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Coronavírus reacende feridas da União Europeia

Emergência do coronavírus reacende divisão na UE, que não sabe como resgatar as economias da região e vê deriva autoritária, escreve Lucas Ferraz, de Roma, para o Valor Econômico em uma ótima reportagem publicada na quinta, 9/4. Continua a seguir:

Numa deserta e chuvosa praça São Pedro, no Vaticano, na última sexta-feira de março, o papa Francisco rezou sozinho pelo fim da pandemia - cena que rapidamente ganhou ar de icônica na emergência global - e entoou uma homilia em que alertava: “Ninguém se salva sozinho”.
Embora a mensagem do pontífice não fosse endereçada primordialmente para a Europa, ela encarnava como poucas o estado de espírito de grande parte dos chefes de Estado da região sobre o futuro do continente, que se transformou em março no epicentro mundial do novo coronavírus.
Além de provocar um fechamento inédito das fronteiras da União Europeia, a pandemia destampou velhas fissuras do bloco, que ainda não decidiu como enfrentar a crise de proporções históricas e viu trocas de acusações entre os integrantes por falta de solidariedade, sobretudo em relação a Itália e Espanha, os mais afetados até agora pela covid-19.
Ainda sem ter digerido o Brexit, oficializado no fim de janeiro, e com a redução da atividade econômica em todos os países, mesmo naqueles que não vigoram a quarentena geral, a Europa ainda terá que enfrentar derivas autoritárias como a vista na Hungria, que deu poderes ditatoriais ao seu primeiro-ministro com o argumento de enfrentar a emergência do novo vírus. Imprensa, analistas e políticos de diferentes linhagens, todos foram unânimes: nunca o projeto da União Europeia esteve tão ameaçado.
A divisão sobre a melhor resposta ao tombo econômico que se avizinha se escancarou na inconclusiva reunião realizada numa teleconferência pelos 27 membros (19 deles adotam o euro como moeda comum) no dia 26 de março. Um grupo de nove países, liderados por italianos e espanhóis e com o apoio do francês Emmanuel Macron, defende uma espécie de novo Plano Marshall para a Europa, referência ao pacote anunciado pelos Estados Unidos em 1947 para reconstruir a economia do continente após a Segunda Guerra - ainda que não seja um mero detalhe o fato de as economias europeias, hoje, terem um peso muito menor no mundo em comparação ao século passado.
Parte desse plano, conforme apresentado preliminarmente nas últimas duas semanas, seria sustentado a partir da emissão de moeda, o que passou a ser chamado de “eurobond” ou “coronabond”. Haveria inflação, hoje inexistente no bloco, mas a ideia é que o reforço financeiro seja dividido proporcionalmente entre todos os membros.
A proposta enfrenta forte resistência dos países do Norte, em especial a Alemanha (maior economia do euro), Áustria, Holanda e Finlândia, o que reedita uma antiga disputa entre Norte e Sul já vista na crise de 2008. Os nórdicos temem a socialização de um débito que consideram de responsabilidade dos países do Sul, sobretudo aqueles que já enfrentavam uma frágil situação fiscal ainda antes da pandemia, caso da Itália e Espanha.
Eles sugerem, como resposta, a adoção de uma medida de estabilidade semelhante à utilizada pela Grécia entre 2010 e 2018, conhecida como Troika, que sustentou o débito do país por meio de um acordo entre Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu e a própria União Europeia. Ela seria aplicada de acordo com a necessidade de cada um, e não coletivamente. Esse é o principal motivo do nó nas negociações, ainda não desfeito.
“Para piorar, tudo isso aconteceu num momento em que havia uma profunda crise na liderança europeia”, diz o professor Raffaele Marchetti, especialista em relações internacionais da Luiss, universidade romana. “Há uma certa frieza dos pares, mas a debilidade política é patente. Não há ninguém capaz de liderar uma resposta continental”.
Na Itália, país que registra o maior número de mortos e o primeiro a adotar uma quarentena geral, a ausência de resposta continental ficou evidente durante o agravamento da pandemia. Quando a situação saiu do controle, na segunda semana de março, países vizinhos como a Áustria decidiram fechar as fronteiras. Também ficou patente a inexistência de um acordo sanitário europeu. Com a carência de médicos e de materiais como máscaras cirúrgicas, luvas, roupas de proteção e respiradores, os primeiros sinais de socorro vieram da China, Rússia e de Cuba, que enviaram equipes médicas e material. Os chineses ainda ajudaram a construir um hospital de campanha no centro da Itália.
A solidariedade europeia só se manifestou mais tarde. A Alemanha, que tem uma das menores taxas de morte relacionada ao coronavírus de toda a Europa, passou a receber pacientes italianos para ajudar a desafogar o sistema de saúde do país. Houve ainda doações de máscaras e de dinheiro de nações vizinhas e de organizações internacionais como a Cruz Vermelha. Por fim, chegou também um pedido de desculpas da presidente da Comissão Europeia, Angela Von der Leyen.
Belga de nascimento e criada na Alemanha, onde foi ministra de Angela Merkel, ela escreveu uma carta no jornal italiano “La Repubblica” no dia 1º: “Hoje a Europa está se mobilizando ao lado da Itália. Infelizmente não foi sempre assim. Precisamos reconhecer que nos primeiros dias da crise, de frente à necessidade de uma resposta comum europeia, muitos pensaram somente no problema da própria casa. Não se deram conta de que podemos derrotar essa pandemia somente juntos, como União. Foi um comportamento danoso que poderia ter sido evitado”.
O reconhecimento de Angela Von der Leyen foi uma vitória política para o primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte, que liderou a reação dos países do Sul contra o muro imposto pelo Norte. Na primeira reunião entre os líderes europeus, que terminou com a determinação de ganhar tempo, Conte foi duro - segundo relataram os participantes - com a posição defendida pela Alemanha.
Ao lado do espanhol Pedro Sánchez e do francês Macron, Conte mobilizou a resposta dos defensores do “eurobond”. Ele afirmou que os líderes europeus “não estavam escrevendo um manual de economia, mas um livro de história” e ressaltou que a excepcionalidade provocada pela pandemia pedia respostas inéditas, não os velhos mecanismos.
Os chefes políticos de França, Itália, Espanha, Irlanda, Portugal, Eslovênia, Grécia, Luxemburgo e Bélgica assinaram uma carta conjunta a favor da medida: “Se queremos que a Europa de amanhã esteja à altura das suas inspirações históricas, devemos agir hoje e preparar o nosso futuro comum”. A missiva evocava a necessidade de uma resposta “eficaz e unida”.
O economista Andrea Billi, professor da universidade La Sapienza, de Roma, diz que a Europa vive uma situação do ponto de vista econômico semelhante a de um conflito bélico. “É como uma guerra. Não tem como um país se salvar sozinho. Só conseguiremos nos salvar todos juntos. Caso contrário, estaremos mortos como bloco”, afirma.
Para ele, o problema não é a queda da produção, uma realidade em todos os 27 países da União Europeia, mas sim como sustentar a demanda interna na região, o que segundo ele só será possível recorrendo a um débito público comum. “Nenhum país europeu tem hoje condições de fazer um grande plano, nem mesmo a Alemanha. Só podemos contar com algo como o ‘eurobond’”.
As escolhas econômicas do resgate financeiro terão implicações políticas, o que explica a ausência de uma resposta comum até o momento. Uma nova rodada de conversas deverá ocorrer na próxima semana.
Angela Merkel, a principal liderança do euro, está para deixar o poder no próximo ano, conforme já prometeu. Sua recusa ao “eurobond” tem uma lógica interna, segundo o professor Marchetti. “O problema é o custo político da medida. Na Alemanha, por exemplo, optar por esse caminho causaria um dano político grave a Merkel, que tem a popularidade em queda, enquanto por outro lado cresce a aprovação da direita nacionalista alemã”, afirma.
A lógica não é a mesma em todo o continente: partidos da extrema-direita e com a agenda xenófoba, como são os casos da italiana Liga e do espanhol Vox, historicamente eurocéticos, passaram a defender uma união conjunta de toda a Europa para a reconstrução no pós-pandemia.
A visão sombria sobre o futuro do bloco após o caos provocado pelo coronavírus foi amplificada por analistas como o estrategista americano Ian Bremmer, da consultoria de risco político Eurasia. Ele traçou um panorama apocalíptico para a Europa, com o crescimento da violência contra refugiados e imigrantes, além do fortalecimento de grupos políticos “nacionalistas e xenófobos”.
Marchetti ressalta que a atual crise se mistura a outras em curso na União Europeia, como o Brexit, que ele classifica como um “caso evidente de falência”. O professor afirma que há muitos países interessados na fragilidade da Europa, como a Rússia, a China e os Estados Unidos, ressaltando o apoio de Donald Trump à saída do Reino Unido do bloco.
Outra questão em jogo é o poder da União Europeia para aplicar sanções contra seus membros, em especial após a mudança promovida na Hungria, com o Parlamento aprovando poderes ilimitados ao primeiro-ministro Viktor Orbán, o que contraria todos os tratados em vigor na região.
“Esse é um problema de alguns países que fizeram uma rápida transição, entraram na União Europeia de maneira rápida e renegam desde sempre os princípios do bloco. Acontece com a Hungria e também com a Polônia. Mas não podemos perder de vista que a Hungria não é um país central do ponto de vista político e econômico”, afirma Marchetti.
O coronavírus será o maior teste para a União Europeia desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o bloco começou a ser esboçado. Para Andrea Billi, a pandemia será seu verdadeiro teste, muito mais desafiador que a crise de 2008. Ele compara a zona do euro a um barco raso, apropriado para navegar em um lago com águas calmas, e não num mar cheio de ondas. “Espero que ele resista à tempestade.”


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