“Não verás país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão, publicado em 1981, é uma obra-prima da literatura do absurdo, que antecipa em 40 anos o nosso estranhíssimo Brasil enfermo de hoje. Autores da literatura do absurdo têm o dom de ver nas minúcias da realidade e nas entrelinhas anômalas da vida cotidiana indícios de uma sociedade que, aparentemente, ainda não existe. E parece que não vai existir. Mas que está lá, na invisibilidade enganadora da falsa consciência do real, do que é ainda gestação de relações sociais e de mentalidades. Uma sociedade de contraste com tudo que estamos habituados a considerar uma sociedade “normal”. Parece fantasia de escritor imaginoso. Cada vez mais, porém, essas obras são verdadeiras etnografias de transformações sociais que levarão a sociedades tão absurdas quanto suas antecipações literárias, escreve José de Souza Martins no Valor, em artigo publicado na sexta, 27/7. Continua abaixo.
Em seu primeiro livro, “Depois do sol”, Loyola traz à luz de seus contos as revelações da noite da cidade de São Paulo. A noite como o inverso do dia, não apenas como o diferente, a sociedade oculta. Na antropologia brasileira, as realidades invertidas da noite de exu foram estudadas por Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade, em “O segredo da macumba”. O que confirma a etnografia subjacente à literatura do absurdo.
O absurdo de “O outro lado do espelho”, de Lewis Carroll, é cada vez mais real. Alice, a personagem do livro, era real, existia e entendia a narrativa nele contida. As histórias de Franz Kafka são o absurdo naturalizado.
Na fábula política do avesso do avesso de “A revolução dos bichos”, de George Orwell, podemos, com facilidade, identificar sociedades que conhecemos, a começar da nossa, naquela conclusão fatídica: no baile de humanos com porcos, “já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco”.
Em “Não verás país nenhum”, Loyola descreve uma estranha São Paulo, progressivamente corroída pelo absurdo de um sistema de dominação e de um modo de vida decorrente, aos quais as personagens se ajustam com pequena estranheza.
Souza, a personagem principal, aos poucos será diluído no emprego que não o emprega. Adelaide, sua mulher, esposa adjetiva e praticamente imaginária, revelará com o tempo que ela é, na verdade, o oposto da mulher pelo marido imaginada. Os habitantes da cidade enferma são realidades irreais, desencontradas consigo mesmas, conformadas no inconformismo meramente residual.
Loyola não pretendeu fazer sociologia, embora haja no livro um fundo de temas sociológicos, do tipo tratado pela sociologia fenomenológica, a que de certo modo analisa as relações sociais a partir do imaginário que lhes dá sentido.
O absurdo descrito no romance, com o tempo, foi se confundindo cada vez mais com a realidade. A invasão da casa-refúgio da classe média, de Souza, é patrocinada por um sobrinho de Adelaide, a esposa que se fora e já não existe. Estranhos passam a nela viver como se fosse sua própria casa. Estavam à vontade no que não era seu, enquanto Souza já não estava à vontade na casa que supunha sua. É o direito de propriedade que se esfuma.
A realidade da classe média vai se desgastando para passar a ser aquilo que era, uma fantasia cruel, um vazio. Uma classe cada vez mais excluída até o ponto de se tornar parte do monturo, do lixo da cidade. Ela se torna uma classe de descartáveis, sem lugar, seres que não são, confinados no nada, desprovida dos valores e privilégios da sociedade de consumo, de suas coisas cada vez mais inúteis como os móveis de apego simbólico levados para o lixão.
Sem objeto, os sociólogos têm sua cota de desfiguração na sociedade que se esvai. A transformação do modo de ser da sociedade do absurdo reduzido a pseudoconceitos. Eles começavam a se esmerar na conceituação sociológica que nada conceitua a não ser a superficialidade de uma sociedade já desprovida de práxis e de protagonismo histórico. A sociedade que é não sendo, a da alienação absoluta.
O absurdo observado por Loyola em 1961 tornar-se-ia a sociedade brasileira de 2021. O Brasil de hoje não é uma surpresa, um acidente, um erro de cálculo. Lentamente, há 60 anos, ele já estava sendo o que é hoje. O poder se tornou um jogo de aparências, um faz de conta, não raro um circo. O povo deixou de ser agente de sua própria história para se tornar espectador passivo e indiferente.
À luz da sociedade cinzenta da atualidade, das incertezas de agora, dos abusos do poder paralelo e oculto, das invisibilidades planejadas que nos manipulam e manipulam nossa própria vida, podemos reler “Não verás país nenhum” como obra de antecipação do Brasil de agora. Ninguém podia imaginar, porém, que a metamorfose ocorreria tão depressa e de maneira tão amplamente perturbadora.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "No Limiar da Noite" (Ateliê, 2021).
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