Pular para o conteúdo principal

Bolsonaro namora o abismo

Uma das qualidades mais importantes de um governante é a sua capacidade de reduzir o impacto das crises. Todo governo passa, em maior ou menor medida, por períodos turbulentos, e esse fenômeno político deveria ser tratado de maneira estratégica. Bolsonaro está trilhando um caminho inverso: aposta sempre no confronto e no acirramento dos ânimos quando há denúncias ou decisões de outros Poderes diferentes das desejadas pelo chefe do Executivo federal. No fundo, o presidente tem preferido namorar o abismo a atuar pela redução de danos. As falas radicalizadas e o comportamento beligerante de Bolsonaro não mudam o cenário básico do curto prazo: os próximos meses serão muito difíceis para o governo. A lista de problemas é grande. A CPI ocupará ainda grande parte do segundo semestre, trazendo muitas descobertas de inépcia e corrupção na condução da pandemia, para ao final provavelmente propor que o presidente seja julgado pelo crime de prevaricação, o que necessariamente gerará uma votação na Câmara federal. No front econômico, a inflação e o desemprego continuarão em patamares altos, o que se soma à elevação trágica da pobreza a níveis recorde. A crise hídrica e, consequentemente, de energia estará num momento decisivo, gerando aumento de preços e incertezas na economia. Também ocorrerá uma nova temporada de queimadas e desmatamento em larga escala, piorando a imagem internacional do Brasil, com efeitos geopolíticos e até no fluxo de capitais, escreve Fernando Abrucio no Valor, em texto publicado dia 16/7 no jornal. Continua abaixo.


A conjunção de fatores negativos já alimentaria, por si só, mais manifestações pelo impeachment e a perda de popularidade presidencial. Mas o recrudescimento da crise e a piora no humor do eleitorado contam com a ajuda de Bolsonaro, que aumenta os incêndios em vez de apagá-los. Embora haja melhores perspectivas para o governo no ano que vem, a bonança não virá se a tempestade inundar todo o sistema político e a sociedade de brigas e ressentimentos. Aqui vale anotar: dependendo do que for feito nos próximos meses, a maior parte do eleitorado desejará votar contra o modelo bolsonarista mesmo que a economia e a situação da pandemia melhorem em 2022. A percepção do eleitor pode seguir uma lógica bola de neve difícil de romper com melhorias pontuais.

A opção pelo namoro com o abismo só tem dois resultados possíveis: ou se leva até o fim a estratégia beligerante e autoritária, o que significa a quebra democrática em alguma medida, ou haverá uma multiplicação dos descontentes com o governo, tanto em termos institucionais como no campo da sociedade - em outras palavras, o segundo resultado significa menor popularidade e mais grupos concorrendo contra o projeto de reeleição. Em ambos os casos, Bolsonaro prefere o jogo de soma-zero, no qual ele ganha tudo e seus adversários perdem completamente. Certamente é uma estratégia kamikaze de governar.

O primeiro resultado possível é a aposta no discurso autoritário como remédio para a crise. Pode ser que o presidente acredite que ameaçar a democracia seja uma forma de emparedar os adversários e moderá-los no combate ao governo. O problema é que se abre a porta para uma saída radical e qualquer tipo de quebra democrática só aprofundará os problemas do país. Não há o menor clima internacional ou nacional para um golpe de Estado e fazê-lo gerará enorme desorganização econômica, social e política.

A trilha autoritária está no DNA do bolsonarismo, mas a opção sempre foi pelo caminho húngaro e venezulelano: o enfraquecimento paulatino das instituições democráticas, com eleições plebiscitárias favorecendo o líder na condução das mudanças incrementais em prol do autoritarismo. Essa estratégia populista que vem sendo adotada em alguns países depende muito de um sucesso inicial na economia e na condução dos principais assuntos coletivos, com apoio popular razoavelmente alto. No momento, e provavelmente até o fim do mandato, Bolsonaro não terá essas condições a seu favor, após um fracasso rotundo na luta contra a pandemia, cujas consequências sociais e econômicas não serão estancadas em curto espaço de tempo.

A aposta numa quebra democrática abrupta e num cenário de crise é politicamente desastrosa. Pode-se até classificá-la pelo conceito de Marcha da Insensatez, como descrita no célebre livro da historiadora Barbara Tuchman. Ela mostra como em vários momentos da história os governantes e seus aliados foram míopes e irracionais, cavando suas próprias covas. Um golpe no Brasil de hoje, comando por Bolsonaro e apoiado pelos militares (inclusive os das polícias estaduais), traria uma sensação imediata de vitória e poder aos extremistas bolsonaristas e ao próprio presidente, porém, teria muitos adversários na sociedade e no mundo político.

O próprio roteiro de ações de um golpe bolsonarista revela o enorme contingente de grupos que seriam negativamente afetados. O caminho mais provável dessa opção seria mudar os ministros do Supremo Tribunal Federal, cancelar as eleições de 2022 - ou expurgar todos os adversários do bolsonarismo, que podem ser quase todos os políticos atuais -, reduzir a liberdade de imprensa e de manifestação, impor uma linha extremamente conservadora à programação das rádios e TVs, aumentar a militarização do governo, além de isolar-se internacionalmente frente aos Estados Unidos, à Europa e grande parte da América Latina, sem que isso traga o apoio da China.

Não se pode ter ilusões: seriam esses os passos de um autoritarismo comandado pela família Bolsonaro. Os sócios principais desse projeto seriam as Forças Armadas, de modo que vale a pena suas lideranças refletirem desde já se não estariam entrando num caminho sem volta - a Marcha da Insensatez definida por Tuchman. É preciso reforçar que o Brasil sofreria muita pressão internacional, provavelmente até com embargos. Afinal, Biden seria muito pressionado para que não haja uma segunda Venezuela na América do Sul - e, no caso, muito maior e mais importante. O dia seguinte dessa aventura seria um grande ajuste de contas dos militares com a sociedade brasileira, exatamente o que a Lei de Anistia, promulgada em 1979, evitou que ocorresse em relação aos crimes da ditadura militar.

Oxalá não seja esse o caminho derivado do namoro de Bolsonaro com o abismo. O segundo resultado possível dessa postura é menos danoso ao país, mas muito ruim ao governo, embora o presidente insista nesta linha beligerante de ação para enfrentar a crise atual. Quanto mais apostar em pautas que enfraqueçam as instituições democráticas, mais adversários são criados ou se aliam entre si contra o projeto bolsonarista.

A análise das últimas ações do presidente torna mais claras as consequências de sua estratégia. Utilizar palavras chulas e argumentos mentirosos para falar de ministros do STF favorece ter decisões judiciais contrárias ao governo e aos aliados bolsonaristas. Se Bolsonaro está descontente e age de forma irracional contra o ministro Barroso, sinto informar que será muito mais complicado quando Alexandre de Moraes assumir o TSE. Dele, poderá vir alguma coisa muito forte no inquérito das fake news e atos antidemocráticos, atingindo o núcleo do bolsonarismo que comanda a comunicação política e as redes sociais. E arroubos autoritários não mudarão essa sentença.

Colocar em questão o modelo eleitoral é um duplo erro. Primeiro, porque são reduzidas as chances de se aprovar a proposta de voto impresso. Será muito difícil aprovar na Câmara e quase impossível no Senado, uma casa legislativa que fica cada vez mais longe do governo quanto mais o presidente multiplica suas ofensas pessoais contra membros da CPI. Segundo, porque dizer que não haverá eleições com o atual modelo é criar um pânico desnecessário em toda a classe política, especialmente governadores, deputados e senadores que vão buscar a reeleição em 2022. Como o golpe de 1964 ensinou, os políticos que apoiaram inicialmente o regime militar não ficaram imunes de posteriormente perderem seus postos (com cassações) ou as chances de concorrer às eleições. Arthur Lira não segurará o processo de impeachment se a maioria dos parlamentares perceber que não haverá eleições.

Seguir o modelo beligerante em meio à crise pode servir para segurar o público mais fiel do bolsonarismo, mas esse contingente é muito pequeno para garantir chances de reeleição. Pior do que isso: a cada radicalização discursiva, colocando a democracia em risco, perde-se mais apoio social. Gilberto Kassab, um dos políticos mais argutos do país, definiu bem esse fenômeno: o presidente está atemorizando os eleitores. Com isso, mesmo que a crise sanitária e econômica se reduza fortemente no ano que vem, uma grande parte do eleitorado poderá rechaçar definitivamente o voto em Bolsonaro. Não se pode desprezar o tamanho desse efeito bola de neve na percepção do eleitor.

Para quem apoia a estratégia bolsonarista de enfrentar a crise, sugiro o seguinte trecho do filósofo Friedrich Nietzsche: “Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará olhando dentro de ti” (Aforisma 146 - “Além do bem e do mal”). Em poucas palavras, quem namora o precipício, ao final cai nele. A questão é saber se Bolsonaro vai conseguir abandonar essa estratégia ou vai preferir seguir um caminho que só pode levar ao autoritarismo, com graves custos ao país e aos seus apoiadores, ou à decadência política.

Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...