A pandemia agravou - e muito - as insuficiências do novo poder decorrente, na prática, dos resultados anômalos das eleições de 2018. O sistema conceitual dos novos governantes era simples expressão do senso comum pobre de setores da classe média. Classe eleitoralmente aumentada com os resultados inevitáveis da política social petista e sua retórica socialmente ufanista. Mais fantasia do que realidade. Drenado pelo deslocamento da lealdade de classe dessa classe média sem consistência, o PT criou o vazio político que acabaria preenchido por representantes da mediocridade residual da ditadura militar. Motivados pela aspiração de poder e riqueza, mas frustrada e, por isso, ressentida, pelos logros insuficientes das reduzidas oportunidades de ascensão social da era petista. A classe média emergente, que nutriu, em algum momento, simpatia pelo PT, não era necessariamente petista. Apenas inflava as opções eleitorais por Lula e por candidatos petistas. Mas, à medida que o partido foi perdendo fôlego, ela foi se bandeando para outras formas de radicalismo e de intolerância, escreve José de Souza Martins em sua coluna no Valor, publicada na sexta, 4/6. Continua abaixo.
Além disso, a ascensão social dos setores médios é também alteração de sua consciência social. A referência de classe do seu senso comum se desloca para os valores e concepções das categorias sociais extremistas na valorização do modo de vida a que aspiram. Estamos vendo isso aqui.
No PT e em seus grupos de apoio, especialmente na igreja, a opção preferencial pelos pobres não levou em conta que os pobres não consideram a pobreza uma virtude e, sim, um castigo injusto. Essa premissa teológica não tem condições antropológicas de se transformar numa práxis de superação de contradições e injustiças decorrentes, que revolucione e transforme a sociedade em nome do bem comum.
A práxis tem seus momentos, da descoberta científica e interpretativa de suas condições e possibilidades à complicada tarefa de traduzi-la em prática social transformadora.
Os pobres, como os operários, são protagonistas do processo histórico e das transformações sociais unicamente através de mediações. Se as mediações são frágeis e inconsistentes, não podem levar da teoria à prática, do opressivo ao libertador.
No petismo, o discurso ideológico ainda mantinha algum nexo de inspiração e referência nas revelações da categoria social de sua referência prioritária, a dos trabalhadores e de sua situação social.
No discurso autoritário e antidemocrático do bolsonarismo, o espaço das ideias estava todo aberto à falta de ideias, às manipulações de pseudofilósofos, às simplificações enganadoras de uma visão superficial do mundo, desenraizada.
O bolsonarismo não conseguiu convencer as dezenas de milhões de brasileiros que nele não votaram nas eleições de 2018 de que tivesse alguma virtude política, um projeto de nação, uma bandeira do bem comum.
Em face da possibilidade de um confronto eleitoral, em 2022, entre esquerda e direita, entre Lula e Bolsonaro, para compreender o que pode acontecer é necessário ter em conta a enorme e possivelmente decisiva diferença entre os dois. Lula é um filho do povo, uma criação da história das classes subalternas, um conhecedor do Brasil, da periferia urbana ao país profundo, da nação próspera à nação brasileira da dolorosa exclusão social.
As manifestações antibolsonaristas do sábado, dia 29 de maio, em 270 médias e grandes cidades brasileiras, em favor da vida e do direito do cidadão à vacina e ao auxílio emergencial, foram o primeiro e eloquente grito que retira do governo a discutível e na prática desmentida legitimidade.
Um fato que representa uma reversão na chave que explicava a anômala e irresistível ascensão do bolsonarismo: o governo sobreviveu até aqui por falta de manifestações de rua dos descontentes e das oposições. O respeito às regras de segurança na pandemia fez o vírus da covid-19 um cúmplice só temporário do bolsonarismo.
Alguém comentou, no dia das manifestações, que das cerca de 450 mil vítimas da pandemia, milhares poderiam ter sido salvas se o governo governasse, tivesse mostrado competência política no enfrentamento da doença. Se não tivesse se dedicado preferencialmente à bravata pública em desrespeito às normas sanitárias do bom senso e dos próprios cientistas e médicos.
Em consequência, se é para morrer docilmente fechado em casa, sem a vacinação e as providências correlatas, sem expectativa de que o governo respeite a vida e os direitos da população, então é melhor morrer lutando. A vida emerge como uma necessidade radical, o fenômeno mais decisivo de todas as rupturas políticas na história social.
A ida para a rua pode ser o começo de um grande movimento social pela vida, o do “vamos pegá-los”!
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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