Em muitos momentos da história, a elite política brasileira optou por ideias prontas que seriam capazes de dar conta de vários desafios do país. Quase sempre esse processo era pouco conversado com a sociedade e, geralmente, escondia agendas ocultas, enunciando apenas o “lado bom” das propostas. O presidente da Câmara, Arthur Lira, comanda hoje um debate sobre reforma política que segue esta linha de “soluções em busca de problemas”, na qual não há um diagnóstico claro sobre as causas do fenômeno e sobre a efetividade das mudanças. O que importa para o reformismo do Centrão é mudar para permanecer ainda mais forte no poder. A lista de alterações no ordenamento do sistema político proposto por Lira e seu exército de reformistas do Centrão é realmente impressionante. Para ficar nas mais importantes, mudanças no modelo eleitoral, na forma de prestação de contas dos partidos, na atuação do Tribunal Superior Eleitoral, voto impresso e, agora, a troca do presidencialismo pelo semipresidencialismo. É verdade que, neste cipoal propositalmente confuso de modificações, surgem até medidas baseadas em dados objetivos e que seguem uma lógica correta, como as vinculadas à participação feminina nas eleições. Mas não adianta olhar para cada uma das partes sem entender a concepção mais ampla deste processo, escreve Fernando Abrucio em sua coluna no Valor, publicada sexta, 23/7. Continua a seguir.
O modelo reformista de Lira e companhia baseia-se em cinco características. Primeira: fazer muitas reformas e rapidamente. Segunda: realizá-las sem o debate adequado com a sociedade e especialistas. Terceira: ter as soluções sem que haja um diagnóstico prévio que de fato embase as propostas de mudança. Quarto: ter o cuidado de fazer mudanças que reforcem o poder dos reformadores do Centrão e seus aliados ocasionais, mas gerando a impressão de que estão resolvendo problemas urgentes do sistema político. E, por fim, toda essa correria por diversas reformas, e não só no campo político-institucional, é uma estratégia do presidente da Câmara para se fortalecer no jogo com a Presidência da República e com certos setores sociais. No fundo, Lira propõe várias coisas ao mesmo tempo para não expor sua agenda oculta.
Todas estas características têm conexão entre si. Ao fazer reformas mais céleres, o reformismo do Centrão reduz o tempo de debate, a transparência das decisões e, sobretudo, alija a sociedade de uma participação mais efetiva (e não decorativa) neste processo de mudança. A rapidez e a grande quantidade de alterações legais também diminuem a possibilidade de se fazer um diagnóstico mais preciso da realidade, que defina claramente a relação entre os problemas e os remédios institucionais propostos.
Mas como sempre há alguma medida correta num pacote tão grande de modificações, além de haver um charme em se propor algo para transformar o sistema representativo, muitos aceitam reformas com pouco embasamento analítico e aceitam mudar tudo de uma vez à espera de um novo tempo. Só que não. O resultado maior de todo o reformismo de Lira é garantir a força de seu grupo, inclusive frente àqueles que recentemente o chamavam de “velha política” e hoje não vivem sem um Centrão para chamar de seu.
Uma mistura explosiva contra a democracia brasileira alimenta esse reformismo atual. Sua agenda não dialoga nem com a última eleição nem com os cidadãos brasileiros que estão há um ano e meio no perrengue de uma pandemia que causou muitas mortes e empobrecimento. Afinal, quem na campanha eleitoral propôs mexer em tantas regras com os remédios que estão sendo propostos? Alguém foi eleito em 2018 em nome da entusiasmante reforma que estabelece o “distritão” como sistema de votação? Quantos eleitores ou grupos sociais foram ouvidos pela Câmara para permitir uma flexibilização da prestação de contas dos partidos? O povo foi avisado que elegerá um presidente que poderá ser mais frágil institucionalmente se for aprovado às pressas o semipresidencialismo, mesmo depois de o eleitorado ter aprovado em massa o presidencialismo no plebiscito de 1993?
Os modernizadores do Centrão poderão dizer que desde as jornadas de junho de 2013 os eleitores clamam por uma ampla reforma do sistema político. Sim, há descontentamento social amplo contra as instituições políticas. Entretanto, tal sentimento é muito difuso e baseado em perspectivas heterogêneas sobre o que deve ser feito. Por isso, é necessário um diagnóstico organizado pelos políticos eleitos, em diálogo com especialistas, para ser apresentado e debatido pela sociedade.
O que está ocorrendo é o inverso. Basta pensar na qualidade das soluções propostas. De que estudos tiraram a ideia de que o “distritão” é o sistema eleitoral mais adequado para resolver as mazelas da representação no Brasil? Qual é a pesquisa sobre o desempenho das urnas eletrônicas que embasa a proposta do voto impresso defendido por bolsonaristas e seus novos aliados da “velha política”? O deputado Arthur Lira conhece as diferenças mais gerais entre os sistemas políticos da França e de Portugal? De qual deles viria a fórmula semipresidencial para o Brasil? Como seria o semipresidencialismo numa federação como a brasileira, dado que os dois exemplares desse padrão no mundo são Estados unitários?
Para uma reforma tão ampla, há muitas perguntas básicas sem a mínima resposta. A junção de um modelo reformista quase secreto com a falta de embasamento técnico pode gerar um Frankenstein institucional. Antes de mais nada, é preciso ter um mapa de evidências sobre o funcionamento do sistema político, para, a partir disso, montar propostas e dialogar com a sociedade. Neste processo, poderá se perceber que há assuntos mais prioritários, os quais merecem maior atenção reformista. Ora, o que hoje é mais importante no cipoal de reformas propostas por Arthur Lira e seus aliados? Qual é o principal problema que está sendo atacado e por quais razões? Ninguém tem a menor ideia. Um país que não sabe qual é o seu caminho estratégico, em todos os planos da coletividade (economia, instituições políticas e políticas públicas), está fadado a trilhar o sentido errado das mudanças.
O exemplo do “distritão” representa fielmente a lógica do reformismo do Centrão. A escolha por ele seria para eleger os que têm mais votos. Mas nenhum político brasileiro é eleito por fora dos partidos e enfraquecê-los é o primeiro passo para piorar a qualidade da representação, pois será priorizado o individualismo dos candidatos, sem compromisso com pautas organizadas coletivamente e de forma constante, que é a tarefa das agremiações partidárias em qualquer democracia do mundo.
Mas isso quer dizer que os partidos funcionam adequadamente no Brasil? Bom, se o problema está neles, a reforma deve ser outra, e não a alteração para um sistema eleitoral que não dialoga com nossos problemas e não é nem referência internacional de boas práticas institucionais. Se os partidos precisam ser mais transparentes, mais permeáveis à participação da sociedade, ter mecanismos de controle sobre suas lideranças evitando a oligarquização partidária, que as reformas caminhem nesta direção. Mas quem do Centrão está interessado neste caminho?
A discussão do semipresidencialismo tem o mesmo defeito. O diagnóstico que o embasa relaciona-se à instabilidade do presidencialismo brasileiro. Isso seria solucionado com a indicação de primeiros-ministros que possam cair a qualquer momento num sistema multipartidário com partidos oligarquizados e com pouco controle social? A mudança do sistema pode tentar substituir a dificuldade de se trocar governos com problemas congressuais e/ou de popularidade por coalizões partidárias também instáveis e com pouca “accountability” junto ao eleitor. O Brasil poderia ficar mais próximo da Itália do pós-Guerra, com suas centenas de gabinetes nos quais mandavam sempre os mesmos. Provavelmente é isso que desejam Lira e seus amigos do Centrão.
Reformas institucionais são permanentes e centrais na democracia. Porém, devem ser feitas de forma pública e longamente debatidas, baseadas em diagnósticos claros e em prognósticos que calculem as possíveis consequências das mudanças, orientadas por uma visão sistêmica que olhe a relação entre todas as partes envolvidas (sistema partidário, eleitoral etc.), além de guiadas por alterações incrementais e que definam prioridades, pois não é prudente mudar tudo de uma vez só quando não se sabe os efeitos de tanta modificação. Se fosse para escolher, seria melhor começar pela PEC Pazuello, que delimita a indicação de militares para postos civis. A experiência atual já nos ensinou o suficiente sobre o risco democrático de se ter um governo militarizado e refém de um presidente autoritário.
A fórmula Lira de reformismo, no entanto, precisa desse modelo inflacionado de propostas e com pouco tempo para debate. É por este caminho que ele ganha poder junto aos pares, ao que se soma o pacto orçamentário secreto que fez com o Executivo federal. Ademais, com uma agenda de alterações legislativas inchada, não se discute e nem se define no Legislativo o maior problema do país hoje, que ficará nas gavetas do presidente da Câmara para que ele se transforme, de fato, no homem mais poderoso do país. Somente as ruas podem mudar essa realidade, gritando a palavra que foi interditada do debate pela aliança entre Bolsonaro e Lira.
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente
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