Pergunte a qualquer brasileiro a que cargo o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), pretende concorrer em 2022, e a resposta será: “presidente”. Mas caso você faça essa pergunta diretamente a ele, como fez PODER em entrevista exclusiva no palácio dos Bandeirantes, numa sexta-feira de maio, a resposta é: “Por enquanto, nenhum. Continuarei sendo gestor aqui do governo do estado de São Paulo”. “Dois mil e vinte e dois é para ser pensado em 2022. Ano ímpar é ano de gestão”, justificou, para em seguida expor uma contradição ao defender a definição do concorrente do PSDB ao Planalto por meio de eleição interna em 2021. “Não há a menor hipótese de você ter um candidato competitivo com prévias em 2022, o vencedor não terá tempo suficiente de articulação com os demais partidos de centro.” Embora não afirme sua candidatura, João Doria já deu mostras de que tem pressa para se tornar o ungido de seu partido. A tentativa do governador de se tornar presidente da sigla, em fevereiro, e, uma vez dominada a máquina, expulsar o correligionário Aécio Neves, gerou reação. Presidentes de todos os diretórios estaduais, os sete senadores e 2/3 da bancada de deputados federais do PSDB barraram sua pretensão, reconduzindo ao comando tucano o ex-deputado federal Bruno Araújo. Ato contínuo, como que por geração espontânea, começaram a pipocar outros presidenciáveis na sigla, como o governador gaúcho Eduardo Leite e o senador cearense Tasso Jereissati. Como um comentarista de rede social, o ex-presidente e cardeal do PSDB Fernando Henrique Cardoso disse então que “o apressado come cru, melhor é comer cozido”, relata Paulo Vieira em reportagem para a revista Poder. Vale a leitura, continua abaixo.
João Doria confia nas prévias, as eleições internas do PSDB, não apenas por seu desempenho pregresso – venceu as duas que disputou, assim como as eleições propriamente ditas, em 2016 e 2018 –, mas porque São Paulo conta com o maior número de filiados, o que lhe dá estamina e votos para contrapor- se à resistência a seu nome. Havia uma discussão em torno desse processo, com Doria a advogar um modelo com voto direto, sem restrições, e Leite preferindo a aplicação de pesos diferentes para proporcionar “equilíbrio federativo”. Em 31 de maio o partido aprovou um documento que, se referendado, define o sistema com pesos desiguais, diferentemente do que Doria queria. O episódio mostrou que o governador não tem força – por ora, ao menos – de chegar chegando e bagunçar o PSDB. Pelo Brasil, o partido tem visões plurais, digamos, sobre diversos temas, notadamente sua adesão – ou não – a Jair Bolsonaro, o antípoda do governador. Doria gostaria de ver 100% do PSDB na oposição a quem chama de “mito da mentira”, mas há parlamentares tucanos muito próximos do Planalto, caso dos senadores Roberto Rocha (MA) e Izalci Lucas (DF), que chegou mesmo a ser vice-líder do governo no Senado em 2019.
Há muito tempo o PSDB é caracterizado com ironia na imprensa e no circuito político como um partido em que seus integrantes são desprovidos do poder de decisão. Alguns poderiam chamar isso de “democracia”, mas a verdade é que a sigla tem poucos nomes com o peso – ou com os ativos eleitorais – de Doria, o que torna uma indecisão em relação a 22 pouco justificável. Ter-se tornado o político que conseguiu vacinar a primeira brasileira contra a Covid-19 e até meados de maio fornecer, por conta exclusiva de seus esforços, duas em cada três doses das vacinas aplicadas no país, é um supertrunfo, especialmente quando comparado ao que seus prováveis adversários tucanos têm a ofertar: uma reforma administrativa, no caso de Leite; e uma suposta capacidade de diálogo, no caso de Tasso, cujos acólitos buscam fazer pespegar ao parlamentar cearense o carimbo de “Joe Biden brasileiro”.
João Doria tem apenas quatro anos de vida pública e está invicto em eleições, o que não quer dizer nada. Surfou na antipolítica e levou já no primeiro turno para prefeito de São Paulo, em 2016; dois anos depois, sofrendo rejeição na capital paulista por abandonar precocemente a prefeitura, venceu a acirrada disputa para governador do estado. Vê-se como alguém de “cabeça privada”, setor onde esteve por quatro décadas, “na política”. “Continuo tendo esse sentimento privado na gestão pública, por isso montamos aqui um secretariado de nível de ministério. Há várias pessoas que vieram do setor privado e oito ex-bons ministros de Estado que ajudam a fazer um governo descentralizado, operativo, corajoso, o único entre os estados a fazer uma reforma administrativa que reduziu despesas, para que pudéssemos ter a condição fiscal adequada que hoje temos, de R$ 21 bilhões em 2021, mais do que o governo federal tem para investir.”
Mesmo com esse verdadeiro discurso proferido numa única resposta ao repórter de PODER, tudo isso parece ser verdade, à parte a reforma administrativa solitária, uma vez que também feita por Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul. Apresentar a gestão “AAA” seria uma boa ideia em 2022, já que Doria não deve deixar uma vitrine de grandes obras – naipe expansão do metrô paulistano, conclusão do Rodoanel e até mesmo o “people mover” do aeroporto de Guarulhos – para ostentar. O problema é que tudo isso pode ser uma quimera, até mesmo a despoluição do rio Pinheiros, tema que passou batido por décadas de gestões tucanas em São Paulo e que Doria decidiu enfrentar. A discussão em 2022 tem tudo para estar, como se diz no futebol, em outro patamar, e contrapor-se a Bolsonaro pode ser a verdadeira língua franca, a única a fazer sentido na campanha.
E aí Doria terá um problema. Tendo muito para mostrar em sua administração ou não, o governador não vai conseguir se desvencilhar de uma imagem crucial de sua história política, que tende a roubar a cena na campanha eleitoral, na TV e na internet. É que para vencer a disputadíssima eleição para governador contra Márcio França (PSB), em 2018, Doria criou o neologismo “BolsoDoria”, e literalmente vestiu a camiseta amarela com essa inscrição, em manobra para aproveitar a popularidade do candidato a presidente pelo PSL. O “namoro” entre João e Jair, para usar uma expressão cara ao presidente, não duraria muito, mas teve cenas memoráveis. Em junho de 2019, Bolsonaro veio a São Paulo e Doria se deixou fotografar fazendo flexões abdominais em sua companhia (Bolsonaro ergueu os ombros). O governador ainda foi ao Twitter para se justificar: “Presidente mandou pagar 10, a gente paga neh?”. E marcou @jairbolsonaro. Daí em diante tudo mudaria, e faltaria hoje verossimilhança à obra do romancista que tentasse reproduzir os fatos políticos dos últimos três anos no Brasil da maneira estrita como eles se desenrolaram. Em novas viagens a São Paulo, Bolsonaro evitou Doria, passou a atacá-lo sistematicamente, atrasou a compra pelo Ministério da Saúde – o grande palco da batalha entre os dois – da vacina CoronaVac, que teve em junho uso emergencial reconhecido pela OMS, e começou a desdenhar do governador, chamando-o de “calça apertada”.
Em resposta, Doria passou a não perder uma oportunidade de criticar o presidente. Sem apelar a apelidos ginasianos, usa suas aparições públicas para chamar Bolsonaro de “incompetente”, “negacionista”, “displicente”, alguém a quem “falta compaixão”. “O governo Bolsonaro é um desastre completo em todas as áreas”, disse a PODER. “Um governo negacionista, que por falta de determinação e por excesso de ideologia, levou o Brasil ao fim da fila no combate à pandemia, e contribuiu, lamentavelmente, para que o Brasil até o momento tivesse mais de 428 mil mortes [o número no dia do fechamento desta edição chegou a 463 mil]
AVENIDA LARGA
As pesquisas eleitorais têm sido duras com o governador. No mais recente Datafolha, divulgado em meados de maio, seu nome aparece na estimulada com 3% da intenção de votos, atrás de Lula (41%), Bolsonaro (23%), Sergio Moro (7%), Ciro Gomes (6%) e até do ‘não sai de cima’ Luciano Huck (4%). Apesar disso, vê uma “avenida larga” para uma candidatura de centro como a sua, uma terceira via entre Lula e Bolsonaro, que ele ambiciona trafegar. “Uma faixa expressiva, 40%, ainda não tomou sua decisão, e administrará a possibilidade de votar num candidato de centro, que seja capaz de trazer esperança, de recuperação do Brasil. Não há caminho estreito, há uma avenida larga”, disse.
Especialistas em marketing político próximos do governador veem duas grandes dificuldades para ele transpor. Transcender as fronteiras de São Paulo e conseguir provar-se autêntico, justamente a “qualidade” observada em Bolsonaro. As lágrimas vertidas ao anunciar a eficácia da CoronaVac, a vacina “chinesa do Doria”, na definição de 2020 do “PR”, ou a emoção de protagonizar a imunização da primeira brasileira, uma enfermeira negra escolhida a dedo, em 17 de janeiro, podem não ser cenas suficientemente persuasivas diante da imagem da infame camiseta amarela. Contra isso, Doria tem tentado um antídoto – a admissão do erro. “Eu, como milhões de brasileiros, confiei também no discurso liberal de Paulo Guedes; acreditei que o convite feito a Sergio Moro [representasse] também um compromisso com a Lava Jato, com as medidas punitivas às más condutas, à irresponsabilidade e aos atos criminosos de gestão de dinheiro público. Mas errei, assim como milhões de outros brasileiros. Não vou errar pela segunda vez.” O governador sustenta, como se vê, que o convite a Moro se deu antes de 28 de outubro, dia do pleito de Bolsonaro contra Fernando Haddad. Doria também alegou a PODER que, por não ter sido parlamentar, e, com isso, “não ter convivido com Bolsonaro no Congresso”, não poderia conhecê-lo suficientemente. Por esse raciocínio, eleitor nenhum poderia conhecer Bolsonaro suficientemente. Mais defensável é o terceiro argumento, de “que não havia nenhuma possibilidade de apoiar o PT”, força em que Doria sempre bateu em sua curta carreira política.
Pelo que se depreende da conversa com o governador, apagar o BolsoDoria só talvez seja possível se ele conseguir afirmar claramente sua paternidade na vacina contra a Covid e, com ela, sua defesa intransigente pela vida de milhões de brasileiros. O tema, na opinião do governador, vai estar em voga em 2022 por conta das mutações do vírus Sars- -CoV-2 e da necessidade de novas rodadas de imunizações. E sim, tudo isso tende a eclipsar, paradoxalmente, a gestão “privada” na política, o bom ambiente de negócios, a capacidade de investimento e as soluções inovadoras que imprimiu à gestão. Para o consultor político e cientista social Ney Figueiredo, Doria foi “vítima de uma milícia digital bolsonarista que abalou sua imagem de político inovador”, e não o vê com chances numa eleição presidencial – exceto compondo uma chapa como vice. “Governador do maior estado do Brasil que apresentou resultados razoáveis na pandemia, que trouxe a CoronaVac, responsável maior pela vacinação, e que não tem acusações de corrupção”, elenca, entre dversos senões. Outra possibilidade admitida por Figueiredo e por um pequeno círculo político seria uma tentativa de um segundo termo para o Bandeirantes, uma saída difícil, já que o vice-governador paulista, Rodrigo Garcia, foi instado a trocar o DEM pelo PSDB justamente para concorrer ao Bandeirantes em 2022, fechando o caminho no partido para o ex-governador Geraldo Alckmin. A virada de casaca de Garcia gerou atrito com ACM Neto, presidente do DEM, e afastou a sigla, ao menos por ora, de uma composição nacional com o PSDB. ACM usou palavras fortes para atacar Doria no mesmo dia da filiação de Garcia. “A postura desagregadora do governador de São Paulo amplia o seu isolamento político e reforça a percepção do seu despreparo para liderar um projeto nacional”, escreveu em seu Twitter. “O momento pede grandeza e compromisso dos homens públicos com o país.”
Em resposta, Doria disse a PODER que o “DEM não está fora do jogo” e que “grandeza tem de ser de todos”. “Para vencer os extremos, teremos de ter capacidade de diálogo. Tudo a seu tempo deverá se ajustar para termos uma candidatura fortalecida de centro que terá um enfrentamento difícil com Lula e Bolsonaro.” O caminho promete ser duro para Doria.
A UNÇÃO DE FHC
A foto que abalou o PSDB em 21 de maio, o aperto de mão pandêmico entre Lula e FHC na casa de Nelson Jobim, e a declaração do ex-presidente de que apoiaria Lula caso seja ele o candidato a enfrentar Bolsonaro no segundo turno em 2022, gerou barulho no partido, e FHC teve de emendar seu posicionamento. Ele, que já havia admitido que o PSDB poderia abrir mão da candidatura majoritária diante da necessidade de encontrar um nome consensual de centro, disse a PODER, por e-mail, que “um partido do tamanho do PSDB precisa ter candidato presidencial, e deve ser um bom candidato”. João Doria, para ele, “tem acumulado serviços positivos à frente de São Paulo e isso contará para sua eventual candidatura”. FHC não comunga com a tese de ACM Neto e vê em Doria alguém “capaz de agregar”. O governador foi rápido em tentar cabalar o apoio de FHC, chamando- -o para uma visita ao Bandeirantes poucos dias depois da foto polêmica vir a público. O ex-presidente, a propósito, parece ter gostado de ser cortejado, e também, segundo revelou o jornal Folha de S.Paulo, conversou com o governador gaúcho Eduardo Leite, virtual adversário de Doria dentro do PSDB. Embora os círculos dos dois governadores dissessem que FHC apoiava os dois modelos de prévias propostos por ambos adversários, em 31 de maio o partido aprovou um documento que, se referendado, define o sistema com pesos desiguais, diferentemente do que queria Doria.
O REALIZADOR
“O grande paradoxo é que João Doria faz um bom governo, especialmente em saúde e educação, mas ele não constrói aliados políticos, e isso é fundamental para ganhar uma eleição”, disse a PODER o cientista político Fernando Abrucio, para quem o governador corre sérios riscos até numa disputa pelo Bandeirantes, caso enfrente o ex-governador Geraldo Alckmin. Para Abrucio, Doria será “lembrado daqui a dez anos” como o “cara que conseguiu fazer Jair Bolsonaro comprar vacina”. “Imagina quantas mortes mais seriam?” O governador vem atuando em diversas frentes, tendo recentemente sancionado o Bolsa do Povo, com recursos de R$ 1 bi, e que vão beneficiar até 500 mil pessoas, segundo o governo estadual, algumas recebendo cerca de R$ 500; em outra frente, segue a buscar investimentos para o estado, e em maio anunciou aporte de R$ 4 bi da empresa Mercado Livre. É o maior investimento privado num único ano em São Paulo, com possível abertura de 5 mil postos de trabalho. Boa parte da capacidade de geração de recursos, segundo o governador, está atrelada à reforma administrativa “difícil” feita em 2020, aprovada na Assembleia Legislativa após dura negociação – e que previa cortes que caíram, como a da verba da Fapesp, de incentivo à pesquisa científica. Com tudo isso, São Paulo cresceu 0,4% ano passado, segundo dados do estado, contra a queda de 4.1% do PIB brasileiro. Na última semana de maio, Doria voltou a falar sobre a Fapesp, dessa vez para anunciar um aporte de R$ 580 milhões para a fundação.
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