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Leonora Carrington e surrealistas ganham uma nova casa no Brasil

Existe uma relação entre vida e poesia, um nexo mágico entre a “realidade” e um mundo outro, preconizavam os surrealistas e André Breton com sua noção de “acaso objetivo”. Assim, não é de estranhar que Leonora Carrington, artista mítica que desperta há décadas a imaginação de sonhadores mundo afora, tenha sua produção literária apenas agora lançada em livro no Brasil — em dose dupla —, após décadas de uma intensa produção admirada como um segredo sussurado entre poucos iniciados. O primeiro é “Lá embaixo” (trad. Alexandre Barbosa de Souza, 96 págs., R$ 45), relato em primeira pessoa de Leonora durante sua estada no território desintegrador da paranoia em um hospício, que marca a estreia da 100/cabeças, editora voltada a produções surrealistas inéditas no país ou fora de catálogo. Quase ao mesmo tempo, “Um conto de fadas mexicano e outras histórias” (Iluminuras, trad. Dirce Waltrick do Amarante, 144 págs., R$ 49) reúne pela primeira vez em edição brasileira histórias que mostram por que Leonora, morta aos 94 anos em 2011, é um nome ainda a ser descoberto para além do mundo das artes plásticas, escreve Bruno Yutaka Saito no Valor, em texto publicado dia 11/6. Continua abaixo.


Neste momento de questionamento do patriarcado, que vem destacando o pioneirismo de mulheres no abstracionismo (Hilma af Klint), na Nouvelle Vague (Agnes Vardà) etc., Leonora apenas há alguns anos começou a ser notada fora do México, país onde é um patrimônio cultural e viveu durante quase 70 anos.

Há dois museus dedicados à artista em atividade no país, além de sua casa, na Cidade do México, que recentemente foi doado pela sua família para se transformar num espaço cultural. Nesta semana, também foi anunciado que um livro infantil de Leonora é a inspiração para o título da 59ª Bienal de Veneza, “The Milk of Dreams” (O Leite dos Sonhos), que vai ocorrer entre 23 de abril e 27 de novembro de 2022.

Coordenador da 100/cabeças, Alex Januário identifica esse movimento, mas afirma que o lançamento não foi uma estratégia de mercado. “Se tem uma coisa que rege o surrealismo é o ‘acaso objetivo’. Esses títulos que estamos lançando surgiram de diálogos e conversas do nosso grupo. No caso da Leonora, a escolha foi antes dessa retomada. Pelo contrário, nem procuramos nomes de cunho mais comercial”, diz Januário, que atua no movimento surrealista internacional com o grupo deCollage desde o fim dos anos 1990.

Por meio da 100/cabeças, estão sendo lançados autores de primeira grandeza, como Antonin Artaud (“Carta à vidente”), René Crevel (“A morte difícil”), Mina Loy (“Escritura estilhaçada”) e Michael Löwy (“O cometa incandescente”), cada um com uma tiragem de mil exemplares.

Nascida em 1917 em Lancashire, na Inglaterra, Leonora Carrington era a única filha mulher de um casal de novos ricos de raízes irlandesas, que fazia fortuna com a indústria têxtil. Dela, não era esperado nada mais do que o casamento com algum homem da alta sociedade. No entanto, desde muito cedo Leonora demonstrou uma rebeldia destoante.

O conto “A Debutante”, que está em “Um conto de fadas mexicano e outras histórias”, retrata em tom fabular esse enfado com as convenções. As influências de autores como Lewis Carroll e Jonathan Swift se mostram no esgarçamento de fronteiras do realismo. O aparente absurdo é apenas um normal possível, e a tradição gótica inglesa encontra uma seguidora sem pudores e de humor muito mórbido. No conto, a jovem narradora não está nem um pouco afim de ir ao seu baile e arma um plano com a amiga hiena. Disfarçado, o animal irá no lugar da narradora. Mas, para ficar mais parecida com um humano, a hiena mata a empregada e usa o seu rosto.

“Seus escritos bebem do nonsense vitoriano, do surrealismo, dos contos de fadas irlandeses, dos mitos mexicanos”, diz a tradutora do livro, Dirce Waltrick do Amarante, professora da Universidade Federal de Santa Catarina. “Ela trabalha com o inusitado, com o desconforto, trata de temas tabus, de temas violentos, mas dentro de uma atmosfera onírica. É um pesadelo do qual podemos acordar a qualquer momento.”

É assim em “A Casa do Medo”, o primeiro conto publicado de Leonora, em 1938, sua estreia na rede surrealista. Nele, a narradora se vê num jogo-ritual entre assustados e assustadores cavalos falantes.

Quando notaram que não apareciam pretendentes para Leonora, seus pais se renderam ao seu desejo, e assim, aos 20 anos, ela foi a Londres estudar arte. Era 1937, e as vanguardas artísticas estavam a pleno vapor. No surrealismo encontrou uma sensibilidade similar à sua. O movimento criado por André Breton e que tinha na produção plástica nomes como Salvador Dalí e Max Ernst questionava o que eram o real e o imaginário, situando uma verdade entre a vida de vigília e a vida onírica: amor, poesia e liberdade eram guias para atos de insubmissão perante diferentes tipos de opressão.

Numa festa, Leonora conheceu Ernst, 26 anos mais velho e casado. Nele, encontrou não apenas um mestre que ajudou a dinamizar seu imaginário, mas um companheiro de um amor louco, desfrutado numa idílica casa ao Sul da França, para onde foram após incomodar muita gente e onde viviam à base de criatividade e sonhos compartilhados. Seriam os melhores dias de sua vida, diria ela muitas décadas mais tarde.

Quando a Europa começava a ruir sob os nazistas, Leonora também entrou em pane. Quando Ernst, que constava no índex da arte “degenerada”, foi levado a um campo de concentração, ela sofreu um colapso mental. Sozinha em casa, por dias consumiu apenas água de laranjeira, na esperança de que sua tristeza passasse e a purificasse. Para ela, havia uma conexão entre seu estômago e o estômago sujo do mundo. Resgatada por um casal de amigos que logo perceberam que os nazistas destruiriam o que estivesse à frente, a artista estava tomada por uma crença absoluta na realidade de seu pensamento mágico, que conectava seu corpo aos destinos do mundo.

Em Madri, Leonora foi confiante à embaixada britânica para anunciar ao cônsul que ela era a chave para o fim da guerra. O conflito, disse, estava sendo travado hipnoticamente por Hitler e outras pessoas. Bastaria interromper esse transe para que o mundo fosse libertado.

Foi a senha para seu diagnóstico de loucura e a decisão de seus pais de interná-la em um hospício. O relato cru em primeira pessoa, que inclui cenas de pernas e braços de corpos humanos balançando na traseira de caminhões na estrada e seu estupro coletivo por soldados, é também um retrato de abusos e torturas de uma época pré-movimento antimanicomial.

“Lá embaixo” foi ditado por Leonora em 1943, três anos após sua internação, quando já estava estabelecida no México. A sua fala adquire um sentido terapêutico, como se fosse capaz de expurgar ou ao menos atenuar o trauma que alterou para sempre sua compreensão da realidade, um relato não muito distante da via psicanalítica.

“Começou uma nova era com o dia mais terrível e mais negro da minha vida”, disse Leonora. “Sinto uma angústia terrível, mas não posso continuar vivendo sozinha com essa lembrança....sei que assim que escrever, terei me livrado disso.” Era a primeira vez que ela recebia uma injeção de Cardiazol, um indutor de convulsão epiléptica usado antes dos eletrochoques.

Seja na sua produção pictórica, escultórica ou literária, Leonora coloca em primeiro plano essa fissura e intercomunicação entre planos da realidade, onde criaturas indecifráveis, figuras derivadas do folclore celta e das culturas pré-colombianas se inter-relacionam.

Naquele México dos anos 1930 a 1950, uma meca do imaginário da esquerda pré-Revolução Cubana para onde desembarcaram de exilados políticos a artistas como Trótski, Breton, Artaud, Luis Buñuel e Benjamin Péret, Leonora casou-se, teve dois filhos e deu margem à sua associação com o arquétipo de bruxa. Se Paris era uma festa, a Cidade do México era um sonho.

Tão sábia quanto misteriosa, ela fazia omeletes com pedaços de cabelo surrupiados de convidados, retomava a técnica medieval de uso de clara de ovo nas suas telas — elas pareciam brotar, fermentar, de um lugar de onde Leonora não explicava em palavras a pesquisadores e admiradores de sua obra. Com outras artistas europeias expatriadas, Remedios Varo e Kati Horna, criou uma espécie de sucursal feminina e mexicana do surrealismo. “Aquelas vagabundas europeias!” teria dito uma geniosa Frida Kahlo para desdenhar do grupo do qual não fazia parte.

O surrealismo, lembra Alex Januário, da 100/cabeças, não é apenas uma estética ou escola artística. “É um modo de vida, um movimento de emancipação do espírito do homem”, diz. Entre os próximos lançamentos da editora estão “Hebdomeros” (1929), uma rara incursão literária do italiano Giorgio de Chirico, artista da “pintura metafísica”, e uma nova edição de “Nadja” (1928), de André Breton, um dos livros mais queridos do surrealismo.

No dia 25, a 100/cabeças, em parceria com a Capivara Cultural, promove um encontro on-line gratuito via Zoom, das 19h30 às 21h30. É necessário realizar inscrição. O evento inclui aula com o professor Marcus Rogério Salgado, doutor em literatura comparada (UFRJ) e autor dos livros "A vida vertiginosa dos signos" e "A arqueologia do resíduo", e roda de conversa e leitura com a jornalista Juliana Vettore e o time da edições 100/cabeças: Maria Amelia Jannarelli, Alexandre Barbosa de Souza, Elvio Fernandes e Diogo Cardoso.

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Leia a seguir entrevista com a tradutora e professora da Universidade Federal de Santa Catarina Dirce Waltrick do Amarante, que organizou o livro da editora Iluminuras, “Um conto de fadas mexicano e outras histórias”, com Nora M. Basurto Santos, PhD em Linguística Aplicada pela Universidade de Warwick, no Reino Unido.

Valor: Como foi o processo de seleção dos contos? O que a sra. buscou destacar dentro da produção de Leonora Carrington em “Um conto de fadas mexicano e outras histórias”?

Dirce Waltrick do Amarante: Eu e a Nora achamos que os primeiros contos escritos por Carrington deveriam entrar, pois eles fundamentaram o estilo adotado pela escrita. Além disso, alguns dos contos têm um traço autobiográfico bastante forte, como “A Debutante”, que conta a história de uma moça que não quer ir à sua festa de 15 anos, assim como a escritora não quis participar da dela. Esses contos foram escritos em francês, na época em que Carrington vivia na França com Max Ernst, que os ilustrou. Eles formam publicados em 1939. É interessante pensar que Carrington escreveu em três línguas: inglês, francês e espanhol. Então, ter pelo menos um conto de cada língua também foi uma opção nossa.

O México foi a terra escolhida por Carrington, ela mergulhou na cultura mexicana, como se pode perceber em “Um Conto de Fadas Mexicano”, de modo que era outro que não poderia faltar.

“Et in bellicus lunarim medicalis” entra numa questão política da Guerra Fria e das espionagens. Mostra que a escritora estava alerta para o seu entorno político.

“Jemima e o Lobo” é um conto terrível, que nos marcou a mim e a Nora, por isso entrou. Nesse processo de seleção, tivemos o cuidado de ter os contos na língua em que foram originariamente escritos, e eu os traduzi diretamente do francês, inglês e espanhol. A busca implicou um grande trabalho de pesquisa e rendeu muitos achados, que esperamos repartir logo mais com os leitores.

Valor: Por que Leonora ainda é pouco conhecida no Brasil?

Dirce: Carrington é muito conhecida como artista plástica. Assim o é também no Brasil. Como escritora, ela está vindo à tona somente agora, não apenas no Brasil, mas em outros países. A razão dessa “descoberta” tardia eu não sei explicar — talvez por ter feito uma obra plástica muito exuberante, que roubou a cena. Mas está na hora de conhecer essa outra faceta de uma artista extremamente criativa e plural.

Valor: Qual a avaliação que a sra. faz da produção literária de Leonora? Devemos enquadrá-la dentro da produção surrealista, ou se trata de uma autora com uma voz muito própria? Quais são os elementos que a tornam, a seu ver, uma grande autora?

Dirce: Ela é uma escritora extremamente criativa, tem voz própria, tem uma assinatura. Mas, é claro, seus escritos bebem do nonsense vitoriano, do surrealismo, dos contos de fadas irlandeses, dos mitos mexicanos... Ela trabalha com o inusitado, com o desconforto. Ela trata de temas tabus, de temas violentos, mas dentro de uma atmosfera onírica, é um pesadelo do qual podemos acordar a qualquer momento.

Valor: A sra. menciona no posfácio do livro futuros lançamentos de Leonora. Poderia comentar?

Dirce: Pretendemos, Nora e eu, publicar mais alguns títulos. Publicar os contos completos é a nossa meta mais imediata, a Iluminuras já aceitou a empreitada. Depois, tenho muita vontade de traduzir um conto dela para crianças, uma peça de teatro e um romance. Vamos ver. É preciso negociar direitos autorais, ainda mais com a nossa economia em colapso, isso se torna quase impossível. Traduzi dois contos de Eugène Ionesco para crianças (foram publicados pela Martins Editora), tenho os outros três traduzidos e prontos para publicação, mas tudo para nos direitos autorais. Mas quem trabalha com arte e literatura já está acostumado com isso, infelizmente.



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