Abaixo, artigo do autor para o Correio da Cidadania. Um balanço de fim de ano em um blog cada vez mais bissexto e com algumas novidades para 2011.
Muita gente se surpreendeu com o ano de 2010 na política nacional. A vitória nas urnas de Dilma Rousseff na eleição presidencial, porém, só foi surpresa para os que desconhecem o Brasil ou para quem vive pautado pelo que corre nos (des)caminhos da internet, esses sim, cada vez mais surpreendentes.
Na verdade, o ano de 2010 foi "mais do mesmo". Curiosamente, o que marcou o período foi a falta de surpresas, ausência do inesperado, dos fatos novos com força para modificar um cenário que contava com o protagonismo absoluto do presidente Lula, cujo mandato vai se encerrando com aprovação popular superior a 80%. No fundo, o resumo do ano é este mesmo: nada de novo aconteceu, logo, Lula fez seu sucessor, elegendo a primeira mulher presidenta do Brasil.
Análise reducionista? De maneira alguma, mas realmente para explicar o que ocorreu em 2010 é preciso retroceder um pouco e realizar uma reflexão sobre os oito anos do governo Lula. De fato, a eleição de Dilma foi a vitória do lulismo, um movimento político que ainda precisa ser reconhecido como tal pelos historiadores, mas que para o jornalismo que se pratica por ai já se configura como uma entidade sociológica ou histórica de peso no Brasil.
Pois tentemos então verificar as razões para o sucesso do lulismo. Quais seriam, afinal, os elementos basilares que sustentaram os dois mandatos do primeiro presidente oriundo das classes populares e que o fizeram capaz de vencer a batalha contra a grande mídia, com a reeleição em 2006 e a eleição neste ano da sua sucessora? O que explica tamanha força de Lula na população, especialmente nos estratos mais humildes?
Na verdade, há dois modos de explicar o sucesso do lulismo. Um valoriza as virtudes de seu projeto político. O outro valoriza as deficiências dos adversários e oposicionistas do atual regime. Na soma deve residir a melhor explicação para o que se passou no Brasil nos últimos oito anos.
De fato, 2010 talvez tenha condensado com precisão essas duas linhas explicativas – Dilma Rousseff se elegeu pelas virtudes de Lula e pelas deficiências patentes das oposições. Senão vejamos, voltando à análise retrospectiva:
Virtudes econômicas e políticas
Do ponto de vista dos méritos do governo Lula, há duas considerações a serem feitas, uma de ordem política, outra econômica, ambas igualmente relevantes. No campo econômico, o sucesso do lulismo advém em parte da conjuntura favorável, entre os anos de 2004 e 2008, que permitiu o crescimento do país em um ritmo mais acelerado do que o verificado na década anterior, e da adoção, durante a crise de 2008 e 2009, de medidas de incentivo à economia que possibilitaram ao país manter estabilidade e, na saída da crise, alcançar um crescimento significativo, apesar das fortes turbulências internacionais. Nas arriscadas palavras do presidente, a crise no Brasil não passou mesmo de marolinha – ainda que não tenha sido exatamente assim, esta foi a percepção geral da população, acostumada aos colapsos diante de qualquer turbulência lá fora, como ocorria nos anos tucanos.
Sim, há muita controvérsia sobre a real participação do governo federal durante a crise e também nos momentos anteriores, mas é visível e patente que o Brasil está em situação muito melhor do que oito anos atrás. Os números gerais da economia mostram este crescimento, o país deu um salto qualitativo ainda por ser criteriosamente mensurado, mas provavelmente tão importante quanto o ocorrido durante o varguismo, nas décadas de 30 a 50 do século passado. Em mais alguns anos, se as previsões estiverem corretas, o Brasil deverá se tornar a quinta economia do mundo.
Não há, portanto, como negar que o país mudou. Sob Lula e por causa dele, o que mais mudou foi o Nordeste, que vem crescendo a taxas chinesas, e a vida dos mais pobres, que melhorou muito. As classes C, D e E foram de fato as maiores beneficiárias do lulismo, que, por meio de políticas de transferência de renda e de aumento continuado no salário mínimo, foi bem sucedido no intento de reduzir a pobreza absoluta no país.
Como resultado, o governo Lula tirou da miséria milhões de famílias que viviam à margem da sociedade, incorporando-as não apenas ao mundo das bolsas assistenciais, mas em seguida ao mercado de bens de consumo, via crédito facilitado e outros incentivos ao fortalecimento desses novos consumidores, que até então eram vistos como meros subcidadãos.
A força do Nordeste e dos mais pobres se refletiu no voto. Dilma Rousseff abriu 12 milhões de votos sobre José Serra no segundo turno, dos quais 10 milhões no Nordeste. Nas grandes cidades, a diferença também foi evidente: Serra ganhou em todas as regiões ricas, perdeu de lavada nas periferias ou morros, regiões de menor renda. O corte sociológico do voto repetiu e aprofundou, em alguns casos, o que ocorreu em 2006, com os mais pobres e menos escolarizados votando no PT e os mais ricos e escolarizados, no PSDB. Lula venceu em todos os segmentos, mas abriu maior margem entre os mais pobres; Dilma praticamente empataria com Serra se o Nordeste não existisse e deve aos mais pobres e menos escolarizados a sua eleição.
E como o assunto voltou para a política, vamos à análise dos méritos do governo neste campo. Ao longo dos oito anos de mandato, o presidente conseguiu impor a sua agenda e, nos momentos mais difíceis, superar as crises com uma estratégia muito própria e particular, evitando o confronto direto e guardando as energias para os embates que realmente importavam.
Ao assumir o governo em 2003, Lula começou a matar a oposição que lhe era mais incômoda – o PSDB – ao incorporar em seu governo as bandeiras daquele partido. Os tucanos não perceberam no primeiro momento, mas depois se deram conta de que ficaram sem discurso, sem programa, sem o que dizer ao eleitorado. Nem mesmo a denúncia do "mas fui eu quem iniciou tudo" colava, pois Lula conseguiu alardear muito bem a tal "herança maldita" dos anos FHC, o que lhe deu inclusive uma boa zona de conforto para governar, já que na memória de boa parte dos brasileiros, especialmente os mais jovens, os anos sob o tucanato foram os mais desastrosos já vividos.
O lulismo, porém, não se preocupou apenas em matar as ambições tucanas. No campo de esquerda, fortaleceu o PT, o que seria previsível, mas também tratou de fazer um embate direto e pesado com eventuais opositores, até para não pairar dúvida alguma sobre quem teria a hegemonia da esquerda no país. Assim, não foi à toa que nem Heloísa Helena em 2006 ou o diretor deste Correio, Plínio de Arruda Sampaio, em 2010, conseguiram êxito eleitoral.
Lula de fato conseguiu reunir em seu apoio praticamente todo o movimento social organizado (sindicatos urbanos, MST e outros representantes dos trabalhadores do campo, centros acadêmico-estudantis etc.), restando apenas pequenas dissidências desses movimentos sob influência do PSOL ou PSTU, em setores muito localizados e pouco relevantes do ponto de vista da política de massas.
Cabe aqui uma ressalva, um parênteses, sobre a Igreja Católica. Por razões diversas, este importante alicerce do Partido dos Trabalhadores chegou em 2010 dividido e praticamente rompido com o lulismo, que se ainda conta com a simpatia de muitos nomes importantes na Igreja, já não é hegemônico como foi no passado. Interessante notar que a cisão se deu tanto nas alas progressistas como nas conservadoras. As primeiras, incomodadas com a questão ética, já há algum tempo vêm transferindo apoio ao PSOL de Plínio Sampaio. Já os conservadores se preocupam com as posições do atual governo no campo comportamental, condenando avanços como a discussão sobre o aborto, direitos dos homossexuais, presença dos símbolos religiosos em prédios públicos etc.
Parênteses fechado, a verdade é que do tripé que sempre sustentou o PT, simbolizado na união de operários, intelectuais e militantes católicos, Lula fechou o seu ciclo no Poder ampliando enormemente a sua influência no movimento sindical e hegemônico no meio universitário, em que pesem as críticas pontuais oriundas de intelectuais mais à esquerda.
Perdeu o apoio entre os católicos, é bem verdade, mas conquistou por outro lado setores que sempre lhe foram hostis, como parte dos evangélicos e algumas camadas mais conservadoras da sociedade que já não temem o PT e vêem na palavra do presidente a garantia de paz social.
Além de toda a movimentação do aparato de Estado para conquistar o espectro de centro, comumente associado ao PMDB, e até uma parte da direita (PP e PTB), cabe por fim ressaltar o carisma e a presença do próprio presidente à frente de seu governo. Com boa parte da imprensa fazendo oposição à sua gestão durante os dois mandatos, Lula fez ele mesmo a defesa do governo, ocupando inteligentemente os espaços concedidos à figura do presidente e aproveitando esses momentos para dirigir seu discurso a quem é chamado a cada quatro anos para decidir sobre o futuro – o eleitorado. Esta comunicação direta, dispensando os intermediários, nem sempre foi bem compreendida, mas funcionou a contento, mesmo nos momentos mais tensos do governo e nas campanhas eleitorais.
Os erros da oposição
Como descrito acima, Lula e seus aliados tiveram sorte e foram eficientes na ampliação da rede de apoio ao governo. Mas contaram com a decisiva colaboração das oposições, à esquerda e à direita, que passaram anos sem rumo e sem estratégia para realizar qualquer tipo de combate ao governo. Noves fora zero, o que mais se viu foi a radicalização de um discurso neoudenista - com Heloisa Helena, Alckmin e Serra -, que no fim das contas apresentou parcos resultados.
De fato, o PSDB, supostamente o mais forte dos adversários do lulismo, passou os últimos anos negando sua própria história, escondendo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e tentando, sem nenhum sucesso, se apresentar como "melhor gestor" do capitalismo brasileiro. No desespero, nas duas campanhas, o partido acabou apelando para uma patética guinada à direita, na tentativa de satanizar Lula e o PT. Melhor acreditar na hipótese do desespero, porque se foi estratégia pensada, além de ineficiente, jogou o partido em uma crise existencial que hoje enseja a tal "refundação" do tucanato.
No final de 2009, muitos analistas apostavam na vitória de Serra nas urnas, desde que ele se apresentasse como o "pós-Lula". O ex-governador de São Paulo até que tentou manter o figurino de continuador da obra do atual presidente, mas o discurso não colou e seus marqueteiros rapidamente perceberam o erro – a candidata de Lula era Dilma e o povão não entendia por que raios deveria votar em um candidato de oposição que se dizia situação.
Sem ter muito o que dizer contra Lula e ultrapassado por Dilma nas pesquisas, Serra adotou o neoudenismo como mote de campanha e foi em frente, conseguindo ao menos provocar um segundo turno ao evocar o tema do aborto na campanha, mobilizando o voto religioso contra a candidata petista. No segundo turno, porém, mais uma vez a força dos movimentos sociais se fez presente e garantiu a mobilização necessária para evitar o "retrocesso". No fundo, o discurso udenista de Serra ao mesmo tempo em que garantiu o segundo turno, impediu a sua vitória nas urnas, pois afastou o eleitorado que votou em Marina Silva e Plínio Sampaio...
Do ponto de vista da oposição de esquerda, hoje capitaneada pelo PSOL, é possível falar em dois momentos. Na eleição de 2006, com Heloísa Helena, a crítica se limitou ao mesmo neoudenismo do tucano Geraldo Alckmin. A então senadora até fez algum sucesso localizado, conseguiu boa votação, mas não agregou coisa alguma ao partido e nem sequer ao próprio capital político, posto que não conseguiu se eleger senadora neste ano que finda.
Já a candidatura de Plínio Sampaio não teve o mesmo impacto nas urnas, porém certamente cumpriu o objetivo de fortalecer a mensagem de esquerda do partido e disseminar a crítica de esquerda para o público geral. Com muito bom humor, inteligência e disposição, Plínio parecia um daqueles meio-de-campo veterano que passeia em campo sabendo exatamente onde a bola vai e para onde deveria ir, dando os toques necessários para a melhor evolução da equipe. Porém, e há sempre um porém, vale a ressalva de que é até surreal que um partido do tamanho do PSOL já reproduza em seu nanismo os mesmos problemas que se verificavam no PT, com a disputa interna entre correntes corroendo a unidade e coesão necessárias para uma disputa política de maior envergadura.
Como se pôde ver até aqui, o presidente Lula e sua candidata Dilma Rousseff tiveram suas tarefas bastante facilitadas pela oposição que enfrentaram nas urnas e, antes, no cotidiano do governo. Se a coalizão montada para eleger Dilma Rousseff vai se mostrar sustentável nos próximos quatro anos são outros quinhentos, tema para outro artigo que fica desde já prometido para janeiro.
Por ora, este analista cada vez mais bissexto gostaria de desejar aos leitores do Correio um feliz Natal e um 2011 repleto de felicidade e realizações. Gostaria também de deixar um fraterno e público abraço ao diretor deste Correio por um ano que certamente foi cansativo, de muito trabalho, mas também recompensador. E viva o Brasil!
Muita gente se surpreendeu com o ano de 2010 na política nacional. A vitória nas urnas de Dilma Rousseff na eleição presidencial, porém, só foi surpresa para os que desconhecem o Brasil ou para quem vive pautado pelo que corre nos (des)caminhos da internet, esses sim, cada vez mais surpreendentes.
Na verdade, o ano de 2010 foi "mais do mesmo". Curiosamente, o que marcou o período foi a falta de surpresas, ausência do inesperado, dos fatos novos com força para modificar um cenário que contava com o protagonismo absoluto do presidente Lula, cujo mandato vai se encerrando com aprovação popular superior a 80%. No fundo, o resumo do ano é este mesmo: nada de novo aconteceu, logo, Lula fez seu sucessor, elegendo a primeira mulher presidenta do Brasil.
Análise reducionista? De maneira alguma, mas realmente para explicar o que ocorreu em 2010 é preciso retroceder um pouco e realizar uma reflexão sobre os oito anos do governo Lula. De fato, a eleição de Dilma foi a vitória do lulismo, um movimento político que ainda precisa ser reconhecido como tal pelos historiadores, mas que para o jornalismo que se pratica por ai já se configura como uma entidade sociológica ou histórica de peso no Brasil.
Pois tentemos então verificar as razões para o sucesso do lulismo. Quais seriam, afinal, os elementos basilares que sustentaram os dois mandatos do primeiro presidente oriundo das classes populares e que o fizeram capaz de vencer a batalha contra a grande mídia, com a reeleição em 2006 e a eleição neste ano da sua sucessora? O que explica tamanha força de Lula na população, especialmente nos estratos mais humildes?
Na verdade, há dois modos de explicar o sucesso do lulismo. Um valoriza as virtudes de seu projeto político. O outro valoriza as deficiências dos adversários e oposicionistas do atual regime. Na soma deve residir a melhor explicação para o que se passou no Brasil nos últimos oito anos.
De fato, 2010 talvez tenha condensado com precisão essas duas linhas explicativas – Dilma Rousseff se elegeu pelas virtudes de Lula e pelas deficiências patentes das oposições. Senão vejamos, voltando à análise retrospectiva:
Virtudes econômicas e políticas
Do ponto de vista dos méritos do governo Lula, há duas considerações a serem feitas, uma de ordem política, outra econômica, ambas igualmente relevantes. No campo econômico, o sucesso do lulismo advém em parte da conjuntura favorável, entre os anos de 2004 e 2008, que permitiu o crescimento do país em um ritmo mais acelerado do que o verificado na década anterior, e da adoção, durante a crise de 2008 e 2009, de medidas de incentivo à economia que possibilitaram ao país manter estabilidade e, na saída da crise, alcançar um crescimento significativo, apesar das fortes turbulências internacionais. Nas arriscadas palavras do presidente, a crise no Brasil não passou mesmo de marolinha – ainda que não tenha sido exatamente assim, esta foi a percepção geral da população, acostumada aos colapsos diante de qualquer turbulência lá fora, como ocorria nos anos tucanos.
Sim, há muita controvérsia sobre a real participação do governo federal durante a crise e também nos momentos anteriores, mas é visível e patente que o Brasil está em situação muito melhor do que oito anos atrás. Os números gerais da economia mostram este crescimento, o país deu um salto qualitativo ainda por ser criteriosamente mensurado, mas provavelmente tão importante quanto o ocorrido durante o varguismo, nas décadas de 30 a 50 do século passado. Em mais alguns anos, se as previsões estiverem corretas, o Brasil deverá se tornar a quinta economia do mundo.
Não há, portanto, como negar que o país mudou. Sob Lula e por causa dele, o que mais mudou foi o Nordeste, que vem crescendo a taxas chinesas, e a vida dos mais pobres, que melhorou muito. As classes C, D e E foram de fato as maiores beneficiárias do lulismo, que, por meio de políticas de transferência de renda e de aumento continuado no salário mínimo, foi bem sucedido no intento de reduzir a pobreza absoluta no país.
Como resultado, o governo Lula tirou da miséria milhões de famílias que viviam à margem da sociedade, incorporando-as não apenas ao mundo das bolsas assistenciais, mas em seguida ao mercado de bens de consumo, via crédito facilitado e outros incentivos ao fortalecimento desses novos consumidores, que até então eram vistos como meros subcidadãos.
A força do Nordeste e dos mais pobres se refletiu no voto. Dilma Rousseff abriu 12 milhões de votos sobre José Serra no segundo turno, dos quais 10 milhões no Nordeste. Nas grandes cidades, a diferença também foi evidente: Serra ganhou em todas as regiões ricas, perdeu de lavada nas periferias ou morros, regiões de menor renda. O corte sociológico do voto repetiu e aprofundou, em alguns casos, o que ocorreu em 2006, com os mais pobres e menos escolarizados votando no PT e os mais ricos e escolarizados, no PSDB. Lula venceu em todos os segmentos, mas abriu maior margem entre os mais pobres; Dilma praticamente empataria com Serra se o Nordeste não existisse e deve aos mais pobres e menos escolarizados a sua eleição.
E como o assunto voltou para a política, vamos à análise dos méritos do governo neste campo. Ao longo dos oito anos de mandato, o presidente conseguiu impor a sua agenda e, nos momentos mais difíceis, superar as crises com uma estratégia muito própria e particular, evitando o confronto direto e guardando as energias para os embates que realmente importavam.
Ao assumir o governo em 2003, Lula começou a matar a oposição que lhe era mais incômoda – o PSDB – ao incorporar em seu governo as bandeiras daquele partido. Os tucanos não perceberam no primeiro momento, mas depois se deram conta de que ficaram sem discurso, sem programa, sem o que dizer ao eleitorado. Nem mesmo a denúncia do "mas fui eu quem iniciou tudo" colava, pois Lula conseguiu alardear muito bem a tal "herança maldita" dos anos FHC, o que lhe deu inclusive uma boa zona de conforto para governar, já que na memória de boa parte dos brasileiros, especialmente os mais jovens, os anos sob o tucanato foram os mais desastrosos já vividos.
O lulismo, porém, não se preocupou apenas em matar as ambições tucanas. No campo de esquerda, fortaleceu o PT, o que seria previsível, mas também tratou de fazer um embate direto e pesado com eventuais opositores, até para não pairar dúvida alguma sobre quem teria a hegemonia da esquerda no país. Assim, não foi à toa que nem Heloísa Helena em 2006 ou o diretor deste Correio, Plínio de Arruda Sampaio, em 2010, conseguiram êxito eleitoral.
Lula de fato conseguiu reunir em seu apoio praticamente todo o movimento social organizado (sindicatos urbanos, MST e outros representantes dos trabalhadores do campo, centros acadêmico-estudantis etc.), restando apenas pequenas dissidências desses movimentos sob influência do PSOL ou PSTU, em setores muito localizados e pouco relevantes do ponto de vista da política de massas.
Cabe aqui uma ressalva, um parênteses, sobre a Igreja Católica. Por razões diversas, este importante alicerce do Partido dos Trabalhadores chegou em 2010 dividido e praticamente rompido com o lulismo, que se ainda conta com a simpatia de muitos nomes importantes na Igreja, já não é hegemônico como foi no passado. Interessante notar que a cisão se deu tanto nas alas progressistas como nas conservadoras. As primeiras, incomodadas com a questão ética, já há algum tempo vêm transferindo apoio ao PSOL de Plínio Sampaio. Já os conservadores se preocupam com as posições do atual governo no campo comportamental, condenando avanços como a discussão sobre o aborto, direitos dos homossexuais, presença dos símbolos religiosos em prédios públicos etc.
Parênteses fechado, a verdade é que do tripé que sempre sustentou o PT, simbolizado na união de operários, intelectuais e militantes católicos, Lula fechou o seu ciclo no Poder ampliando enormemente a sua influência no movimento sindical e hegemônico no meio universitário, em que pesem as críticas pontuais oriundas de intelectuais mais à esquerda.
Perdeu o apoio entre os católicos, é bem verdade, mas conquistou por outro lado setores que sempre lhe foram hostis, como parte dos evangélicos e algumas camadas mais conservadoras da sociedade que já não temem o PT e vêem na palavra do presidente a garantia de paz social.
Além de toda a movimentação do aparato de Estado para conquistar o espectro de centro, comumente associado ao PMDB, e até uma parte da direita (PP e PTB), cabe por fim ressaltar o carisma e a presença do próprio presidente à frente de seu governo. Com boa parte da imprensa fazendo oposição à sua gestão durante os dois mandatos, Lula fez ele mesmo a defesa do governo, ocupando inteligentemente os espaços concedidos à figura do presidente e aproveitando esses momentos para dirigir seu discurso a quem é chamado a cada quatro anos para decidir sobre o futuro – o eleitorado. Esta comunicação direta, dispensando os intermediários, nem sempre foi bem compreendida, mas funcionou a contento, mesmo nos momentos mais tensos do governo e nas campanhas eleitorais.
Os erros da oposição
Como descrito acima, Lula e seus aliados tiveram sorte e foram eficientes na ampliação da rede de apoio ao governo. Mas contaram com a decisiva colaboração das oposições, à esquerda e à direita, que passaram anos sem rumo e sem estratégia para realizar qualquer tipo de combate ao governo. Noves fora zero, o que mais se viu foi a radicalização de um discurso neoudenista - com Heloisa Helena, Alckmin e Serra -, que no fim das contas apresentou parcos resultados.
De fato, o PSDB, supostamente o mais forte dos adversários do lulismo, passou os últimos anos negando sua própria história, escondendo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e tentando, sem nenhum sucesso, se apresentar como "melhor gestor" do capitalismo brasileiro. No desespero, nas duas campanhas, o partido acabou apelando para uma patética guinada à direita, na tentativa de satanizar Lula e o PT. Melhor acreditar na hipótese do desespero, porque se foi estratégia pensada, além de ineficiente, jogou o partido em uma crise existencial que hoje enseja a tal "refundação" do tucanato.
No final de 2009, muitos analistas apostavam na vitória de Serra nas urnas, desde que ele se apresentasse como o "pós-Lula". O ex-governador de São Paulo até que tentou manter o figurino de continuador da obra do atual presidente, mas o discurso não colou e seus marqueteiros rapidamente perceberam o erro – a candidata de Lula era Dilma e o povão não entendia por que raios deveria votar em um candidato de oposição que se dizia situação.
Sem ter muito o que dizer contra Lula e ultrapassado por Dilma nas pesquisas, Serra adotou o neoudenismo como mote de campanha e foi em frente, conseguindo ao menos provocar um segundo turno ao evocar o tema do aborto na campanha, mobilizando o voto religioso contra a candidata petista. No segundo turno, porém, mais uma vez a força dos movimentos sociais se fez presente e garantiu a mobilização necessária para evitar o "retrocesso". No fundo, o discurso udenista de Serra ao mesmo tempo em que garantiu o segundo turno, impediu a sua vitória nas urnas, pois afastou o eleitorado que votou em Marina Silva e Plínio Sampaio...
Do ponto de vista da oposição de esquerda, hoje capitaneada pelo PSOL, é possível falar em dois momentos. Na eleição de 2006, com Heloísa Helena, a crítica se limitou ao mesmo neoudenismo do tucano Geraldo Alckmin. A então senadora até fez algum sucesso localizado, conseguiu boa votação, mas não agregou coisa alguma ao partido e nem sequer ao próprio capital político, posto que não conseguiu se eleger senadora neste ano que finda.
Já a candidatura de Plínio Sampaio não teve o mesmo impacto nas urnas, porém certamente cumpriu o objetivo de fortalecer a mensagem de esquerda do partido e disseminar a crítica de esquerda para o público geral. Com muito bom humor, inteligência e disposição, Plínio parecia um daqueles meio-de-campo veterano que passeia em campo sabendo exatamente onde a bola vai e para onde deveria ir, dando os toques necessários para a melhor evolução da equipe. Porém, e há sempre um porém, vale a ressalva de que é até surreal que um partido do tamanho do PSOL já reproduza em seu nanismo os mesmos problemas que se verificavam no PT, com a disputa interna entre correntes corroendo a unidade e coesão necessárias para uma disputa política de maior envergadura.
Como se pôde ver até aqui, o presidente Lula e sua candidata Dilma Rousseff tiveram suas tarefas bastante facilitadas pela oposição que enfrentaram nas urnas e, antes, no cotidiano do governo. Se a coalizão montada para eleger Dilma Rousseff vai se mostrar sustentável nos próximos quatro anos são outros quinhentos, tema para outro artigo que fica desde já prometido para janeiro.
Por ora, este analista cada vez mais bissexto gostaria de desejar aos leitores do Correio um feliz Natal e um 2011 repleto de felicidade e realizações. Gostaria também de deixar um fraterno e público abraço ao diretor deste Correio por um ano que certamente foi cansativo, de muito trabalho, mas também recompensador. E viva o Brasil!
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