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Bolsonaro e a fábula da cigarra e a formiga

Somos um povo imprevidente que tem consciência de sua imprevidência e até gosta dela. Não surpreende, portanto, que tenhamos governos igualmente imprevidentes, que expressam aquilo que culturalmente somos. Monteiro Lobato definiu o perfil do brasileiro imprevidente na figura do Jeca Tatu. Dá muito trabalho cuidar do amanhã que ainda não chegou. Não vale a pena, dizia o Jeca. Cansa antes de trabalhar. Compreende-se. Esta sociedade tem suas raízes nas escravidões, a indígena e a africana. O escravo era coisa, e coisas não têm esperança. Quem não tem esperança não pode ser previdente. O amanhã não é dele, mas de quem nele manda. Ser previdente depende de ser pessoa e pessoa livre. Nosso conformismo com o dia de hoje, nossa cumplicidade com quem manda ou quem pensa por nós, quem de nós usurpa o direito de pensar nosso destino, é herança da escravidão. Inscrita em nossa consciência social e política com o chicote do feitor que sobrevive na mentalidade de muita gente neste país, escreve José de Souza Martins em artigo publicado na sexta, 11/6, no Valor.


Uma das historinhas populares mais contadas entre nós é a da cigarra cantora e a formiga trabalhadeira. Uma variante pós-moderna da história faz da cigarra uma heroína da noite, rica, cantora de boate, bem de vida, casaco de vison nos invernos frios da Europa.

Enquanto isso, a pobre formiga continuava penando à cata das folhas de que nascerá no formigueiro o fungo que vai alimentá-la durante o inverno.

Ao descobrir essa inversão dos valores, numa conversa com a formiga que a visitou, pediu-lhe que, quando fosse a Paris, procurasse o autor da fábula, um tal de La Fontaine, e o mandasse para aquele lugar. A moral da história era enganosa, “fake news”.

O sonho dos brasileiros já foi o de ser a formiga honrada e incansável. Hoje, parece muito mais o da cigarra da vida boa e alegre, sem preocupações com o amanhã, sem pagar por ele o preço do trabalho duro e constante de hoje. Passamos da sociedade do trabalho para a sociedade de consumo e ostentação. Aliás, não adianta chorar sobre o leite derramado. É a vida.

Na própria cena política há uma incômoda figuração dessa inversão. Alguém que chegou administrativamente a capitão manda hoje em pessoas que fizeram a carreira completa e chegaram a general.

Quem transgride no governo transgressor recebe o galardão do apreço e do aplauso. A desobediência e a indisciplina, pelo visto, se transformaram em profissão. Quem transgride recebe a medalha, e quem segue as normas recebe a desculpa esfarrapada. Vitória da cigarra contra a formiga. O hoje sem amanhã venceu.

Nos dias atuais, o nosso amanhã sem a prudência e a previdência de um hoje responsável está profundamente comprometido. Penso na educação descontinuada e superficial desta hora adversa. Toda uma geração de crianças e de adolescentes tem seu futuro roubado.

Não só pela gravidade da pandemia em si e das mal administradas medidas preventivas necessárias para conter sua disseminação. Mas também pela omissão e pela incompetência em criar alternativas científicas e consistentes para preencher criativamente a enorme mutilação do processo educacional. E a carência de uma nova e urgente educação que retome e reforce nossa tradicional concepção de aliança entre ciência e humanismo na formação das novas gerações.

Em nome de uma opção preferencial pela civilização e em oposição ao materialismo que mercantiliza tudo: a vida, a dignidade, a responsabilidade, a nossa identidade e mesmo a fé.

A disseminação de religiões mercenárias instaladas nas próprias antecâmaras do poder, as do interesse do autoritarismo político, a disseminação de uma religiosidade conformista, em que a omissão de hoje fará o milagre da prosperidade pessoal amanhã.

Hoje, tecnicamente, seria muito mais fácil encontrar soluções eficazes para os problemas sociais que vivemos. No entanto, o olhar dominante e hegemônico do Brasil de hoje está voltado para um futuro que, na imaginação simplória dos que mandam na riqueza e no poder, é uma volta ao PIB de antes da pandemia. Ainda nestes dias gente do poder andou celebrando índices que parecem indicar que estamos no caminho do retorno.

O Brasil é um país de índices econômicos sem conteúdo social. Celebramos índices da bolsa de valores, mas não somos capazes de dizer de maneira científica e objetiva de que modo tais índices resolverão o gravíssimo problema da fome, da miséria, da habitação tosca e imprópria, da sociabilidade promíscua, da exclusão social, da urbanização patológica. O que nos faz um país economicamente rico e socialmente pobre.

A recusa da busca de um futuro economicamente próspero e socialmente justo é a reacionária opção preferencial pela miséria da maioria como fonte da abundância indecente da minoria.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).



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