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Como é a vida nos países onde a pandemia está quase domada

Sessenta e oito milhões de vacinas depois, a inusitada história do menor cinema do Reino Unido ganha novo capítulo a partir do mês que vem, quando o espaço quase portátil reabre as portas para o público. O Sol Cinema comemorou fechado sua primeira década de existência no ano passado. Não havia meios de receber espectadores com qualquer tipo de distanciamento social. O pequeno trailer, que serviu de galinheiro até 1972, é hoje uma saleta de apenas oito lugares movida a energia solar. O retorno promete ser grandioso. Pouco antes da reabertura oficial, foi o cenário do lançamento internacional do novo documentário da banda inglesa Madness - feito que pode parar nas páginas do Guinness Book como a menor avant-première do mundo. “Para julho, temos reservas de eventos privados e um grande festival, o Camp Bestival. Difícil saber como será daqui por diante, mas nos adaptamos a muitas situações. Funcionamos em fazendas e fábricas, nas ruas ou no zoológico. Somos versáteis”, disse ao Valor Paul O’Connor, produtor e cofundador. Sem esconder o entusiasmo, ele destaca que o mais importante é voltar a reunir as pessoas de maneira segura. “Nós, como todas as espécies, nos adaptamos”, afirmou. É com esse espírito que os britânicos vão se acostumando a novas liberdades proporcionadas pela realidade pós-pandêmica. Com mais da metade da população adulta totalmente vacinada (quase 80% já receberam uma dose de imunizante), o país está em vias de suspender as restrições sanitárias que ainda seguem em vigor. O fim do terceiro e - se tudo der certo - último confinamento, imposto à população em 4 de janeiro, está previsto para o dia 21 de junho, escreve Vivian Oswald, de Londres, para o Valor, em texto publicado dia 11/6. Continua a seguir.


Junto com o acelerado e bem-sucedido programa de vacinação, o lockdown foi responsável por uma queda brutal nas estatísticas de infecções, hospitalizações e óbitos pelo novo coronavírus no país, o mais afetado pela doença na Europa em números absolutos. Em 1º de junho, os britânicos comemoraram o primeiro dia sem mortes por covid-19 desde que tudo começou, em março do ano passado. Dias depois, a agência sanitária nacional aprovou a imunização de adolescentes com o antígeno da Pfizer.

Investimentos milionários foram feitos nos últimos meses para garantir a segurança da população na reabertura nesta era pandêmica. As áreas internas dos restaurantes voltaram a ser frequentadas desde 17 de maio, assim como hotéis, museus, teatros e cinemas. Estes últimos ainda não viram o retorno do público, que, por medo de novas ondas de infecções, ainda tem mantido a preferência pelos canais pagos de televisão e streaming a partir do sofá de casa. Por isso, as grandes produtoras e cadeias de cinemas estão apostando todas as fichas nos lançamentos dos blockbusters, que estavam em suspenso durante todo o período da pandemia, para atrair de volta os aficionados. É o caso do novo filme de James Bond, “Sem Tempo para Morrer”, o último estrelado por Daniel Craig, que deveria ter saído em abril do ano passado, mas foi adiado para setembro deste ano no Reino Unido. É com as grandes bilheterias que o setor pretende recompor as finanças. Maior cadeia britânica, a Cineworld já estima uma recuperação de até 90% do movimento pré-pandemia neste ano.

O movimento incessante de automóveis e transeuntes voltou às ruas de Londres, assim como o burburinho diante dos pubs no fim do dia. “Nada parecido com o que era antes ainda”, queixa-se o dono de um café nos arredores da praça Trafalgar. Por enquanto, a ordem é que quem puder continue trabalhando de casa. E a estimativa é que um percentual importante da população tenha tomado gosto pelo fim dos deslocamentos estressantes do dia a dia e se mantenha em teletrabalho mesmo depois da crise.

A pandemia transformou uma das capitais mais cosmopolitas do mundo e criou vazios que começam a ser discutidos por governos locais e urbanistas. A City, como é conhecido o centro financeiro de Londres, viu muitos metros quadrados de escritórios desaparecerem nessa que até então era uma das áreas mais valorizadas da cidade. Todo mundo que importa tinha de estar ali. Não necessariamente nos dias de hoje.

Não por acaso, os preços para compra e aluguel de imóveis fora da capital dispararam. Enquanto propriedades em Londres registraram pequena queda de até 5%, os valores para endereços num raio de 25 a 40 quilômetros da capital subiram mais de 20% nos últimos meses. “Nesta época do ano, era para eu ter umas 150 casas para alugar. Tenho uma. Evaporaram”, diz o corretor Jonathan Sands, que atua nas imediações de Maidenhead, no condado de Berkshire, a 25 minutos de trem de Londres.

Pelas ruas da capital, as torres de álcool em gel na Regent Street, uma das artérias comerciais da capital, ou os adesivos que marcam o distanciamento para filas dentro e fora de estabelecimentos vão continuar lembrando as pessoas do risco de contaminação pelo vírus que infectou 4,5 milhões de pessoas e matou 128 mil no Reino Unido. Nos painéis luminosos de Picadilly Circus, a mensagem é para que todos sejam imunizados. “Cada vacina nos traz esperança. Junte-se aos milhões já vacinados”, pedem os letreiros, que se misturam aos das grandes marcas na tentativa de atrair a atenção do transeunte que aos poucos volta a apinhar as principais avenidas da cidade.

Não muito distante dali, em um endereço privilegiado no centro, a Whittard, tradicional loja de chá, não hesitou em montar uma pequena banca na porta para que as pessoas experimentem seus produtos. Sabem que nem todo mundo está muito disposto a frequentar o interior dos estabelecimentos fechados como antigamente. A pandemia também foi a grande desculpa para que a cidade apostasse em soluções mais verdes. Caminhos exclusivos criados nos últimos meses encheram Londres de bicicletas e patinetes elétricas.

A preocupação dos britânicos agora é com as férias, canceladas desde o ano passado, ou com a possibilidade de voltarem a frequentar restaurantes e pubs, uma paixão nacional. “Estava tudo bem?”, pergunta o garçom a um casal que pagava a conta na varanda do The Fleece, em Witney, no condado de Oxfordshire. “Ainda que não estivesse. Só de poder me sentir normal novamente fico emocionada. Já valeu o fim de semana”, responde Sarah Biggen. No banheiro do estabelecimento, no entanto, o lembrete de que a vida mudou: “Se alguém estiver usando a pia, espere aqui Lembre-se de lavar as mãos por 20 segundos. Cante! - algumas das nossas canções preferidas são: ‘The Pina Colada Song’, ‘Baby One More Time’, ‘Africa’, de Toto”.

O avanço da variante Delta, como passou a ser chamada a cepa do novo coronavírus surgida na Índia, hoje dominante entre os casos de contaminações diárias no Reino Unido, é motivo de preocupação e pode adiar os planos do governo do primeiro-ministro Boris Johnson. Em princípio, em um par de semanas. Nas últimas duas semanas, as novas contaminações diárias voltaram a crescer. Quase dobraram. Por enquanto, sem que aumentem as internações e óbitos. Isso é indício de que a maior programação de vacinação da história do país - que comprou mais de 500 milhões de doses de sete imunizantes diferentes para uma população de 66 milhões de habitantes - pode estar surtindo efeito. No entanto, é também a confirmação de que a erradicação da doença está muito longe do fim. Modelos epidemiológicos indicam que o planeta vai ter de conviver por pelo menos mais dez anos com o vírus, que deve acabar se tornando endêmico, como aconteceu com outros tantos ao longo dos séculos.

Mesmo assim, as pessoas não disfarçam o alívio de poder ter suas vidas de volta, depois de muitas idas e vindas. Num país em que preservar a privacidade do cidadão é fundamental (por isso não existem carteiras de identidade), o desejo de retomar a normalidade já levou boa parte dos nacionais a concordar até mesmo com a ideia do passaporte verde como condição para se frequentar ambientes fechados e viajar. Cerca de 67% das pessoas ouvidas pela pesquisa realizada pela Opinium já não se opõem ao documento. Ninguém mais se incomoda em fazer o check-in no programa de rastreamento da covid-19 do NHS, o sistema gratuito de saúde nacional, ao entrar em ambientes fechados.

Em Israel, nem isso mais tem sido necessário. Foram abolidos os passaportes verdes cobrados dos cidadãos e suspensas as restrições que limitavam a taxa de ocupação de diversos estabelecimentos e eventos. Restaurantes, academias de ginástica, cinemas, entre outros, voltaram a operar como antes. Isso vale para os transportes públicos e escritórios. Com 56,7% da população totalmente imunizada e 60,3% tendo recebido uma primeira dose, o país talvez seja o que mais próximo conseguiu chegar da normalidade pré-pandêmica - não fosse a espiral de violência entre israelenses e palestinos nas últimas semanas. O número de novos casos diários está em apenas um dígito pela primeira vez em mais de um ano. Mesmo a obrigação do uso de máscaras em ambientes fechados está com dias contados. Termina no dia 15 de junho. “Não se pensa mais nisso. Ninguém mais tem medo. As pessoas estão vivendo a vida exatamente como era antes”, diz o jornalista Amichai Stein, da Kan TV, que vive em Tel Aviv.

No último domingo, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e o ministro da Saúde, Yuli Edelstein, participaram de cerimônia em homenagem aos profissionais do sistema de saúde e agências parceiras pela contribuição que deram na luta contra o novo coronavírus. O evento, que contou com a participação do CEO da Pfizer, Albert Bourla, poderia ter sido chamada de “festa de despedida da covid-19”, segundo Stein. O executivo, que participou por videoconferência, disse que em nenhum outro lugar do mundo a cooperação entre a ciência e o governo foi tão eficiente. Restrições para viagens seguem em curso.

Israel e Reino Unido são os dois campeões de vacinação no mundo como proporção da população. Países onde a imunização aperta o passo também começam a relaxar as restrições. Nos Estados Unidos, Nova York prepara um megashow no Central Park em agosto para celebrar o retorno a uma vida mais normal. Os shows da Broadway retornam em setembro. A França acaba de reabrir as áreas internas de restaurantes. A Itália, que marcou as primeiras imagens de despejo de sobrecarga do sistema público de saúde no último ano, comemora a reabertura de cinemas. A recuperação pode estar sendo mais rápida do que se imaginava. Dados da Uber indicam que, por toda a Europa, as reservas de corridas para a semana que começou no dia 17 de maio já recuperaram mais de 80% dos níveis registrados no mesmo período de 2019.

Aos poucos, as viagens começam a ser retomadas entre países considerados seguros. As barreiras, contudo, devem continuar para as nações que ainda não conseguiram conter a pandemia em território nacional, como é o caso do Brasil e da Índia. O passaporte da vacina tem se confirmado item essencial da nova realidade. A partir desta semana, os franceses vão permitir a entrada de britânicos totalmente imunizados (por enquanto, sem abrir mão do teste PCR).

No entanto, não são só as campanhas bem-sucedidas de vacinação que começam a garantir a volta à normalidade. Na China, desde o início da pandemia, surgida na cidade de Wuhan, a ordem foi conter o avanço do vírus. Prédios, ruas, bairros e cidades inteiras foram fechados para evitar as novas contaminações. Postos de checagem foram montados e desmontados em questão de horas. O país continua praticamente fechado para estrangeiros. A quarentena para quem vem de fora é das mais rigorosas. São 21 dias em hotéis determinados pelo governo, com a checagem de temperatura e sintomas dos hóspedes múltiplas vezes por dia. Por alguns meses, Pequim ficou inacessível para os trabalhadores que moravam fora da capital.

Só depois de tantas restrições e de um rigoroso programa de rastreamento da população é que as pessoas puderam ter a atual sensação de retomada da vida normal. Com uma média de 56 vacinas para 100 habitantes, a China segue sendo o país com o maior número absoluto de doses aplicadas no mundo (763 milhões até o dia 5 de junho).

Há um ano e dois meses, o designer gráfico brasileiro Luciano Drehmer mudou-se para Shenzhen, cidade de quase 13 milhões de habitantes, que ficou conhecida como o Vale do Silício chinês. Logo depois de ele cruzar a fronteira, o país fechou as portas para os estrangeiros. “Ninguém entra desde então. Não se vê estrangeiro novo. É um dos lugares mais seguros do mundo para se estar agora. É como se eu estivesse na Arca de Noé. O mundo segue num dilúvio, e aqui, uma paz”, brinca. Ele afirma que amigos e familiares no Brasil e em outros países não acreditam nas fotos que costuma publicar nas redes sociais. Drehmer afirma que, aos poucos, as pessoas vão tirando as máscaras. A tecnologia ajudou a domar o vírus. “Você entra no shopping, tem que escanear o QR. Se tiver caso, você vai ser chamado. Aí fecham os lugares. Isso é a única coisa que não é normal. Metrô escaneia, prédio da empresa também. Não precisa da vacina para controlar. Por isso ninguém está com muita pressa. Eles querem saber se, nos lugares por onde você passou, passou alguém infectado nos últimos dias”, diz.

Ele voltou a frequentar a academia de ginástica e até shows. “Se eu quiser fazer uma festa ou evento cultural, primeiro tem que ir à polícia e pedir autorização. Até 50 pessoas. Tem restrições ainda. Fui num jantar no mês passado que tinha 500 pessoas no salão. Todo mundo sem máscara. Fui a um show de jazz aqui em Shenzhen com umas 150 pessoas”, conta. Até o bairro da balada, segundo ele, voltou a fervilhar. O Coco Park, como é conhecido pelos estrangeiros, já não teme as aglomerações. À moda chinesa: tem policiais na entrada, que fazem as checagens. “Em uma mesma noite, passei por mais de um lugar no Coco Park sem problemas”, conta.

Qualquer um pode ser testado a hora que quiser. Mas não se entra em hospital sem teste, que é feito na porta para que o paciente seja autorizado a entrar. “No começo, era assim até em farmácia. Se comprar qualquer medicamento relacionado a sintoma, tem que fazer declaração de todos os sintomas na farmácia e tem que assinar, porque, se estiver comprando remédios, mentindo, já era”, diz. Aos poucos, no entanto, até essas restrições estão sumindo. “Todo mundo completamente tranquilo”, completa.

Na Nova Zelândia, onde o ritmo da vacinação ainda é lento em comparação com outros países ricos, a estratégia do governo também foi a de interromper o ritmo das contaminações a partir de restrições sanitárias e distanciamento social. Até 5 de junho, apenas 4,8% da população estava totalmente imunizada. Outros 8,8% tinham recebido pelo menos uma dose. Segundo especialistas, a nação de 5,5 milhões de habitantes fez a opção clara pela erradicação do vírus, o que costuma ter um preço alto para a economia e a população. Mas foi assim que conseguiu rapidamente retomar a normalidade possível.

“Desde maio do ano passado, eu me sinto seguro. Levo uma vida normal na maior parte do tempo”, diz o empresário brasileiro Luis Otavio Porto, que vive desde o fim de 2017 em Auckland, a maior cidade do país e principal porta de entrada do vírus no ano passado. No mês passado, ele esteve em um evento aberto ao público que reuniu 4 mil pessoas, sem necessidade do uso de máscaras ou distanciamento. “Quando tudo começou, o governo da Nova Zelândia agiu muito depressa e de maneira muito dura. Houve um lockdown logo no final de março de 2020 que permaneceu por quatro semanas”, conta.

“Eu trabalho na indústria de eventos, que foi diretamente impactada. O país tem um comportamento muito específico para os negócios. É muito pessoal, tem por base encontros cara a cara, até pelo próprio tamanho do país. Mesmo esse setor mudou. As pessoas entendem agora que um evento pode acabar atrasado, mudar data ou virar virtual. A população entendeu a mensagem. Esse é o preço que a gente paga para poder viver a nossa vida normalmente, dentro do possível”, afirma.

Os restaurantes podem ser frequentados sem máscara se os níveis de alerta estiverem baixos. Neste momento, em uma escala de 1 a 4, o país segue em 1. A ordem é garantir vida normal para a comunidade, o que não impede confinamentos localizados ou medidas restritivas sempre que surgir um novo caso. O país também criou um aplicativo de rastreamento que é mais usado em situações de maior risco. Ele também prevê o check-in de pessoas em ambientes fechados, como restaurantes, a partir de um código QR. Desde o início da pandemia, a Nova Zelândia registrou 2.682 casos de contaminação e 26 mortes.

Atualmente, a maioria dos novos casos encontrados no país é identificada nos estabelecimentos de quarentena de quem chega de fora. As fronteiras permanecem fechadas para o resto do mundo. No entanto, neozelandeses e australianos firmaram um acordo a partir do qual criaram um corredor para viagens entre os países sem restrições. O entendimento passou a valer em abril de 2021, quase um ano depois de as duas nações se isolarem por medo da covid-19. A Austrália também adotou a estratégia de tolerância zero ao vírus.

Porto já não viaja para o exterior, como a grande maioria da população, e não tem previsão de ir ao Brasil, onde tem família. “A gente abriu mão de liberdades individuais? Sem dúvida. Mas todos entenderam que esse é o preço a pagar”, conclui.

Por mais que centenas de milhões de pessoas comecem a ver luz no fim do túnel e a sonhar com a vida como ela era, especialistas afirmam que as incertezas ainda são muito grandes, mesmo nos países onde o vírus parece estar sob controle. Altos e baixos devem marcar a retomada da normalidade. Em seminário organizado pela Sociedade Real de Medicina do Reino Unido, o professor Robin Shattock, especialista em infecções e imunidade de mucosas da Faculdade de Medicina do Imperial College, afirmou que, apesar do sucesso continuado da campanha de vacinação no Reino Unido, o público não pode achar que está vivendo em uma “fortaleza”, porque o resto do mundo ainda precisa ser vacinado.

“A pandemia mudou para sempre a maneira como a gente funciona? Possivelmente. Mas aí o mundo gira, as coisas mudam e as espécies se adaptam. É assim que temos sobrevivido. A mudança do clima é uma ameaça ainda maior. Todos vamos ter de nos adaptar. Enchentes, secas, tempo errático. Ainda não vimos uma resposta em escala global como a pandemia, mas ela também será necessária”, sentencia O’ Connor, do Sol Cinema.



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