Um marciano que descesse à Terra entre 21 de abril e 10 de maio chegaria à conclusão de que o Brasil nada mais é do que a vanguarda mundial do atraso. Nesse espaço de tempo, dois berços da democracia mundial, a França e os Estados Unidos, assistiram a demonstrações de engajamento político de militares da reserva e uns poucos da ativa. Primeiro veio a carta assinada por 1.200 oficiais reformados, entre os quais 24 generais, com a adesão, anônima, de duas dezenas de militares da ativa das Forças Armadas francesas. Eles escolheram o aniversário de 60 anos da tentativa de golpe contra a independência da Argélia no governo do general Charles De Gaulle. No texto, os oficiais dizem que foram o antirracismo, o indigenismo e as políticas de descolonização que semearam o ódio no país. Citam, para isso, a decapitação de um professor, no ano passado, por um aluno que não gostara de uma caricatura de Maomé mostrada na sala de aula de uma escola da região metropolitana de Paris. A carta aberta define o islamismo como um “dogma” contrário à Constituição nacional e ainda diz que a tolerância religiosa levará a França à guerra civil, escreve a jornalista Maria Cristina Fernandes no Valor, em texto publicado dia 4/6. Continua a seguir.
O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas francesas, o general François Lecointre, instou os signatários da ativa a passar para a reserva. Já a líder da extrema direita francesa, Marine Le Pen, saudou a carta e pediu o apoio dos signatários para sua candidatura à Presidência em 2022. Entre aqueles identificados na publicação do artigo pela revista “Valeurs Actuelles” (valores atuais, em francês), há oficiais reformados e saudosistas do império colonial francês. Um verdadeiro exército de Brancaleone.
Pipocaram pesquisas mostrando apoio a uma intervenção militar por até metade dos franceses, mas as sondagens acabaram desacreditadas por terem sido feitas poucos dias depois de dois eventos que comoveram o país: uma manifestação de rua pelo julgamento do assassino de uma judia ortodoxa, internado numa instituição de doentes mentais, e uma condenação, branda na visão dos manifestantes, de uma gangue que ateou fogo em um carro de polícia.
Dezenove dias depois, do outro lado do Atlântico, veio a público uma carta aberta de 124 generais e almirantes da reserva americanos. Mais parecia ter sido escrita pelo ex-presidente Donald Trump, tamanha a semelhança dos argumentos. O texto afirma que a eleição de Joe Biden foi roubada, que a liberdade do país está sob a ameaça e que o viés “politicamente correto” do presidente divide as Forças Armadas e ameaça a prontidão para a guerra. “Sob um Congresso democrata e o corrente governo, nosso país deu uma guinada à esquerda rumo ao socialismo e o marxismo”, afirma o texto.
A carta ainda diz que a integridade das eleições depende de medidas restritivas ao voto de grandes comunidades de negros e latinos em todo o país. Também questiona as condições físicas e mentais de Biden como comandante-em-chefe. Entre os signatários estão oficiais veteranos da guerra do Vietnã, um condenado na operação Irã-Contras, do governo Ronald Reagan, militantes antimuçulmanos e antiLGBT.
No dia seguinte, os franceses de extrema direita voltaram a se manifestar. Desta vez, a carta não esteve restrita à assinatura de militares, mas ao público em geral. O site da revista “Valeurs Actuelles” contabiliza 299 mil signatários até o fechamento desta edição. Este segundo texto acresce aos argumentos já apresentados em abril a menção à “Operação Sentinela”. Convocada pelo presidente Emmanuel Macron, em 2015, foi uma reação a uma série de atentados deflagrados concomitantemente no estádio de futebol de Saint-Denis, na região do Canal Saint-Martin e na casa de shows Bataclan, na capital francesa, que deixaram 130 mortos. Os ataques, que foram os mais letais na cidade desde a Segunda Guerra Mundial, acabaram reivindicados por grupos terroristas de origem islâmica.
É este o fio que Vinícius de Carvalho, estudioso do tema, professor do Departamento de Estudos de Guerra e diretor do Brazil Institute do King’s College, de Londres, puxa para colocar o país de Jair Bolsonaro na roda. Para além das contingências históricas de cada uma dessas nações, diz, é a atribuição de funções civis aos militares que age como um precedente de seu envolvimento político - na França, nos Estados Unidos, no Brasil e em muitos dos vizinhos da América Latina.
No Brasil, a atuação na “lei e ordem”, concessão dos constituintes ao finado regime militar, ampliou-se com a adoção, há quase 30 anos, das Operações de Garantia da Lei e da Ordem, inauguradas com o uso das Forças Armadas na segurança da Conferência das Nações Unidas Rio-92. Não é coincidência que a candidatura Jair Bolsonaro tenha decolado no ano em que o Rio, onde o presidente colheu uma de suas mais espetaculares votações, abrigou uma das maiores GLOs da história, a da intervenção na segurança pública do Estado.
No primeiro mandato do governo Luiz Inácio Lula da Silva, às GLOs se somou a liderança do Brasil na missão das Nações Unidas no Haiti, onde os militares brasileiros atuaram no combate às gangues e no controle da violência urbana. Foi uma prévia das grandes intervenções militares em comunidades. Dos 11 generais que comandaram a missão no Haiti, cinco acabaram se imiscuindo na vida civil brasileira e um tornou-se o primeiro comandante do Exército no governo Bolsonaro: Heleno Ribeiro (Gabinete de Segurança Institucional), Carlos Alberto dos Santos Cruz (ex-Secretaria de Governo), Luis Eduardo Ramos (Casa Civil), Floriano Peixoto (ex-Secretaria-Geral da Presidência), Ajax Pinheiro (assessor especial da Presidência do Supremo) e Edson Leal Pujol.
Se as operações militares no Brasil foram marcadas pela intervenção durante eventos internacionais, greves policiais, crises na segurança pública, incêndios florestais e eleições, no resto no mundo, na avaliação de Vinícius de Carvalho, a inserção foi desencadeada pelo terrorismo. O momento de inflexão foram os ataques da Al-Qaeda às torres gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001.
Acionadas pelo terrorismo, as intervenções acabaram naturalizadas contra sublevações sociais e imigração ilegal. Quando o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, Mark Milley, pediu desculpas ao povo americano no ano passado, os sinais de tensão na política interna já eram evidentes com a convocação da Guarda Nacional. A presença de Milley ao lado ex-presidente Donald Trump em caminhada da Casa Branca até uma igreja próxima durante a ocupação de Washington pelos protestos “Vidas Negras Importam” foi vista como um endosso à repressão contra os negros. Daí os esclarecimentos.
Mesmo num país em que é comum os presidentes ostentarem, em algum momento de suas carreiras, patentes militares, a entrega, por Donald Trump, do cargo de secretário de Defesa para um militar reformado foi recebida com reservas. Apesar disso, a prática foi mantida pelo atual presidente Joe Biden, que nomeou o general da reserva Lloyd Austin, primeiro afro-americano a comandar tropas americanas no exterior (Iraque). A nomeação exigiu que o Congresso americano aceitasse a redução da quarentena de sete para quatro anos para oficiais das Forças Armadas. É o equivalente, diz o professor do King’s College, à militarização do Ministério da Defesa no Brasil.
A pasta foi criada em 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso, para ser ocupada por um civil que representaria politicamente as três Forças. Foi um marco num continente que, ao longo das últimas décadas, vide Colômbia e México, tem cedido à pressão americana no combate ao narcotrático pela militarização da segurança nacional. Acabou, porém, sendo ocupada por generais da reserva nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro.
A reocupação da pasta por civis, na visão de Vinícius de Carvalho, é o eixo a partir do qual deveriam se estruturar as mudanças necessárias. Mas não apenas. As esquecidas Comissão de Defesa do Senado e da Câmara também merecem sua lupa. “São as instâncias que o Parlamento brasileiro tem para participar na formatação do modelo de Forças Armadas que se quer para o país", diz. A primeira distinção a ser feita é entre defesa, tema militar por excelência, e segurança nacional, atribuição das múltiplas e desfuncionais polícias do país.
O professor do King’s College não vê, por exemplo, razão para o país, que não tem conflitos com seus vizinhos, manter o 14º efetivo mundial de militares do mundo, com batalhões em áreas que não são de fronteira. Na última vez em que um comandante do Exército se manifestou sobre o tema, o general Pujol, em 2020, disse que os efetivos da Força eram necessários para garantir a soberania da Amazônia. “Se uma potência nuclear quiser dominar a floresta, não será simplesmente com presença de grandes efetivos militares na região que o Brasil impedirá que isso aconteça”, diz Carvalho, alertando para os riscos advindos dos flancos na defesa cibernética, cuja expertise não é exclusividade militar.
Este efetivo faz com que os soldos e pensões das Forças Armadas consumam quase 80% de seus gastos. A reforma realizada no governo Bolsonaro, que recompôs gastos com a folha que haviam sido reduzidos no governo Fernando Henrique, foi um dos primeiros degraus da escalada de políticas para atrelar as Forças Armadas ao destino do presidente da República. A entrega do Ministério da Saúde para um general da ativa levar a cabo o negacionismo do presidente foi o ápice desse atrelamento. E a possível punição que envolve a ida do ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello a seu palanque, no Rio de Janeiro, a mais recente das tensões.
Ainda que não haja parâmetro nos Estados Unidos ou na França para a agitação dos quartéis pretendida por Bolsonaro, os movimentos políticos da caserna nos dois países dão repertório ao presidente brasileiro. Isolado depois da derrota de Trump e, principalmente, depois do negacionismo ímpar na pandemia, Bolsonaro peleja para conseguir seu segundo mandato sob o escudo militar. É como pretende se manter na crista da onda do novo viés da extrema-direita mundial.
Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente
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