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Valor: Dois Papas defende busca por diálogo

Filme do brasileiro Fernando Meirelles retrata Francisco e Bento XVI, é uma maravilhosidade, com duas atuações dignas de Oscar, difícil dizer quem está melhor.

Por Luciano Buarque de Holanda
Esqueça qualquer fidelidade histórica. O longa-metragem “Dois Papas” gira em torno de um hipotética série de encontros entre o papa Bento XVI e Jorge Mario Bergoglio, o então futuro papa Francisco, primeiro latino-americano a assumir o Vaticano.
Se os dois papas de fato se encontraram em Roma, o que é provável, as conversas foram privadas e decididamente muito diferentes da fantasia criada por Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”) e o roteirista neozeolandês Anthony McCarten (três vezes indicado ao Oscar), também autor da peça original.
Vale ponderar: Meirelles ocasionalmente recorre a flashbacks para remontar a juventude de Bergoglio, em especial seu papel na ditadura militar argentina. Isso não chega a ocupar grande espaço no roteiro, entretanto. “Dois Papas” nunca se compromete como biografia. Sobre o passado de Bento XVI, quase nada se fala. Um bispo americano chegou a comentar que o filme deveria se chamar “Um Papa”, visto que o personagem de Francisco é bem mais favorecido na trama.
É tudo uma ficção livre, norteada pela perspectiva dos realizadores, mas nem por isso “Dois Papas” deve ser subestimado. No fundo, o filme é uma pontual metáfora à polarização ideológica desses tempos tão estranhos.
De um lado temos o alemão Joseph Aloisius Ratzinger, o Bento XVI (Anthony Hopkins), conservador, intransigente, fiel defensor de antigos dogmas, que outrora pertenceu à Juventude Hitlerista. De outro, temos Bergoglio (Jonathan Pryce), o cardeal do povo, reformista declarado, disposto a defender no Vaticano tabus como o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
São figuras extremamente opostas. No filme, Bergoglio, ao desembarcar em Roma, dispensa o tratamento VIP. Ele insiste em carregar as próprias malas, sentar no banco da frente, junto ao motorista. Ratzinger lhe dá um chá de cadeira e implica com o traje informal do convidado. Logo, entram num profundo confronto ideológico. Os diálogos que surgem daí, somados às performances irretocáveis de Hopkins e Pryce, tornam “Dois Papas” um programa obrigatório.
Bento XVI está em baixa, na esteira de denúncias de corrupção no Vaticano. Bergoglio veio pedir sua aposentadoria, o que o papa entende como uma traição ao clero. “Perceba meu dilema: você é eloquente e popular. Sua aposentadoria pareceria um protesto (...) A igreja está sendo atacada, por que abandoná-la aos inimigos?”. Francisco tem sempre uma resposta afiada para tudo. Para o alemão, o cardeal é um “espertinho” cínico, jovem demais para entender os valores da tradição.
Note o quanto o texto ecoa nos atuais embates entre o pensamento progressista e o neorreacionarismo da era Trump e afins. A moral de “Dois Papas” está em forjar um diálogo entre ambas as partes.
Bento XVI muito resmunga, mas acaba desfrutando da companhia amigável do argentino, que lhe apresenta os prazeres da pizza e do futebol. Sobretudo, acaba reconhecendo que a igreja urge por mudanças, enxergando em Bergoglio a pessoa certa para a missão.
Aclamado pela crítica, “Dois Papas” junta-se a “O Irlandês” e “História de um Casamento” como as principais apostas da Netflix na corrida ao Oscar. Concorreu a quatro prêmios principais no Globo de Ouro e disputa o Bafta Awards nas categorias melhor elenco, roteiro adaptado, ator (Pryce), ator coadjuvante (Hopkins) e filme do ano.


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