Ao tocar a mesma distopia de ‘O Dilema das Redes’, Eugênio Bucci disseca a mais ousada empreitada do capitalismo
Elusivo por natureza e astuto por precisão, o capitalismo agigantado das big techs tem seus meandros e subterfúgios dissecados pelo bisturi afiado de Eugênio Bucci. “A superindústria do imaginário” desvenda como o regime econômico dominante, em seu mais elevado nível de sofisticação, deixou de fabricar apenas objetos físicos para produzir discursos - “uma marca, uma grife, um apelo sensual que faz de uma mercadoria ordinária um amuleto encantado”, anota o autor. “O capital se descobriu linguagem e se deu bem na sua nova encarnação.” O core business desse capitalismo é a narrativa. Tudo é resumido à prática de captar e monetizar a atenção do consumidor. “Os conglomerados da era digital elevaram o velho negócio do database marketing à enésima potência”, avalia Bucci. Fora a narrativa essencial, o restante é acessório, pode ser terceirizado sem prejuízo da imagem ou do valor do produto, escreve Oscar Pilagallo em ótima resenha para o Valor, publicada dia 16/7. Continua a seguir.
O livro lembra que as mercadorias perderam valor de uso. Seu preço não está mais associado à utilidade que possa ter para o consumidor. O valor de troca agora é definido pelo “valor de gozo”, termo emprestado da psicanálise lacaniana.
Bucci vai mais longe: “A invocação da utilidade objetiva ainda tem um papel, só um: esconder a função de gozo”. Assim, o papel de uma bolsa de grife, como produto para guardar pertences, seria apenas mascarar o fim último do item que, pela fantasia nele projetada, cola na usuária o signo de exclusividade impregnado na marca. Não se compra a coisa em si, mas o sentido da coisa.
O autor argumenta que não se trata só de publicidade. É bem mais. Trata-se da “exploração do olhar”. Explora-se hoje o olhar da mesma maneira que antes, sob a ótica marxista, se explorava o trabalho. A imagem da mercadoria, diz, está “carregada de valor extraído do olhar social”.
O mecanismo descrito é sutil: com a ajuda da tecnologia, o capital se apropria da massa de informação que os usuários das redes fornecem de graça. De posse dos dados consolidados, essas empresas identificam o desejo dos consumidores, canalizando-o de modo a maximizar o lucro.
É assim que o capitalismo engendra sua mais ousada empreitada - a superindústria do imaginário. Nesse ambiente dominado por algoritmos, o valor de gozo não apenas aumenta o valor agregado de uma mercadoria - é a própria mercadoria, por mais imaterial que seja.
A distopia vislumbrada nesse “extrativismo virtual”, que viola todas as fronteiras da privacidade, remete a “O Dilema das Redes”, da Netflix, mencionado por Bucci. Mas enquanto o documentário apela a um hiperdidatismo que chega a infantilizar a abordagem, o livro, sem fazer concessões, mobiliza saberes das mais diversas áreas para construir um caso sólido. Além da psicanálise e do marxismo, o texto passeia com autoridade pelos estudos de comunicação e jornalismo, pela literatura, música, religião, ideologias, cinema, num amálgama pop que joga luz sobre o objeto do estudo.
Voz distintiva no campo progressista, Bucci critica a “velha escola panfletária de esquerda” que hipertrofia o poder da “ideologia burguesa” ao acreditar, arrogante e ingenuamente, que a finalidade dos meios de comunicação é traficar mentiras, como se não precisassem se legitimar perante seu público.
O puxão de orelhas é dado a propósito da percepção que essa esquerda tem da indústria cultural, que integra a superindústria do imaginário, sem com ela se confundir. Citando os filósofos da Escola de Frankfurt, o autor sustenta que essa manipulação ocorre não por deliberação dos protagonistas, mas na estrutura.
“Não será com a ideologice - que faz de conta que a História é uma fábula infantil em que a princesinha proletária é acossada pela bruxa capitalista - que as democracias acumularão pensamento crítico para compreender e enquadrar a selvageria do capital.”
A obra, originada numa tese de doutorado de 2002, resulta de uma pesquisa de 20 anos. Versões de alguns capítulos apareceram em publicações em que Bucci escreve. Outros textos são inéditos. A unidade não é ameaçada pela ligeira mudança de tom, que varia entre o polêmico contundente (com todo o respeito) e o acadêmico rigoroso (sem nenhuma cerimônia).
“A superindústria do imaginário” busca mais a reflexão do que a concordância do leitor. Não há consenso possível, por exemplo, quando o autor afirma, à guisa de conclusão, que “do ponto de vista ético, o que se passa hoje é pior do que aquilo que se passou na Revolução Industrial”. Ainda assim, o eventual exagero retórico faz pensar. Afinal, “o que é o capital que se apropria dos processos mais íntimos da formação da subjetividade” de uma criança?
Ensaísta tarimbado, autor de diversos livros, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, presidente da Radiobrás no primeiro governo Lula, Bucci tem habilidade, trajetória e bagagem mais do que suficientes para explicar o êxito do livro ao enfrentar a “pedreira conceitual” inerente ao tema. A leitura demanda empenho intelectual, como ele mesmo adverte, mas recompensará quem se deixar envolver por sua prosa fina e sedutora.
Oscar Pilagallo é jornalista e autor de “História da Imprensa Paulista” e “A Aventura do Dinheiro”.
A superindústria do imaginário Eugênio Bucci Editora Autêntica 448 págs., R$ 74,90 AAA
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