas não chegam às pessoas.” O país, por exemplo, oferece 0,041 leitos psiquiátricos em hospitais públicos e privados por mil habitantes. O mínimo recomendado pela OMS é de 0,45. Países como a Inglaterra e o Canadá têm 0,59 e 1,9, respectivamente. “Essa situação é consequência de uma política equivocada que, no passado, priorizou apenas serviços comunitários”, acrescenta o médico. “Ter serviços é importante, mas a assistência precisa ser feita em todos os níveis.”
Além do mais, a ciência tem comprovado que os transtornos mentais podem ser identificados na infância por meio de manifestações inespecíficas como a agitação, a agressividade e a dificuldade de aprendizado. Em tese, isso permitiria a realização de diagnósticos precoces. Mas eles são raros. “Em países desenvolvidos, cerca de 35% das crianças com esses problemas recebem tratamento”, diz Guilherme Polanczyk, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP). “No Brasil, são 18%.”
Ainda que nações ricas tenham deficiências técnicas e estruturais menos gritantes, elas também enfrentam grandes desafios nesse campo. Nos EUA, os suicídios entre jovens de 15 a 24 anos voltaram a crescer desde 2008, após uma queda na década de 1990. Nessa época, os casos somavam pouco menos de 10 em 100 mil habitantes. Em 2017, eram 14,5 em 100 mil. Há mais. Como adverte o escritor Andrew Solomon, em “O Demônio do Meio-Dia”, metade dos americanos pode apresentar sintomas de depressão durante a vida. Mais de 3% da população sofre da versão crônica da doença, sendo que 2 milhões são crianças. Mas apenas 6% dos deprimidos recebem um tratamento adequado.
As mortes por suicídio são ainda especialmente severas em grupos que sofrem processos de aculturação ou amargam o descaso. Essa mortalidade é enorme, por exemplo, entre indígenas em todo o mundo. No Brasil, ela atinge a taxa de 23,1 óbitos por 100 mil habitantes entre índios, sendo que o indicador para homens brancos é de 9,5 (menos da metade), de e 7,6 para negros. A média nacional é de 5,8 óbitos para 100 mil habitantes. Nos povos indígenas, a situação dos jovens também choca: 44,8% dos suicidas têm entre 10 e 19 anos.
Reverter esses quadros não é tarefa simples. No que se refere aos jovens e adolescentes, os especialistas advertem que qualquer saída passa pela difusão de informações de qualidade sobre esses temas. Isso ocorre em especial neste mês, quando entidades que lidam com esses problemas promovem uma campanha de conscientização chamada Setembro Amarelo. A ideia, no entanto, é não gerar com essas discussões o “efeito Werther”, mas, sim, seu antídoto: o “efeito Papageno”, personagem de “A Flauta Mágica”, a ópera de Mozart, que é dissuadido de se matar por três espíritos. O envolvimento das escolas nessas discussões é considerado crucial. Foi isso o que aconteceu no Centro Educacional Gesner Teixeira, em Brasília, citado no início desta reportagem. Ali, embora o problema tenha adquirido proporções inesperadas, ele foi enfrentado por iniciativa de um grupo de professores. O trabalho rendeu ao colégio um prêmio concedido pela Controladoria-Geral do Distrito Federal.
No médio prazo, o debate sobre transtornos psíquicos pode se tornar inevitável nos estabelecimentos de ensino. Isso por conta da vigência do Plano Nacional de Prevenção à Automutilação e ao Suicídio, que está sendo regulamentado. Ele prevê, como mencionado, a obrigatoriedade da notificação de casos desse tipo por parte das escolas. Elson Asevedo, da Unifesp, considera a lei positiva sob o ponto de vista de saúde pública. “Ela pode nos dar dados que hoje não temos, principalmente sobre as automutilações”, diz. “A questão é saber como as notificações serão feitas sem que as pessoas envolvidas sejam estigmatizadas.” Marcelo Dias, secretário-adjunto substituto do Ministério da Família, observa que esses informes serão sigilosos. “Isso está definido”, afirma Dias. “Mesmo porque o objetivo da lei é colher informações que nos ajudem a formular políticas públicas e sensibilizem a sociedade para esses temas. Hoje, até profissionais de saúde têm pouca familiaridade com assuntos como as automutilações.”
O Ministério da Saúde pensou em rever a metodologia de produção de dados sobre suicídios no Brasil. A mudança poderia alterar os dados disponíveis. Segundo os padrões atuais, a taxa média de mortes desse tipo por 100 mil habitantes foi de 5,5 em 2014; de 5,7, em 2015; e de 5,8, em 2016. Com a revisão, ficariam, respectivamente, em 6,7; 7,2; e 7,1. Mas a área técnica do órgão desistiu da reavaliação.
O que assusta atualmente os especialistas, contudo, não são apenas as variações estatísticas do tema, ainda que tenham impacto sobre estudos e pesquisas. A maior parte deles está preocupada com um agravamento dos índices de suicídio por causa de uma maior disponibilidade de armas no país. “O ato de tirar a própria vida é, por princípio, o resultado de um impulso”, afirma Guilherme Polanczyk, da Faculdade de Medicina da USP. “É a existência de uma oportunidade que vai definir se ele será consumado ou não.” As armas, no caso, oferecem essa possibilidade. E são instrumentos de extremamente letais. Nos EUA, respondem por 46% dos óbitos nesses episódios. Em outros países de alta renda, mas que restringem o uso de armas, esse número cai para 4,5%.
Outros elementos, que vão das incertezas a questões culturais, também atuam nas engrenagens desse cenário. “Os dados disponíveis indicam que 30% da população global, em algum momento da vida, vai passar por um episódio grave de transtorno, o que poderia incluir, a título de exemplo, a insônia”, afirma o psiquiatra Mário Eduardo Costa Pereira, professor da Faculdade de Medicina da Unicamp. “Isso nos leva à pergunta: que mundo é este no qual as pessoas nem sequer conseguem dormir?”. Em grande medida, acrescenta Pereira, podemos estar revivendo o que Freud chamou de “mal-estar da civilização”, em que o indivíduo é oprimido em suas pulsões e vive um incomodo permanente.
Pereira diz acreditar que, nestes tempos líquidos, as utopias fazem falta. “Ninguém acha mais possível criar um mundo transcendente ou poético”, diz. “A ecologia surgiu como uma alternativa, um plano B, para as sociedades, mas nem a possibilidade de detonarmos o planeta parece ter força para frear processos marcados por um individualismo extremo.” Hoje, observa, as pessoas vão ao consultório de um psiquiatra e pedem: “Aplaca meu sofrimento com remédios e me coloca para produzir amanhã.” E conclui: “Se esse for o critério de bem-estar, vai ficar difícil alterar os quadros de depressão.” De fato, com todo esse barulho, não vai ser fácil dormir.
by Carlos Rydlewski, repórter do Valor Econômico
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