Bolsonaro traçou dois planos para seu futuro político, ambos vinculados à permanência no poder. O primeiro é a aposta na reeleição, com toda uma estratégia para manter sua base mais fiel - próxima de 15% do eleitorado - e ampliar no mínimo mais dez pontos percentuais para garantir uma vaga no segundo turno. Mas o medo em relação à eleição - sobretudo depois da anulação do julgamento do ex-presidente Lula - e a visão autoritária que tem da política levaram o presidente a construir um plano B: é preciso criar um clima populista-golpista no país, seja para mobilizar permanentemente o bolsonarismo-raiz, seja para acuar os adversários, ou então, ainda, como última saída, para inviabilizar a vitória de outro candidato, mantendo-se no Palácio do Planalto a qualquer custo. Pode parecer uma contradição apostar numa via democrática e, ao mesmo tempo, deixar a porta aberta para um possível golpe. Na verdade, o bolsonarismo se sustenta nesta ambiguidade, porque a pressão constante contra o sistema político tem permitido reduzir paulatinamente vários dos controles sobre o presidente e garantido, ademais, uma base fiel capaz de tudo em nome da liderança máxima, chamada de “mito”, escreve Fernando Luiz Abrucio no Valor, em texto publicado na sexta, 11/6. Continua abaixo.
É claro que essa estratégia também contém seus riscos e gerou perdas políticas ao longo do caminho, mas ela é a que se casa mais com o “mindset” de Jair Bolsonaro: ele sempre concorreu a eleições, mas não gosta de ser controlado e quer ter o poder máximo; prefere as guerras culturais em vez da labuta árdua das políticas públicas; e gosta muito mais de fazer a política para a multidão que o obedece do que junto aos outros políticos eleitos. O presidente abraçou um modelo populista que coloca “o povo contra o sistema”. Desse modo, esse perfil ambíguo em relação à democracia é não só um valor pessoal. Trata-se de uma identidade política que lhe garante, estrategicamente, um lugar competitivo na disputa por eleitores.
O plano A, vinculado às eleições, é o preferido, porque garante uma legitimidade maior para quem pretende expandir o próprio poder e reduzir as dissensões e controles. Bolsonaro quer ser reconhecido como o que detém o apoio da maioria, podendo jogar isso contra os adversários, que seriam as minorias, para as quais, na versão bolsonarista da política, só resta a obediência.
O projeto de reeleição conta com alguns importantes trunfos. O primeiro é que o ciclo econômico tem chances de melhorar daqui até a eleição, graças principalmente ao cenário internacional. A demanda pelos produtos agrícolas e minerais está em alta porque a China passará por um período de recuperação de um patamar mais alto de expansão econômica. Além disso, a economia americana deve puxar boa parte do mundo e o Brasil também se beneficiará disso. O paradoxo é que a recuperação dos dois países tem muito a ver com a maior eficácia no combate à pandemia, algo que não é verdadeiro para o caso brasileiro. É como se o mundo nos premiasse quando cometemos muitos erros.
O segundo trunfo é tentar turbinar um novo programa social que substituiria o Bolsa Família. Bolsonaro aprendeu muito com os efeitos do auxílio emergencial, que no ano passado foi o principal responsável pelo seu aumento de popularidade. O erro de não prolongar por mais tempo essa transferência de renda custou caro ao presidente, do mesmo modo que o valor deste ano, muito mais baixo, não está sendo suficiente para recuperar os patamares de apoio. Além disso, a volta de Lula é o maior pesadelo para o bolsonarismo, e é preciso competir pelos votos que o líder petista tem nas classes D e E.
Bolsonaro também sabe que a próxima eleição não será igual à de 2018, quando ele pôde simplesmente aparecer como um outsider contra a “velha política” e centrar sua campanha nas redes sociais. Quando o incumbente concorre à reeleição, ele é o tema principal do pleito e não dá mais para se colocar como o elemento novo do jogo. Logo, no cenário da disputa presidencial de 2022 será preciso ter algumas armas do sistema político, especialmente o apoio de certas lideranças locais e, mais ainda, de um horário eleitoral gratuito maior.
Para conseguir esse tempo de TV e rádio, o presidente fez um pacto com o Centrão em torno da multiplicação de pequenas obras pelo país afora, por meio do clientelismo. Esse é o terceiro trunfo de Bolsonaro, que pretende usá-lo para ter o apoio de dois ou três partidos médios a sua candidatura, embora deseje concorrer por uma legenda pequena de modo a ter o controle familiar sobre sua campanha.
A força eleitoral completa-se com o apoio dos bolsonaristas-raiz e de parcela dos evangélicos, por meio da guerra cultural e moral contra os adversários, pintados como comunistas contrários à família e à religião. A votação desse grupo não garante a ida ao segundo turno, porém, se o plano A falhar, serão esses eleitores que poderão apoiar Bolsonaro em seu plano B, juntamente com o apoio de forças militares e civis que atuariam como milicianos do governante, em estilo bem parecido com o que aconteceu no chavismo e entre aqueles que apoiaram o golpe na Bolívia em 2019.
O plano B precisa existir porque a estratégia eleitoral projetada por Bolsonaro não é líquida e certa. Muito pelo contrário: há várias incertezas e pedras no caminho até 2022. A primeira grande dificuldade está em transformar a melhoria econômica em bem-estar dos eleitores, tanto os de classe média quanto os mais pobres. Houve perda de renda com a inflação, perda de emprego, perda de parentes e amigos com a pandemia, perda de esperança na possibilidade de ter uma vida que já foi melhor no passado recente.
O tamanho da melhoria econômica é, ademais, uma incógnita. Especialmente porque há incertezas em relação ao combate à pandemia e à garantia de energia elétrica. Afora isso, a política ambiental atual afeta o fluxo de investimentos. Um crescimento de 2% a 2,5% é bom em relação aos últimos cinco anos, mas não é um Plano Real nem chega perto do auge do lulismo.
A criação de um novo programa de transferência de renda não significará pagar o mesmo valor do auxílio emergencial. E os eleitores que receberam essa ajuda “polpuda” em 2020 serão lembrados disso pelos outros candidatos durante a eleição. Cria-se, assim, um obstáculo para que Bolsonaro transforme essa ação governamental em apoio eleitoral incondicional.
O mais complicado é que na região com mais beneficiários do Bolsa Família, o Nordeste, há lideranças políticas muito fortes contra o bolsonarismo. São governadores de Estados de partidos diferentes, lideranças regionais que estão no Senado, além de três fortes presidenciáveis: Tasso Jereissati, Ciro Gomes e, sobretudo, Lula, considerado por lá como o “pai dos pobres”. Se todos eles falarem contra o presidente, um muro antibolsonarista pode ser erguido nesses nove Estados.
O estilo de governar de Bolsonaro gera votos numa parcela da população, mas igualmente tem levado à perda definitiva de um conjunto muito grande de eleitores. O presidente é cada vez mais rejeitado pelas classes médias do Sul e do Sudeste, como também por boa parte dos mais pobres das regiões metropolitanas do país, em lugares onde movimentos sociais estão crescendo frente ao aumento da vulnerabilidade social. Para estes dois públicos, há um forte desgaste em relação ao fracasso na pandemia - evidenciado semanalmente pela CPI -, à destruição do meio ambiente, ao descaso com a educação e a cultura, às manobras escusas para salvar a família presidencial de investigações, bem como um certo cansaço do populismo agressivo e personalista do presidente.
No balanço dos fatores favoráveis e desfavoráveis, Bolsonaro é um candidato competitivo, mas que muito dificilmente terá o mesmo contingente de votos de 2018. Isso significa, na hipótese positiva, uma vitória em segundo turno muito apertada, similar ao cenário de 2014, quando Dilma venceu Aécio por um triz. O resultado disso foi muito descontentamento social e um governo fragilizado. Já a hipótese negativa é a derrota, que pode ser numa eleição acirrada ou por uma vantagem mais larga, caso o governo erre muito em questões sensíveis ao Nordeste, às classes médias urbanas e aos mais pobres das periferias metropolitanas.
Diante destes cenários eleitorais, o plano B é a forma pela qual Bolsonaro combina seus valores autoritários com sua estratégia política. Afinal, ele pode ganhar por pouco ou não ganhar, por isso deslegitimar adversários, a mídia e as instituições constitui um modo de emparedar parte da classe política (e dos eleitores), deixando no ar a possibilidade de mobilizar seu séquito para garantir que o poder fique com quem de fato “representa o povo”. Pode ser um blefe ou, se necessário, uma tentativa de golpe. Assim, um clima golpista permanente e crescente até as eleições presidenciais é o elo que junta os dois planos políticos bolsonaristas - o eleitoral e o da quebra da democracia.
Não é possível agora prever o desfecho desta estratégia. O que se sabe é que os próximos 18 meses serão os mais tensos em termos políticos desde o fim da ditadura militar. E Bolsonaro criará várias provocações diversionistas no meio do caminho, como discutir o voto impresso ou a Copa América, para que o clima populista-golpista seja reinante no país, garantindo a reeleição ou evitando que outro assuma o poder em 2023.
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente
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