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Temos menos lembranças porque estamos olhando para o celular

“Somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos rompidos.” É difícil encontrar uma definição melhor da memória do que a oferecida por Jorge Luis Borges neste poema. Lembrar, uma função essencial do nosso cérebro, é também comprovar a fragilidade da nossa memória. Quão equivocada pode ser, quão vulnerável a contaminações a partir do que é lembrado por outras pessoas, ou mesmo quão capaz de elaborar falsas lembranças, como demonstrou a psicóloga Elizabeth Loftus. Os erros da memória são a norma e não a exceção, porque as experiências da nossa vida não ficam gravadas na nossa mente, nem o passado pode ser rebobinado sem mais, mas ficam armazenadas em múltiplos fragmentos e, com o passar do tempo, estes fragmentos confusos podem se recombinar de uma maneira diferente de como os eventos ocorreram em seu momento. Sem atenção não há memória. E em um mundo dominado por infinitas distrações tecnológicas é pertinente perguntar se o rastro das nossas lembranças será mais leve. Nosso já frágil arquivo do passado perderá dados? Julia Shaw, pesquisadora de Psicologia e Ciências da Linguagem da University College de Londres, aborda a questão em The memory illusion (a ilusão da memória, sem edição no Brasil). Um livro em que revê, do ponto de vista neurológico, bioquímico e —sobretudo— psicológico, os mecanismos que nos permitem recordar e as falhas da nossa memória, escreve Lola Galán em reportagem publicada dia 22/7 no El País. Continua a seguir.


Para começar, caímos no erro da multitarefa. Acreditamos que é possível manter uma conversa doméstica enquanto mandamos mensagens de WhatsApp pelo celular e damos uma olhada nas notícias no tablet. Mas nosso cérebro não está preparado para fazer várias coisas ao mesmo tempo. O neurologista e pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) Earl Miller estuda há anos como os humanos modernos são especialistas em passar vertiginosamente de uma tarefa para outra, ao invés de lidar com várias tarefas simultaneamente. E esse salto entre diferentes atividades acarreta um “custo cognitivo”. Em outras palavras, isso nos leva a ter um desempenho pior nas tarefas e tem um impacto negativo na nossa habilidade para recordar coisas mais tarde, aponta Julia Shaw em seu livro.

Margarita Diges Junco, professora de Psicologia da Memória e codiretora da Unidade de Psicologia Forense Experimental da Universidade Autônoma de Madrid (UAM), sabe muito bem disso. Nas experiências que realiza para verificar a solidez dos depoimentos em casos judiciais, viu como, ao realizar dois exercícios ao mesmo tempo, a memória dos participantes se ressente. “Além de olhar as imagens em uma tela, pedimos que se ocupem de outra tarefa que não envolve a visão, mas a mão, porque se trata de desenhar de cruzes e linhas”, explica por telefone. “Na hora de lembrar o que foi visto, o resultado é que mencionam coisas que não estavam na filmagem, inclusive um ônibus ou uma fonte inexistentes.”

E o que dizer da distração que representam os smartphones? “As pessoas tendem a prestar menos atenção no que as rodeia porque estão atentas ao celular. Isso equivale a ter menos lembranças dos atos de sua vida”, explica Shaw por e-mail. “E, além disso, assim externalizamos nos celulares parte da nossa memória. Várias pesquisas demonstraram que é menos provável que nos lembremos de detalhes complexos do que fizemos, ou de onde estivemos, se nos dedicarmos a fotografá-lo. Não estou dizendo que você não deva tirar fotos, mas é preciso se esforçar para prestar atenção e processar o que nos rodeia. Do contrário, você pode descobrir que não sabe por que tirou uma determinada foto nem quem era a pessoa sentada ao seu lado.”

Margarita Diges, da UAM, também destaca os riscos de desconcentração que os celulares proporcionam. “Quando você está dirigindo, mesmo olhando para a estrada, se você atende uma ligação porque é importante, a atenção que você presta à ligação está tirando a atenção no que entra pelos olhos... a estrada.” Um estudo da Universidade de Utah realizado em 2006, citado por Shaw em seu livro, comparou o comportamento de motoristas bêbados com o daqueles que falam em seus celulares. Concluiu que, mesmo utilizando o viva-voz, o risco de sofrer acidentes é semelhante nos dois grupos.

A internet também afeta nossa memória. Graças à rede temos motores de pesquisa que proporcionam acesso a uma vasta quantidade de informação e temos veículos de comunicação imediata: as redes sociais. Brian Clark, pesquisador em educação da Universidade Western Illinois, concluiu que, como resultado dessa conexão planetária, nossa memória está se transformando. “A distinção entre a lembrança pública e a lembrança privada esvaiu-se até desaparecer”, argumentou em um artigo de 2013. O que circula nas redes passa a ser a nossa lembrança.

É de se perguntar se essa memória coletiva estará menos sujeita aos erros do que a memória privada. E a memória histórica? Neste caso, existe um limite para o erro porque estamos diante de dados históricos reais, precisa Margarita Diges. “Mas se você olhar para momentos históricos como a Transição [da ditadura franquista na Espanha à democracia], verá que agora são recriados de uma maneira que talvez não seja como os vivemos. O que eu lembro se adequa ao que vivi ou a uma mistura entre o que vivi e o que li, porque estamos às voltas com a nossa história o tempo todo? Eu já não sei. O que está claro é que a experiência privada desses fatos é tingida pela lembrança coletiva, porque é muito difícil ir contra a corrente”.

E é muito mais difícil quando a memória pode ser facilmente refrescada graças ao Google. O que não seria prejudicial em si, observa Shaw, embora produza mudanças na nossa forma de lembrar. Entre outras coisas porque não precisamos mais recordar pequenos detalhes: estes estão armazenados em nosso cérebro externo, que é a internet. “Em termos de aprendizagem, a memória é ligeiramente menos importante hoje, enquanto a habilidade de identificar informações baseadas em evidências o é cada vez mais”, diz. Einstein já disse: “O que cabe no bolso, não guarde no cérebro”.

Nosso mundo hiperconectado também facilita o roubo de lembranças. O livro de Julia Shaw apresenta várias experiências que demonstram o quanto é comum o fato de se apropriar inadvertidamente das lembranças relatadas por outras pessoas. Algo que, enfatiza Shaw, sempre existiu, principalmente no âmbito familiar: um núcleo que compartilha memórias comuns, e onde é mais fácil que as lembranças que um dos membros relata, com o tempo, sejam apropriadas por outro. É que esses “espelhos rompidos” de que falava Borges tendem a se recompor, embora seja à custa de não refletir a realidade.



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