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“Sou eu aqui”: como Paulo Guedes se aferrou ao governo de um presidente nada liberal

Vale a pena ler o longo texto de Ana Clara Costa publicado na edição deste mês da revista Piauí. Integra abaixo. 


O banqueiro Luiz Cezar Fernandes estava em Nova York em fevereiro de 1985 quando recebeu uma ligação de seu sócio no Banco Pactual, Paulo Guedes, avisando que deixaria a sociedade para trabalhar no governo do presidente Tancredo Neves. Guedes fora convidado para ser diretor do Banco Central e estava decidido a aceitar. Fernandes pegou o primeiro voo disponível para o Rio de Janeiro a fim de dissuadir o parceiro.

– Você não vai de jeito nenhum – disse, gesticulando ferozmente, na sede do banco no Centro do Rio.

– Mas você sabe que é o sonho da minha vida – retrucou Guedes.

– Você não vai! – alterou-se Fernandes, taxativo.

Guedes nunca escondera seu sonho. “Ele estudou a vida toda para ser governo”, rememora o banqueiro e ex-sócio. Na época, Guedes estava com 36 anos, já tinha doutorado na Universidade de Chicago, lecionara na Universidade do Chile, então sob intervenção militar da ditadura de Augusto Pinochet, e trabalhara em instituições de renome, como a Fundação Getulio Vargas (FGV). Mas nunca antes sua ida ao governo se tornara tão factível como naquele início de 1985. Convencido de que não conseguiria demover o sócio, Fernandes disse então que ele tentasse melhorar a proposta. Em vez de ocupar a diretoria que lhe fora oferecida, a de Mercado de Capitais, sugeriu que pedisse a da Dívida Pública, mais alinhada com seus interesses em política fiscal. Mas o futuro presidente do BC, o economista Antônio Carlos Lemgruber já convocara outro economista, José Júlio Senna, para comandar a Dívida Pública.

Aos poucos, a insistência de Guedes em impor sua visão sobre como o BC deveria operar foi criando um mal-estar nas reuniões que precederam o anúncio da nova equipe. O próprio Lemgruber passou a ter dúvidas se o perfil de Guedes, um estrategista, seria o ideal para uma função meticulosa, cujo objetivo era eliminar amarras e modernizar o funcionamento da indústria de fundos.

No dia 28 de fevereiro daquele ano, Guedes cancelou de última hora uma palestra – na qual foi substituído pelo colega e amigo Roberto Castello Branco – para atender um chamado urgente de Brasília. Suspeitava-se que a viagem às pressas selaria sua entrada no governo. Na capital federal, no entanto, Guedes surpreendeu quase todos ao recusar o convite de Lemgruber. (Daí em diante, as versões divergem. Duas fontes garantem que, um dia depois de recusar o cargo, Guedes repensou a decisão e voltou atrás. Ligou para Lemgruber para dizer que aceitava o cargo, mas foi informado de que a vaga já estava ocupada por Castello Branco, justamente o amigo que o substituíra na palestra do dia anterior. Guedes, no entanto, garante que não voltou atrás.)

Passaram-se mais de três décadas até que Paulo Roberto Nunes Guedes, hoje com 71 anos, finalmente fosse para o governo. Em novembro de 2017, quando se uniu à caravana de Bolsonaro depois de constatar que o apresentador Luciano Huck não seria candidato à Presidência, Guedes tinha duas certezas: era preciso convencer Bolsonaro a apoiar suas posições liberais e, se não conseguisse fazer direito seu trabalho como ministro da Economia, não haveria razão para ficar. Hoje, decorridos dois anos e meio no cargo, o economista que chegou a Brasília com a fama de “superministro” está menor e com suas certezas abaladas. Bolsonaro já não se preocupa em apresentar-se como um convertido ao liberalismo e Guedes continua no cargo porque acha que sua saída produziria uma catástrofe nacional.

No final de 2017, depois de selar sua entrada oficial na equipe de Bolsonaro, Guedes marcou um almoço com o economista Marcos Cintra no restaurante O Navegador, no Clube Naval do Rio de Janeiro. Os dois haviam se encontrado apenas uma vez, na solenidade de formatura de suas filhas, nos Estados Unidos. No almoço, foram descobrindo que tinham ideias parecidas sobre macroeconomia e decidiram montar um grupo para elaborar o plano de governo de Bolsonaro. Naquela altura, Adolfo Sachsida, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um admirador de Bolsonaro, já integrava o grupo. Na primeira reunião, no escritório de Guedes na gestora Bozano Investimentos, num edifício comercial no Leblon, o futuro ministro anunciou que outros nomes se juntariam à turma. Trouxe, então, os economistas Rubem Novaes e Roberto Castello Branco. Como Guedes, eles haviam estudado na Universidade de Chicago, celeiro de liberais nas décadas de 1970 e 1980. Em seguida, nova adesão: o economista Carlos Alexandre da Costa, então diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Desde o início, havia uma preocupação: a “educação de Bolsonaro”. Como o então candidato construíra uma carreira dedicada a defender quartéis, policiais e estatais, tudo emoldurado por uma peroração nacionalista, havia dúvidas sobre a sinceridade de sua conversão ao novo credo econômico. “Paulo é um liberal convicto e eu sou um liberal não tão convicto”, diz Marcos Cintra, ao comentar aqueles tempos. “Eu sou de Harvard, Paulo é de Chicago. Eu sou liberal, pero no mucho. Então, a nossa primeira obrigação era a educação de Bolsonaro, familiarizá-lo com a doutrina liberal, com a economia.” Cintra lembra que todos tinham dúvidas. “Ficávamos com aquela pulguinha: ‘Será que ele vai comprar essas coisas?’ Eu dizia: ‘A trajetória dele vocês sabem qual é. Precisamos fazer a cabeça dele primeiro. Sem a liderança acreditar no que está sendo feito, não vamos conseguir.’” Guedes respondia que daria um jeito.

Com a corrida eleitoral já avançada, a equipe foi crescendo. Roberto Campos Neto ligara para Guedes pedindo para fazer parte do grupo. Na época, ele era responsável pela tesouraria do Santander. Entraram também Pedro Jobim, que trabalhara no mesmo banco, e Gustavo Montezano, ex-sócio do BTG Pactual. A única mulher era a economista Solange Vieira, especializada em assuntos previdenciários. A cada um que se juntava ao grupo, Guedes repetia seu discurso e garantia que Bolsonaro estava mudando. A equipe cresceu com a adesão do empresário Salim Mattar, dono de uma locadora de automóveis, do tributarista Paulo Uebel e do economista Pedro Guimarães. Guedes lhes dizia que Bolsonaro era uma pessoa simplória, mas com boas intenções, e que tinha maus modos, mas bons princípios. Em caso de vitória eleitoral, falava que, na condição de ministro da Economia, trabalharia para as próximas gerações, não para as próximas eleições.

Um dos últimos a chegar foi o empresário Guilherme Afif Domingos, para quem Guedes montara um plano de governo quando ele se candidatou a presidente em 1989. Em 2014, Afif apresentara Guedes à então presidente Dilma Rousseff, que procurava um substituto para Guido Mantega. A conversa entre Dilma e Guedes não avançou. Três anos depois, quando Guedes convidou Afif para integrar o grupo que se reunia às quartas-feiras no Leblon, ele disse que estava comprometido com o Sebrae, a entidade de apoio às micro e pequenas empresas que presidia, e declinou. Ao final de 2018, o futuro ministro voltou à carga e, numa ligação, disse: “Olha, nós sonhamos isso juntos lá atrás. É a nossa proposta liberal. É a primeira grande proposta liberal que apareceu no Brasil. Eu quero você livre, leve e solto. Porque nós sonhamos esse sonho juntos e agora temos de realizá-lo.” Com a posse, Afif virou assessor especial do ministro.

Um integrante desse núcleo, que pediu para não ser identificado, recorda que duvidou da viabilidade de se executar um plano liberal com Bolsonaro no poder. Mas, segundo ele, Guedes era “tão convincente” que as declarações corporativistas, as falas radicais e o despreparo do candidato eram frequentemente nublados pela promessa de carta branca do futuro ministro. “Eu já tinha em mente quem comporia a equipe. Estava preparado. Imaginava as dificuldades, mas como eu estava fazendo o que queria, resolvi topar e trabalhar no meu canto. Mas a realidade foi diferente. Bolsonaro se tornou muito diferente daquele de 2018. Ele se sentiu com mais poder. Guedes tentou convencer a todos de que melhoraria o Bolsonaro, mas foi uma ilusão. Quem domina é o Bolsonaro”, diz esse ex-integrante dos quadros da equipe.

Todos os catorze membros originais do grupo ganharam cargos no governo, mas seis já foram embora. A primeira interferência direta de Bolsonaro nas decisões de Paulo Guedes aconteceu em junho de 2019, quando o presidente mandou demitir Joaquim Levy da presidência do BNDES. Bolsonaro estava obcecado com a ideia de “abrir a caixa preta” do banco para expor os esquemas de corrupção dos governos do PT, mas Levy não dava muita bola para o assunto. Em 15 de junho, numa conversa com apoiadores na porta do Palácio da Alvorada, Bolsonaro disse que Levy não vinha sendo “leal àquilo que foi combinado” e anunciou que ele estava com “a cabeça a prêmio”. Levy não aceitou a humilhação pública e pediu demissão no mesmo dia. (A “caixa preta do BNDES”, devidamente aberta, não trouxe nenhuma novidade sobre escândalos petistas. Bolsonaro nunca mais tocou no assunto.)

A saída de Levy acendeu o alerta na equipe econômica sobre a carta branca que Guedes recebera do presidente – embora o próprio ministro não tivesse movido uma palha para mantê-lo à frente do BNDES. Guedes achava que Levy não estava engajado no programa bolsonarista. Mas, no segundo semestre do ano, o alerta voltou a piscar. Com a explosão dos protestos no Chile, motivados pela alta no preço das passagens de metrô, Bolsonaro ficou com receio de que algo semelhante ocorresse no Brasil com a reforma administrativa – à qual o grosso do funcionalismo público se opõe – e resolveu suspender sua tramitação no Congresso. Também barrou o início da discussão sobre a reforma tributária e, ignorando os apelos de Guedes, presenteou as Forças Armadas, policiais militares e agentes de segurança com uma reforma previdenciária mais branda do que a dos demais brasileiros. Com essas travas, Bolsonaro frustrou os planos do ministro de fechar o primeiro ano de governo com três reformas encaminhadas.

Marcos Cintra, que dirigiu a Receita Federal até setembro de 2019, recorda que a polêmica em torno da recriação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira mostrou a ascendência de Bolsonaro sobre a agenda econômica. Guedes sabia que o presidente era contra o tributo, mas apostava que, com a reforma tributária tramitando no Congresso, conseguiria convencê-lo da necessidade de ressuscitar a CPMF para ajudar a custear a desoneração da folha de pagamento das empresas do setor de serviços. Não deu certo. “É difícil discutir temas econômicos com Bolsonaro”, diz Cintra. “Eu despachava com uma certa frequência com ele e falava: ‘Presidente, nós precisamos introduzir isso, é um elemento fundamental na reforma tributária e vai desonerar o setor de serviços.’ Aí, ele me dizia: ‘Convença a sociedade que eu topo.’ Ele quer ser convencido pela sociedade e não é isso que se espera de um líder político. O líder guia a sociedade.”

No dia 10 de setembro de 2019, o auditor Marcelo de Sousa Silva, auxiliar de Cintra na Receita Federal, deu uma palestra e exibiu alguns slides. Em um deles, apareceu uma referência a um “imposto sobre transações”. “No dia seguinte, saiu uma manchete nos jornais dizendo que o governo pretendia recriar a CPMF. O presidente acabara de ser operado no hospital Vila Nova Star, em São Paulo, e teve um chilique. Ligou pro Paulo e disse: ‘Paulo, você está louco? Eu já disse que não quero CPMF’”, conta Cintra. Ao perceber que não conseguiria fazer a reforma que pretendia, Cintra pediu demissão. “E o Paulo disse: Tá bom.” (Em abril passado, a reforma tributária foi finalmente enviada ao Congresso. Guedes sugeriu ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que a fatiasse, deixando a discussão da CPMF para a última fase. Assim, ganha tempo para ressuscitar o tributo, mas tem evitado mencionar seu plano ao presidente.)

O momento mais crítico da queda de influência de Guedes deu-se em fevereiro passado, quando Roberto Castello Branco foi demitido da presidência da Petrobras. Sua gestão vinha sendo elogiada pelo mercado: vendeu uma refinaria, manteve a política de preços flutuantes e fechou um acordo de compensação com o Ministério de Minas e Energia que garantiu 6,5 bilhões de dólares à estatal. “Ele queria vender ativos e sabia o que tinha de fazer: ir ao Tribunal de Contas da União, ir ao Supremo Tribunal Federal. Ele sabia que privatizar requeria um trabalho político”, avalia um técnico que acompanhou o processo e hoje trabalha no mercado financeiro. Castello Branco, no entanto, começou a naufragar no momento em que a pressão dos caminhoneiros contra a alta do preço do diesel chegou ao Palácio do Planalto.

Em janeiro, o executivo deu uma entrevista afirmando que a insatisfação dos caminhoneiros “não é um problema da Petrobras”. Bolsonaro não gostou da declaração. “Ó, esse cara não vai ficar aí, não”, avisou, em conversa com Guedes. A milícia digital bolsonarista então passou a difamar Castello Branco, espalhando fake news. Uma delas dizia que sua nora fora promovida a gerente da Petrobras, embora o economista não tenha noras. Só tem filhas e enteadas, todas casadas com homens. No dia 5 de fevereiro, deixou sua casa em Nogueira, na Região Serrana do Rio, onde estava confinado desde o início da pandemia por fazer parte do grupo de risco, para atender um chamado de Brasília. No gabinete do presidente, usando máscara e óculos de proteção, procurou sentar-se longe de todos, inclusive do presidente. A conversa com Bolsonaro ocorreu em bons termos. Castello Branco expôs as razões para não interferir no preço do diesel e o presidente pareceu concordar com as explicações. Mas um detalhe deixou Bolsonaro irritado, segundo um dos presentes: o cuidado de Castello Branco com o vírus.

Duas semanas depois, aconteceu mais um reajuste nas refinarias: 14,7% para o diesel e 10% para a gasolina. A situação ficou insustentável. Bolsonaro disse a Guedes que Castello Branco não ficaria mais na estatal. A despeito das notícias antecipando sua queda, o executivo não pediu demissão. Guedes lhe pediu então que redigisse uma carta comunicando sua saída, mas o executivo não atendeu ao pedido. Depois de Bolsonaro anunciar o nome do sucessor de Castello Branco no Facebook, o pregão da Bolsa de Valores abriu a segunda-feira em pânico. A Petrobras perdeu 70 bilhões de reais em valor de mercado. Em conversa com apoiadores na porta do Alvorada, Bolsonaro espezinhou o demitido, dando vazão à sua irritação com os cuidados sanitários do economista. “O atual presidente da Petrobras está há onze meses em casa, sem trabalhar. Trabalha de forma remota. O chefe tem de estar na frente, bem como seus diretores. Isso para mim é inadmissível.”

Guedes queria manter Castello Branco, mas ficou em silêncio. Nem defendeu o amigo do insulto de que ficara onze meses “sem trabalhar”. Duas semanas depois da demissão, em sua primeira manifestação sobre o tema, disse numa entrevista à rádio Jovem Pan que o efeito econômico da demissão fora “ruim”, mas era “compreensível politicamente”, pois o presidente estava atendendo aos caminhoneiros, que compõem parte relevante do seu eleitorado. Castello Branco saiu magoado e, desde então, não falou mais com Guedes. A um interlocutor de sua confiança, disse ter a impressão de que o ministro não deixará o cargo, a não ser que Bolsonaro queira.

Além das demissões forçadas por Bolsonaro, Guedes perdeu outros auxiliares que deixaram de acreditar na execução de sua agenda econômica. Paulo Uebel saiu da Secretaria de Desburocratização quando a reforma administrativa foi enterrada. Salim Mattar foi embora porque não conseguiu encaminhar a privatização dos Correios e da EBC, a empresa de comunicação. Rubem Novaes saiu da presidência do Banco do Brasil quando percebeu que a privatização da instituição estava engavetada. Dizia que a venda da participação do governo no BB renderia, quem sabe, até 100 bilhões de reais. O sucessor de Novaes, André Brandão, também já deixou o cargo. Sua demissão foi provocada por Bolsonaro, que não gostou de seus planos para o banco, que incluíam fechar agências e promover um plano de demissão voluntária.

“Você vê que eu não desisto”, me disse Guedes, numa conversa telefônica na manhã do dia 1º de maio. “Cai o soldado e a guerra continua. Tomou tiro o Marcos Cintra, eu continuo. Tomou tiro o Salim Mattar, eu continuo. Tomou tiro o Rubem Novaes, eu continuo”, disse o ministro. “Aí você me pergunta: Você gosta do poder? Vem aqui ver como eu vivo, trancado em casa, indo pro Ministério, me expondo ao vírus, trabalhando o tempo todo. Que poder é esse? No Rio, eu caminhava na praia todo dia, conversava com meus amigos, fazia os investimentos que eu gostava em educação e saúde.”

O ministro está direto em Brasília desde março de 2020. Chegou a fazer confinamento em seu apartamento no Leblon no início da pandemia, porque o hotel em que se hospedava na capital federal fechara, mas Bolsonaro pediu que voltasse. Ofereceu-lhe a residência oficial da Granja do Torto. A primeira-dama Michelle Bolsonaro não gostou da ideia, porque usava o local para reunir seus amigos evangélicos e fazer orações, mas o plano foi em frente. O imóvel passou por uma pequena reforma para receber Guedes e sua mulher, Cristina Drumond. “Não vou ao Rio há um ano. Trabalho a semana toda, descanso no sábado, e domingo recomeço a trabalhar”, conta. Costuma deitar por volta das 23 horas, mas desperta com alguma frequência no meio da madrugada, entre 3 e 4 horas. Dá uma lida, bebe água, come uma fruta – pera, de preferência – e volta a dormir às 5 horas. Acorda para valer às 7 horas. Diz que precisa estar exausto para pegar no sono.

Além das leituras da madrugada, só consegue pegar um livro aos sábados. Normalmente, lê três ao mesmo tempo, para não enjoar de nenhum. No mês de maio, atravessava Ensaios, de Michel de Montaigne (1533-92), em edição francesa, os Federalist Papers, conjunto de artigos de próceres da República norte-americana do século XVIII, e um pequeno ensaio que compara as revoluções dos Estados Unidos (1776) e da França (1789).

Ao longo dos últimos três anos, Guedes às vezes usa as mesmas palavras e gestos para repetir a diferentes interlocutores o tripé que o levaria ao sucesso: o apoio do presidente à sua agenda liberal, o apoio do Congresso às reformas econômicas e, por fim, o apoio da imprensa às suas ideias. Hoje, ele acha que o apoio do presidente “já foi de 99%”, mas diminuiu. “Brinco que é de 65%”, diz ele. A Câmara e o Senado estão do seu lado: “O Congresso é reformista, tem apoiado.” Mas a imprensa não ajuda. “A relação com a mídia está em 60% do que eu esperava. Eu pensei que a mídia já teria entendido, depois de dois anos, o outro lado do governo, que tem seus defeitos, todo mundo tem, mas tem suas virtudes.” Em seguida, admite: “As coisas estão muito aquém do que eu esperava. Mas eu continuo com a minha convicção de antes da eleição. Eu acredito na dinâmica de uma grande sociedade aberta.”

Em agosto de 2018, tive uma conversa de mais de três horas com Guedes, em seu escritório na gestora Bozano, no Leblon. Faltavam dois meses para a eleição que consagraria Bolsonaro, e Guedes tinha grandes planos. Queria acumular 1 trilhão de reais com a privatização de todas as estatais e outro 1 trilhão com a venda de imóveis da União. Com o dinheiro arrecadado, somado à economia que faria com a reforma da Previdência, apostava que, em apenas um ano, conseguiria os 4 trilhões de reais necessários na época para zerar a dívida pública. Também queria desvincular as receitas do Orçamento, vender a participação da União na Petrobras, fazer uma reforma tributária, reduzir o “custo Brasil” e desfazer as isenções tributárias concedidas a setores da indústria pelas gestões do PT. “O discurso do Paulo Guedes antes da eleição ia numa direção acertada porque identificava que havia um problema fiscal e propunha soluções”, diz Felipe Salto, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão vinculado ao Senado. “Mas aí começou o problema. Zerar o déficit público em um ano não tem como, mesmo se o Brasil estivesse sob a gestão do maior fiscalista de todos os tempos.”

No governo, Guedes recalculou a rota. Em novembro de 2019, em uma sala do Ministério da Economia no Centro do Rio, conversamos outra vez por mais de três horas. Guedes estava radiante com a aprovação da reforma da Previdência, embora tivesse acabado de sofrer a derrota de ver outras duas reformas engavetadas, a administrativa e a tributária. Disse entender que o tempo da política era diferente do seu. Em vez do 1 trilhão de reais, arrecadara somente 100 bilhões em vendas de ativos naquele primeiro ano de governo, e apenas a reforma da Previdência saíra do papel, ainda que desidratada pelas concessões de Bolsonaro. Continuava dizendo que sua missão era “privatizar tudo”, fazer “todas as reformas” e “zerar a dívida”. Era seu big bold target, como dizia, recorrendo ao jargão em inglês para designar metas muito ambiciosas. Quando a pandemia chegou, três meses depois, previu que bastaria gastar 5 bilhões de reais para “aniquilar” o coronavírus.

Agora, depois de dois anos e meio de governo, a realidade se impôs. Guedes privatizou tão pouco que perdeu o secretário que cuidava do setor, Salim Mattar. As reformas só agora chegaram ao Congresso, onde ainda levarão meses tramitando. A dívida pública avançou de 4 trilhões para 5 trilhões de reais. A taxa de desemprego subiu de 12% para 14,7%, o dólar disparou, a inflação aumentou, o salário mínimo caiu e o PIB teve o terceiro pior resultado da história no ano passado, com recuo de 4,1%. A pandemia, claro, teve papel decisivo na piora do quadro geral – e, para debelá-la, o governo, em vez dos 5 bilhões de reais que Guedes previu no início, já gastou 557 bilhões.

O ministro não briga com números, mas acha que os resultados seriam muito piores se ele não estivesse no governo. A reforma da Previdência, diz Guedes, economizou o dobro do que estava previsto na proposta do governo de Michel Temer, e poderia ter economizado o triplo se o Congresso tivesse aprovado o regime de capitalização que ele propôs para as novas aposentadorias. Guedes atribuiu à eficiência de sua gestão o fato de o PIB ter caído 4,1%, e não os 9% que chegou a ser estimado. “Isso não é milagre. Sou eu aqui. Eu que estou fazendo. Então eu tenho noção do meu trabalho. Não estou aqui por vaidade.” Ele celebra que a dívida pública, embora mais alta, não tenha alcançado 100% do PIB, conforme as previsões mais sombrias. Estacionou no patamar de 89%. Está satisfeito com os treze ativos da União que deverão ser leiloados neste ano, com a aprovação do marco do gás e da lei do saneamento – que viabilizou a privatização da Cedae, a empresa de água e esgoto do Rio de Janeiro, por 22,6 bilhões de reais. Ele continua apostando numa recuperação econômica em “V”, ou seja, uma queda brusca seguida de um repique redentor.

Entre as suas virtudes, Guedes inclui o auxílio emergencial e a criação de empregos, mas reclama que a imprensa não lhe dá o mérito devido. No primeiro quadrimestre do ano, descontadas as demissões, houve um saldo positivo de 957 mil novas vagas com carteira assinada, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que não considera, no entanto, os 6 milhões de desalentados, como são chamados os que desistiram de procurar emprego. “Fiz o auxílio emergencial. Acham que foi o Congresso? Saiu da minha cabeça. Eu desenhei.” Ele insiste que falta o reconhecimento. “A mídia diz que o governo agiu por inércia, mas quem desenhou fui eu. Quem fez tá aqui, ó!”, diz, apontando o dedo para si mesmo. “Eu não podia dar mais de 200 reais, sabendo que o Congresso elevaria o valor para 300, 400. No final, ficou em 600. Tudo bem. Então podem me criticar, mas digam que eu fiz o maior programa de redução de pobreza da história.” A pobreza caiu 23,7% até agosto do ano passado, na comparação com o ano anterior, mas voltou a subir quando acabou o auxílio. Em agosto, havia 9,5 milhões de pessoas no país vivendo com menos de 246 reais por mês. Em fevereiro passado, conforme o último dado apurado pela FGV, o número saltara para 27 milhões. Feitas as contas, a situação piorou – e muito.

No tripé de apoio que Guedes repete aos seus interlocutores, é surpreendente que não apareça o mercado do qual ele sempre foi tido como “fiador”. E o mercado – essa entidade mítica frequentemente identificada como “Faria Lima”, em referência à avenida paulistana que reúne a nata das instituições financeiras do país – também não é mais o mesmo. Ao contrário das insinuações de que abandonaram o ministro, os expoentes da Faria Lima gostam dele, elogiam sua gestão e preferem que fique onde está. Só descobriram que o verdadeiro comandante da economia é o presidente, e não Guedes. “No caso da Petrobras, ficou muito clara a ordem do Bolsonaro porque o Paulo não queria a saída do Castello Branco. Isso assustou o mercado. Mostrou que a carta branca expirou”, diz o economista de um grande banco, que pediu para ficar no anonimato para não atrair a má vontade do ministro.

Um ex-diretor do Banco Central, hoje diretor em uma gestora de investimentos, diz que o mercado entendeu que Bolsonaro não se interessa por cautela fiscal. “Alguém acha que, caso ele se reeleja, fará um ajuste fiscal para equilibrar as contas? Ficou claro que ele não acredita nessa pauta, com ou sem Guedes. Ela era uma pauta conveniente lá atrás. Quando ficou inconveniente, acabou.” Outro gestor, que mantém há décadas uma relação de amizade com Guedes, crê que, embora o apoio ao ministro tenha diminuído, sua permanência no governo é um bom sinal. “É como se estivéssemos na Dutra, indo para São Paulo, a 5 km/h. Poderíamos estar andando muito mais rápido? Sim. Estamos quase parando? Sim. Mas pelo menos estamos na direção certa. E isso entra na conta do ministro”, diz.

“Ele não enfrentou o presidente lá no início, quando ainda tinha força, para barrar privilégios dados aos militares na reforma da Previdência. Ele quase enterrou a reforma tributária por causa da CPMF e a reforma administrativa é inútil, pois isenta diversos setores, como, de novo, os militares”, afirma a economista Elena Landau, ex-diretora de privatizações do BNDES e hoje sócia do escritório de advocacia Sergio Bermudes. Ela prossegue: “Abertura comercial? Zero. O que se tem são reduções ocasionais de tarifas de acordo com a conjuntura. Se Bolsonaro quer diminuir imposto sobre armas, o Ministério da Economia faz. Veio a pandemia, ele mexe nas tarifas de insumos. Tudo é pontual. Não existe um projeto de abertura comercial. Pelo contrário. Não desarmou nenhuma isenção tributária concedida pela Dilma. Não mexe na regressividade do imposto de renda.”

O encolhimento de Guedes junto a Bolsonaro mantém acesas as especulações sobre um possível sucessor. Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, é o número 1 na bolsa de apostas, embora ele próprio afirme em conversas privadas que não tem a intenção de ser ministro – sobretudo para ocupar o lugar de Guedes, seu amigo. Mas seus passos na seara política não têm passado despercebidos. Ao contrário de Guedes, ele gosta de receber políticos, jantar com ministros, opinar sobre os acontecimentos na Esplanada. Chegou a comparecer na casa de Washington Cinel, fundador da Gocil Serviços de Vigilância e Segurança, em São Paulo, quando o empresário ofereceu um jantar para Bolsonaro e comitiva. Um dos presentes, frequentador contumaz de rega-bofes com políticos, observa que não é capaz de se recordar da presença de Ilan Goldfajn ou Alexandre Tombini – antecessores de Campos Neto no comando do BC – em eventos de natureza política semelhante. A um interlocutor, Bolsonaro chegou a dizer que só sancionara a lei que dá autonomia ao Banco Central porque o presidente da instituição é Campos Neto. A medida, disse, foi um “presente”, uma homenagem ao diplomata e ex-ministro Roberto Campos (1917-2001), avô de Campos Neto e um dos mais conhecidos liberais ortodoxos do país.

O deputado federal Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Câmara, diz que todos os embates econômicos que presenciou em que Bolsonaro entrou em rota de colisão com a agenda de Guedes, venceu o presidente. “Se alguém nasce elefante e é batizado como tigre, isso não significa que vai virar tigre. Bolsonaro é tudo menos liberal. Ele foi batizado liberal para as eleições, mas é um populista comprometido, ao longo de toda a sua trajetória, com as pautas mais atrasadas do país. O Bolsonaro não é o Guedes. Ele precisou do Guedes.” Segundo o deputado, a desidratação do ministro ficou clara entre o final de fevereiro e o início de março, quando aliados do governo sabotaram a PEC Emergencial, proposta de Guedes para limitar os gastos públicos quando há necessidade de despesas extraordinárias, como na pandemia. Como o texto previa medidas de restrição fiscal, a proposta não agradou nem ao presidente. “A ministra Damares Alves e o líder do governo, Major Vitor Hugo, agiram a mando de Bolsonaro para esvaziar a PEC. Se nem o governo queria, não seríamos nós, da Câmara, que íamos ficar segurando aquilo.” (A PEC Emergencial acabou aprovada em março, mas com inúmeras alterações no plano proposto pelo Ministério da Economia.)

Em defesa de Guedes, o líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), diz que o ministro vem sendo alvo de ataques, há uma guerra de informação com o intuito de prejudicá-lo e é normal que sua relação com Bolsonaro passe por ajustes. Para Gomes, no entanto, a experiência mostra que não há ministro indemissível. “Uma pessoa que demitiu o Sergio Moro vai estar preocupada com o Paulo Guedes? O dia em que Bolsonaro tiver de deixar o Paulo, ele vai deixar. Ele não tem esse tipo de prudência. Ele é doidão. E os dois têm intimidade o suficiente para continuar ou parar a relação.”

Guedes sabe disso: “A relação foi o tempo todo de confiança”, diz ele, referindo-se ao seu convívio com Bolsonaro. “Ele confia na minha capacidade de equacionar problemas. E eu só não caí porque ele confia nisso.”

Em março de 1985, quando o general João Baptista Figueiredo, o último presidente da ditadura militar, chamou o economista Antonio Delfim Netto para ser ministro da Agricultura, Paulo Guedes, então sócio do Pactual, lamentou a situação do seu amigo Mário Henrique Simonsen, que fora convidado para o Ministério do Planejamento. Delfim tinha tanta influência junto aos militares que, para Guedes, nem mesmo Simonsen, com todo o seu talento, conseguiria exercer sua função na plenitude. “É a pior coisa que podia ter acontecido ao Mário Henrique”, disse, na época. O banqueiro Luiz Cezar Fernandes, que ouviu a frase de Guedes, traça um paralelo com os dias de hoje. “Tendo escutado isso quarenta anos atrás, penso que o Paulo tentou aglutinar tudo que pudesse impactar o seu controle sobre a política econômica”, avalia.

Guedes sempre quis um superministério para não fragmentar a condução da política econômica. “Evitamos disputas clássicas entre Fazenda e Planejamento, como houve com o Simonsen e o Delfim”, diz ele. “E evitamos disputas clássicas sobre a abertura da economia, como sempre houve entre a Fazenda e a Indústria e Comércio. Esse era o desenho desde os encontros no Leblon.” Cintra, o ex-chefe da Receita Federal, confirma: “Sabíamos desde o início que seria um Ministério da Economia, não da Fazenda.” Assim, Guedes acabou reunindo sob seu comando quatro ex-ministérios (Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Fazenda, Planejamento e Previdência e Trabalho), além de um caudaloso rosário de secretarias especiais. O secretário-executivo Marcelo Guaranys, que trabalha na Esplanada desde o governo Lula, deveria coordenar o trabalho das subpastas. Guaranys, porém, tem o mesmo nível hierárquico que os demais, de modo que os secretários – todos eles – despacham diretamente com o ministro.

Todo esse poder não impede que Guedes apanhe dentro do próprio governo. O Orçamento de 2021 é um caso exemplar. Em negociações com o Congresso, o ministro concordou que o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator do Orçamento, previsse mais 16,5 bilhões reais para atender os parlamentares, embora as receitas do governo estejam despencando. Guedes disse que encontraria um “espaço fiscal” para abrigar a despesa. Mas tomou um susto quando o relator, subavaliando até despesas obrigatórias, aumentou o bolo em mais 13 bilhões de reais, escalando a despesa total para 29,5 bilhões de reais. Ficou irritadíssimo e logo desconfiou que ali havia a mão do ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, seu maior desafeto na Esplanada, pois o grosso do novo dinheiro seria destinado a projetos da pasta de Marinho. Na mesma hora, Guedes se dirigiu ao Palácio do Planalto e pediu para ser recebido imediatamente por Bolsonaro, que, naquele momento, conversava com o ministro Luiz Eduardo Ramos, o general que então chefiava a Secretaria de Governo. Guedes já entrou no gabinete falando alto.

– Esse Marinho é um filho da puta! – gritou.

– Que é isso, PG? – espantou-se Bolsonaro, surpreso com a irritação.

Guedes explicou o caso dos 13 bilhões, disse que Bolsonaro não podia “assinar isso aí”, alertou que aquilo poderia “dar em impeachment” e concluiu: “É uma irresponsabilidade, porra!” O que Guedes não sabia até então é que o relator Marcio Bittar negociara o aumento com o ministro que estava ali testemunhando seu desabafo. Sem consultar o Ministério da Economia, o general Ramos acertou tudo na surdina para agradar os parlamentares e o próprio presidente. Depois da cena de Guedes naquele dia 25 de março, Bolsonaro pediu a Ramos que resolvesse o problema. Como Brasília estaria deserta nos dias seguintes com o feriado de Páscoa, Ramos agendou uma reunião apenas para a noite de 6 de abril. Nesse longo interregno, Ramos, longe de ser punido pelo acerto às escuras, foi promovido: assumiu a Casa Civil.

Quando finalmente chegou o dia da reunião, um pandemônio estava armado, com senadores e deputados engalfinhando-se na disputa pela montanha de verbas. Guedes, furioso com a confusão e temeroso de ter sua gestão envolvida em suspeitas de crime de responsabilidade, sugeriu que Bolsonaro vetasse tudo – os 29,5 bilhões, e não apenas o aumento de 13 bilhões, que depois seriam recompostos num projeto de lei à parte. O Congresso quase veio abaixo. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que já andava magoado por ter sido escanteado nas negociações com o general Ramos, voltou sua ira contra Guedes diante da ameaça de descumprir o acordo dos 16,5 bilhões de reais. Nas rodas de políticos, o ministro ganhou o apelido de Evergreen, nome da operadora do cargueiro que empacou no meio do Canal de Suez em março, paralisando uma das mais movimentadas rotas do comércio mundial. Nesses dias tensos, Guedes esteve a um passo de cair, por pressão do Congresso.

No fim, Bolsonaro sancionou o Orçamento com 18,5 bilhões de reais, mais do que a proposta de Guedes. Além disso, o episódio ceifou mais um naco de poder do ministro, que perdeu dois auxiliares leais e ganhou a hostilidade de líderes do Congresso. “Nesse episódio do Orçamento, Guedes demonstrou fraqueza ou total desconhecimento do que estava acontecendo”, diz o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), para quem a queda de braço revelou a força de Lira, que ajudou a resgatar os 16,5 bilhões iniciais, depois inflados para 18,5 bilhões. O presidente da Câmara nega ter pedido a cabeça de Guedes e diz que o ministro não agiu de má-fé, mas há uma profusão de relatos mostrando que o deputado teve um ataque de fúria no auge da confusão. O que não se sabia até então é que o salseiro do Orçamento escondia um escândalo que não demoraria a estourar.

Em sua edição de 9 de maio, o jornal O Estado de S. Paulo revelou que 3 bilhões de reais do Orçamento da União aprovado no ano passado estavam sendo secretamente fatiados por um grupo de 250 deputados e 35 senadores, mediante critérios de adesão ao governo Bolsonaro. Pela semelhança com o mensalão do PT, que corrompia parlamentares com verbas públicas para que votassem com o governo, o caso foi batizado de bolsolão. De acordo com o jornal, os parlamentares vinham distribuindo os recursos públicos sem qualquer fiscalização ou controle. Uma parte do dinheiro foi consumida na compra de tratores com preços superfaturados em até 259%. Uns parlamentares mandavam dinheiro para suas bases eleitorais, outros para estados a mil quilômetros de distância de seus redutos. Uma festa danada.

O esquema só se viabilizou porque Bolsonaro, querendo cortejar os vorazes parlamentares do Centrão, sancionou a recriação de um instrumento orçamentário que fora abolido em 1992, em consequência do “escândalo dos anões do orçamento”: a emenda do relator. O mecanismo permite que o relator do Orçamento destine recursos a quem quiser, sem a obrigação de reparti-los igualmente entre os deputados, como ocorre com as emendas tradicionais. Neste ano, a “emenda do relator” previu inicialmente os 16,5 bilhões de reais, centro da confusão orçamentária. No ano anterior, reservara ao menos os 3 bilhões descobertos pelo Estadão. Os recursos ficam no caixa do ministério de Rogério Marinho. Em sua defesa, o ministro diz que sua pasta não tem ingerência sobre os repasses. Os parlamentares, diz ele, escolhem livremente os convênios que querem prestigiar – mas os convênios, claro, só existem porque seu ministério os assinou.

O bolsolão atinge as convicções de Guedes, em cuja crença de uma “grande sociedade aberta” o Congresso comandaria de “boa-fé” a distribuição de recursos orçamentários e o presidente não usaria a verba pública para comprar apoio político. Mas o ministro dificilmente se ressentirá caso o escândalo respingue mais forte em Marinho. Enquanto o colega realiza o trabalho simpático – gasta, faz obras e avança sobre o Nordeste, o que deixa Bolsonaro encantado –, Guedes fica com o pedaço incômodo: fecha a torneira, segura recursos, faz cortes. Os dois ministros começaram juntos no governo, mas se desentenderam. Hoje, não se falam e disparam xingamentos mútuos por meio de intermediários. Já se ouviu Guedes referir-se a Marinho como “batedor de carteiras”, “fura-teto” e “pica-pau”, em razão dos gastos de sua pasta. Marinho usa expressões como “velhinho dogmático”, “apresentador de auditório” e “artista de stand-up” para classificar a inclinação de Guedes a falar sem ouvir e repetir sempre as mesmas coisas.

Aos seus aliados, Marinho diz que o colega é “brilhante”, mas observa: “Ele quer ser o executor, o articulador, o mediador, e não reconhece que tem de defender a agenda do presidente. Ele não se dá conta de que não é o presidente.” Nas suas conversas com Bolsonaro, Marinho passou a atacar Guedes abertamente. Diz que o ministro criou um “governo paralelo” na Economia e assume compromissos desalinhados com o governo. Na semana que estourou o caso do orçamento secreto, Marinho confidenciou a um interlocutor que, em conversa com o presidente, foi taxativo: “Para o senhor ganhar a eleição, tem que se livrar do Paulo.” Por coincidência, em entrevista à Folha de S.Paulo publicada no fim de maio, Guedes apareceu usando um figurino de campanha. “Nós jogamos na defesa nos primeiros três anos, controlando despesas. Agora vem eleição? Nós vamos para o ataque”, afirmou, garantindo que, entre outras medidas, vai melhorar o Bolsa Família. “Vai ter uma porção de coisa boa para vocês baterem palma. Tudo certinho, feito com seriedade, sem furar teto, sem confusão.” Na mesma entrevista, garantiu que seu ministério não será desmembrado.

No final de fevereiro, pouco antes da confusão orçamentária, Bolsonaro tomou café com sete deputados do Centrão no Palácio da Alvorada. Em certo momento, foi questionado se iria fatiar o Ministério da Economia, recriando duas pastas, a do Planejamento e a do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Bolsonaro disse que se arrependia de ter feito a fusão dos ministérios na Economia, mas não voltava atrás porque Guedes não aceitava “perder poder”. Dois meses depois, no fim de abril, ao fazer um balanço da balbúrdia orçamentária com um mesmo líder do Centrão com quem tomara café no Alvorada em fevereiro, Bolsonaro admitiu que, apesar da resistência de Guedes, poderia mudar de ideia.

Na sua gestão, Guedes criou fama de camaleão. “Quando a coisa fica ruim, ele adota uma camuflagem e transfere a culpa”, diz um colega da Esplanada, que pediu para não ser identificado para não se atritar com o ministro. Ao vir a público a informação de que o Censo Demográfico de 2021 fora excluído do Orçamento, Guedes deu uma coletiva na porta do Ministério dizendo que iria se “informar a respeito”. Era o camaleão em ação. Ele tivera três reuniões com Susana Guerra, então presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que lhe informou sobre as providências sanitárias que vinha tomando para proteger os 200 mil pesquisadores que iriam às ruas.

O IBGE até começara as negociações para que os recenseadores fossem previamente vacinados. Os equipamentos de proteção individual já haviam sido comprados. A Escola Nacional de Administração Pública havia preparado um protocolo de proteção específico para os pesquisadores. Nas reuniões em que Guerra explicou tudo isso, os parlamentares e o próprio ministro pareceram satisfeitos com as medidas. Depois do corte, no entanto, Guedes se esquivou. Em entrevista ao jornal O Globo, disse que tinha feito a previsão orçamentária para o Censo, mas “o Congresso, acredito que pensando na pandemia, e não nas verbas, deve ter achado sensato tirar”. No fim das contas, os parlamentares cortaram de 2 bilhões para 71,7 milhões de reais, e Bolsonaro, ao sancionar o corte, deu-lhe mais uma ceifada, reduzindo o total para 53,2 milhões de reais.

São comuns os episódios de camuflagem do ministro. Quando noticiou que as pastas de Guedes e Marinho estudavam um plano para entregar à iniciativa privada as operações de reservatórios, estações de bombeamento e canais do Rio São Francisco, a imprensa classificou o projeto como uma privatização do Rio São Francisco. O caso despertou a ira de Bolsonaro, em razão do impacto que poderia ter na sua popularidade no Nordeste. Convocado às pressas ao Palácio do Planalto para prestar explicações, Guedes, que dera seu aval para os estudos, disse que desconhecia a ideia.

No caso mais recente, Guedes foi atropelado pela portaria da pedalada salarial, redigida sob medida para beneficiar militares. Até então, um servidor que tivesse mais de um salário no governo não podia receber mais que o teto de 39,2 mil reais no fim do mês. Com a portaria, a regra do teto passou a incidir sobre cada salário, e não mais sobre a soma deles. Na prática, a mudança permite que um servidor com dois salários embolse dois tetos, ou 78,4 mil. A jabuticaba beneficia pelo menos mil funcionários da administração federal, muitos dos quais são militares exercendo cargos civis. Por ironia, o Ministério da Economia, que fez vários pareceres contrários à medida, teve que assinar a portaria. Guedes engoliu mais um sapo e ficou quieto.

Quando o Banco Central propôs limitar os juros do cheque especial a 8% aos mês, Guedes irritou-se. Dizia que a medida feria o coração de um governo liberal. Em conversa com Campos Neto, presidente do BC, chegou a dizer que a proposta era uma “esculhambação” e que, daquele jeito, o governo nem precisava de “oposição”. Quando percebeu que a ideia agradava o governo e a população, encampou-a e encontrou um modo de fazer parecer que não contrariava seu credo liberal. Explicou que não se tratava de um “tabelamento” dos juros, mas apenas de uma “reconfiguração”.

Guedes rebate o diagnóstico de que negocia suas convicções liberais em troca de se manter no cargo. “Agora, eu recebo crítica de que não sou liberal o suficiente. É para rir, né? Por que não fizeram antes o BC independente? Por que o Fernando Henrique não fez? Porque ele queria ser reeleito e usou o BC para isso. Segurou o câmbio, foi reeleito e depois trocou o regime cambial. Eu não fico falando isso porque já tem muita briga, não precisamos de mais. Mas eu estou aqui, tentando sair da minha característica pessoal de combate, de embate de ideias, estou quietinho, tentando ajudar o país, na maior humildade. E continuo achando que estatal boa é estatal privatizada.”

Em meados do ano passado, a jornalista e historiadora Anne Applebaum publicou na revista The Atlantic um artigo em que procura decifrar as razões que levaram alguns próceres do Partido Republicano a tornarem-se colaboracionistas do então presidente Donald Trump, violando as tradições republicanas e a própria história da direita democrática. Em sua análise, Applebaum encontrou alguns tipos. Entre eles, estão os que simplesmente desejam ficar perto do poder; os espertalhões, que estão em busca de benefícios pessoais; os cínicos, que pouco se importam se o presidente é um celerado; e aqueles que julgam que é melhor ficar dentro do governo do que fora, pois sua permanência é a forma mais eficaz de “proteger o país” das sandices do presidente.

Guedes acha que o governo de Bolsonaro é de “centro-direita”, e não de extrema direita, e que o presidente não é populista, mas “popular”. Está confortável no governo, que, na sua opinião, tem sido atacado injustamente. “Ele foi eleito com 60 milhões de votos e não tem um dia de paz. Querem impeachment por tudo, porque falou palavrão, por causa da vacina. Não tem fim. Isso descredencia a democracia brasileira e ensina para a direita que um dia, se perder a eleição, ela também não vai aceitar o resultado, criando crise, fazendo barulho, fustigando. A democracia funciona. Funcionou trinta anos para a esquerda. Não pode ficar quatro anos com um programa um pouco diferente?”

Quando fala de sua permanência no governo, Guedes se aproxima da categoria dos que dizem trabalhar para “proteger o país”. Ele conta que, logo depois da saída do ex-juiz Sergio Moro do Ministério da Justiça, recebeu um telefonema do governador de São Paulo, João Doria. “Ele me perguntou o que eu ainda estava fazendo no governo”, relembra o ministro. “Eu disse a ele que estava pensando nos milhões de pessoas que estão aqui fora, os 200 milhões de brasileiros. Ele me perguntou se eu não pensava na minha biografia. E eu disse que tinha de pensar nas pessoas, não na biografia. Depois, no futuro, as pessoas vão entender o que cada um fez.” Na mesma conversa, Guedes apresentou ao governador paulista um prognóstico sobre sua eventual saída: “João, você acha que vai pegar que país, se eu sair daqui agora? Vai ter impeachment, vai entrar o Mourão e daqui a  dois anos você vai pegar que país? João, você vai ser presidente da Venezuela. Vira Venezuela. Você vai ser eleito pra gerir a Venezuela.”

No dia 17 de maio, tive uma nova conversa com Guedes, também de mais de três horas, dessa vez no seu gabinete, em Brasília. Em várias passagens, o ministro voltou a explicar as razões que o mantêm no governo, recorrendo sempre a um dueto: de um lado, a confiança de Bolsonaro; de outro, a importância do seu papel no governo. “Amigos me perguntam: Como você está conseguindo ficar aí? Três meses depois, eu apresento o Banco Central independente, envio a MP da privatização da Eletrobras, faço andar a privatização dos Correios. Aí, eles vêm e dizem: ‘Ainda bem que você não saiu.’ Outro dia, um deles me contou: ‘Paulo, tinha bolsa de aposta para saber se você iria durar pelo menos três meses. Todo mundo sabe que você é um cara que luta pelo que acredita, que não foge de polêmica. Nós estamos impressionados com a sua resiliência e em como você amadureceu.’ E é verdade. Essa tragédia da Covid me trouxe muita responsabilidade.”

Guedes garante que sua presença no governo ajudou, inclusive, a trazer a vacina da Pfizer para o Brasil. Durante meses, a farmacêutica norte-americana tentou vender 70 milhões de doses de sua vacina ao governo brasileiro, mas o Ministério da Saúde, ainda sob o comando do general Eduardo Pazuello, rejeitou a oferta onze vezes. Guedes diz que, quando a compra foi finalmente fechada, ele recebeu uma carta da Pfizer agradecendo seu empenho na negociação, que só foi concluída, diz ele, depois da sua intervenção. “Eu deveria ter ido embora e deixado tudo aqui, e nem a Pfizer nós teríamos?” Na CPI da Pandemia, porém, veio a público que o curso dos acontecimentos foi bem mais tumultuado.

No dia 7 de agosto do ano passado, o então presidente da Pfizer, Carlos Murillo, encontrou-se pessoalmente com o secretário Carlos da Costa, assessor de Guedes na época. Costa, em entrevista à CNN, disse que o encontro não foi sobre compra de vacinas. “Não temos absolutamente nada a esconder”, enfatizou. O relatório do encontro, arquivado no Ministério, porém, desmente o ex-secretário. No documento, está dito que o ex-presidente da Pfizer lhe detalhou o sistema de imunização da vacina e a estrutura logística necessária para distribuir o imunizante na América Latina e no Brasil e, inclusive, alertou-o para o fato de que a vacina estava prestes a ser comprada pelos Estados Unidos e pela Alemanha. Apresentado a esse enredo, o ministro recalibra sua responsabilidade. Diz que a conversa da Pfizer com seu assessor se restringiu à “transferência de tecnologia” e que não é responsabilidade da Economia liderar as tratativas sobre a vacina.

A crescente interferência de Bolsonaro na área econômica, antes de ser um motivo para ir embora, é mais uma razão para sua presença  no governo, diz Guedes. “Diminuiu o campo de ação? Sim. É por isso que eu tenho que lutar, lutar. Já que tudo está andando devagar, eu tenho de empurrar mais para as coisas avançarem.” Ele volta a bater na tecla do apoio do presidente. “Ele confia no meu conhecimento. Ele, pessoalmente, era a favor das reformas? Não era. Mas ele dá um sinal de humildade quando fala: ‘PG, eu não acredito nesse troço aí. Mas vai lá, que é por sua conta e risco. Vai à luta! E quando eu estou morrendo afogado e juntam dez partidos para me matar, ele vai lá, me pega pelos cabelos e me tira da água. Sem apoiar o programa, mas sem deixar me destruírem. Então, é uma relação de confiança supercomplexa”, afirma. E retoma o assunto de sua biografia e da centralidade de sua permanência no cargo para evitar o caos: “Eu jogo isso fora, no meio da pandemia? Deixo o Brasil se incendiar porque estou preocupado com a minha biografia?”

Guedes conta que quase caiu do Ministério três vezes. A primeira aconteceu em abril de 2020, quando seu rival Rogério Marinho, em companhia do general Braga Netto, então na Casa Civil, bolou o Pró-Brasil, programa de obras que ameaçava furar o teto de gastos. Bolsonaro gostou da ideia. Mas Guedes bombardeou o plano, que desmoralizava sua política fiscal, e acabou ganhando a parada: o Pró-Brasil é hoje um projeto na gaveta. A segunda aconteceu logo no mês seguinte, quando batalhou para vetar o reajuste salarial do funcionalismo público na pandemia, o que chamou de “um crime contra o país”. Foi atacado por todas as corporações, incluindo os militares com gabinete no Palácio do Planalto. De novo, Guedes ganhou. A última foi na confusão do Orçamento. “Nos três episódios em que eu quase fui, digamos assim, removido, não interessa se eles iriam me mandar embora ou se eu iria pedir pra sair, nos três momentos críticos, o presidente ficou comigo no final. Então a minha avaliação é que o presidente tem confiado em mim. Então, por isso, eu não tenho razão para desconfiar dele. Ele fala que eu sou o Posto Ipiranga dele, que eu o influencio…” A última vez que Bolsonaro chamou Guedes de “Posto Ipiranga” foi em novembro do ano passado, durante uma solenidade no Palácio do Planalto.

Em reação às críticas, Guedes diz que poderia deixar o governo e o próprio país. “Se continuar essa xingação, vão conseguir me botar pra fora do país. O que vai acontecer? Estão desenhando uma imagem tão ruim minha, que eu vou embora. Não quero andar na rua e ser xingado. Tenho 71 anos. Vou lá pra fora.” Mas, em seguida, ele diz que, além da confiança do presidente, conta com o apoio da população. “Eu entro em restaurantes e as pessoas dizem: ‘Eu rezo pelo senhor, o senhor leva tiro dentro e fora do governo, eu sei que o senhor tem responsabilidade e que está nos ajudando.’” No dia 28 de abril, uma quarta-feira, Guedes foi ao A Mano, restaurante italiano na Asa Sul de Brasília, para almoçar com sua esposa. Sentaram-se numa mesa de dois lugares num canto mais discreto do salão. Os seguranças esperaram do lado de fora. Ao terminar a refeição, uma hora depois, o casal saiu pelos fundos, evitando passar entre as mesas. Não houve vaia nem aplauso.



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