Excelente texto de Luiz Felipe Pondé na Folha de São Paulo, vale a leitura.
Redenção trans
Vejo Marx revirando no túmulo, pedindo ajuda a Kardec para se vingar de seus herdeiros
Leitores me perguntam como podemos ver a redução do amadurecimento em nossos dias. Fácil. Hoje vou dar dois exemplos da indústria do audiovisual nos quais esse processo se faz claro —e não estou falando de “Bacurau”, que, aparentemente, é um caso gritante desse empobrecimento mental contemporâneo.
O primeiro, mais antigo, de 2017, o filme “O Círculo”, com Emma Watson e Tom Hanks. Revela uma personagem “milênia” que acha, ao final, que nada há de errado em se tornar transparente para o mundo inteiro por meio da ferramenta do “círculo”, contanto que o CEO da empresa não seja corrupto.
A confiança na bondade natural das pessoas (ou melhor, das novas gerações) sustenta a ideia de que a crítica da destruição da privacidade seria coisa de dinossauros, e que jovens, bem intencionados, melosos em suas mensagens, configuram um contrato social sustentável em termos morais e políticos. Só um incauto acreditaria nisso. É a negação frontal da realidade, não porque o problema da natureza humana seja apenas dos jovens.
Sei: os inteligentinhos berrarão contra o conceito de natureza humana, mas deixemos a caravana passar. Outro exemplo (de 2019), melhor ainda, pelo salto entre um diagnóstico sofisticado do futuro próximo e um final idiota, é a minissérie da HBO britânica, “Years and Years” (anos e anos).
A série faz uma excelente descrição de um mundo caótico nos próximos 20 ou 30 anos, pós-brexit. Uma populista assume o governo britânico, Trump já foi reeleito, e, em seguida, faz seu sucessor (Pence), a comunidade europeia está em frangalhos, crises financeiras assolam o mundo globalizado, fake news em toda parte, mas... jovens “trans-humanas” em interação com o sistema de dados da nuvem e uma ativista, que ao morrer faz seu upload para uma plataforma “líquida” de dados, além do amor familiar, salvam o mundo de pessoas más, como a populista, interpretada por Emma Thompson, uma Trump de saias. Imagino Marx revirando no túmulo, pedindo a Kardec que lhe dê alguma forma de vingança contra os idiotas que se dizem seus herdeiros.
Várias formas que se assemelham a rostos se olham em fundo bege.
Cammarota
Na família protagonista, os Lyons, temos a família pós-moderna perfeita: gays sinceros em seus afetos, menino superfofo que quer ser menina, homem hetero branco escroto, como de costume, que destrói a família para comer colegas de trabalho por aí, uma bisavó de 120 anos que conclama os jovens da família à revolução, uma das netas, cadeirante, que tem um filho de cada homem, e, no topo, uma menina que quer ser “trans-humana”. Aqui, acho que reside um dos tópicos mais essenciais da questão.
Ambos os exemplos transitam pelo discurso libertário do vale do Silício: papo furado para milênio bobo acreditar. Recomendaria aos infantis que pensam assim a leitura de “The Age of Surveillance Capitalism”, de Shoshana Zuboff. Nada há de libertário nesse mundo ciber-anarquista.
As duas peças audiovisuais investem na ideia de que jovens libertos da ganância (não existe isso quase no mundo) podem transcender em direção a um suporte material mais eterno e pleno. No caso da personagem Bethany de “Years and Years”, a “trans-humanista” confessa que o simples ato de respirar lhe dá nojo porque, inclusive, polui o meio ambiente. Seu gozo é voar como um espírito nas “nuvens” de dados sobre o mundo. E ela quase chega lá. Pairar sobre a miséria da matéria humana presa aos seus carbonos pré-históricos.
Enfim, a ideia de que tudo se resolve com o amor, numa espécie de cristianismo requentado pelo vale do Silício, é para iniciantes ou bobos. Nada nunca se resolve com coisa nenhuma. É uma batalha contínua, sem rumo. Uma das características do mundo de mercado (ou do capital, como queira) é fazer você, principalmente se ganhar dinheiro, sentir-se parte de um destino grandioso de transformação do mundo. E de lá, esse capitalismo aprendeu a mentir muito melhor do que nos séculos 19 ou 20.
A ideia de que haja uma redenção trans, a ideia de que “somos o que quisermos ser”, é marketing puro. A fé na redenção trans como ultrapassagem da condição material humana é um atestado de inanição histórica.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
Redenção trans
Vejo Marx revirando no túmulo, pedindo ajuda a Kardec para se vingar de seus herdeiros
Leitores me perguntam como podemos ver a redução do amadurecimento em nossos dias. Fácil. Hoje vou dar dois exemplos da indústria do audiovisual nos quais esse processo se faz claro —e não estou falando de “Bacurau”, que, aparentemente, é um caso gritante desse empobrecimento mental contemporâneo.
O primeiro, mais antigo, de 2017, o filme “O Círculo”, com Emma Watson e Tom Hanks. Revela uma personagem “milênia” que acha, ao final, que nada há de errado em se tornar transparente para o mundo inteiro por meio da ferramenta do “círculo”, contanto que o CEO da empresa não seja corrupto.
A confiança na bondade natural das pessoas (ou melhor, das novas gerações) sustenta a ideia de que a crítica da destruição da privacidade seria coisa de dinossauros, e que jovens, bem intencionados, melosos em suas mensagens, configuram um contrato social sustentável em termos morais e políticos. Só um incauto acreditaria nisso. É a negação frontal da realidade, não porque o problema da natureza humana seja apenas dos jovens.
Sei: os inteligentinhos berrarão contra o conceito de natureza humana, mas deixemos a caravana passar. Outro exemplo (de 2019), melhor ainda, pelo salto entre um diagnóstico sofisticado do futuro próximo e um final idiota, é a minissérie da HBO britânica, “Years and Years” (anos e anos).
A série faz uma excelente descrição de um mundo caótico nos próximos 20 ou 30 anos, pós-brexit. Uma populista assume o governo britânico, Trump já foi reeleito, e, em seguida, faz seu sucessor (Pence), a comunidade europeia está em frangalhos, crises financeiras assolam o mundo globalizado, fake news em toda parte, mas... jovens “trans-humanas” em interação com o sistema de dados da nuvem e uma ativista, que ao morrer faz seu upload para uma plataforma “líquida” de dados, além do amor familiar, salvam o mundo de pessoas más, como a populista, interpretada por Emma Thompson, uma Trump de saias. Imagino Marx revirando no túmulo, pedindo a Kardec que lhe dê alguma forma de vingança contra os idiotas que se dizem seus herdeiros.
Várias formas que se assemelham a rostos se olham em fundo bege.
Cammarota
Na família protagonista, os Lyons, temos a família pós-moderna perfeita: gays sinceros em seus afetos, menino superfofo que quer ser menina, homem hetero branco escroto, como de costume, que destrói a família para comer colegas de trabalho por aí, uma bisavó de 120 anos que conclama os jovens da família à revolução, uma das netas, cadeirante, que tem um filho de cada homem, e, no topo, uma menina que quer ser “trans-humana”. Aqui, acho que reside um dos tópicos mais essenciais da questão.
Ambos os exemplos transitam pelo discurso libertário do vale do Silício: papo furado para milênio bobo acreditar. Recomendaria aos infantis que pensam assim a leitura de “The Age of Surveillance Capitalism”, de Shoshana Zuboff. Nada há de libertário nesse mundo ciber-anarquista.
As duas peças audiovisuais investem na ideia de que jovens libertos da ganância (não existe isso quase no mundo) podem transcender em direção a um suporte material mais eterno e pleno. No caso da personagem Bethany de “Years and Years”, a “trans-humanista” confessa que o simples ato de respirar lhe dá nojo porque, inclusive, polui o meio ambiente. Seu gozo é voar como um espírito nas “nuvens” de dados sobre o mundo. E ela quase chega lá. Pairar sobre a miséria da matéria humana presa aos seus carbonos pré-históricos.
Enfim, a ideia de que tudo se resolve com o amor, numa espécie de cristianismo requentado pelo vale do Silício, é para iniciantes ou bobos. Nada nunca se resolve com coisa nenhuma. É uma batalha contínua, sem rumo. Uma das características do mundo de mercado (ou do capital, como queira) é fazer você, principalmente se ganhar dinheiro, sentir-se parte de um destino grandioso de transformação do mundo. E de lá, esse capitalismo aprendeu a mentir muito melhor do que nos séculos 19 ou 20.
A ideia de que haja uma redenção trans, a ideia de que “somos o que quisermos ser”, é marketing puro. A fé na redenção trans como ultrapassagem da condição material humana é um atestado de inanição histórica.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
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