Maria da Paz Trefaut entrevistou para o Valor quatro profissionais da saúde mental discutem os efeitos da pandemia e do isolamento social nas pessoas e na sociedade. O resultado da conversa está na matéria abaixo, publicada na quinta, 9/3, no caderno Eu&Fim de Semana. Vale muito a leitura.
Via Skype, FaceTime, Zoom ou WhatsApp, o trabalho de quem lida com a saúde mental vive intensidade inédita, ditada pela emergência da pandemia do novo coronavírus. É um tempo de angústias e incertezas que, a partir do isolamento social, traz mudanças imprevisíveis a uma sociedade muito pautada pelo individualismo: do casamento ao trabalho, da solidão à vida nas redes, passando pelo luto com mortes em série e corpos enterrados sem despedidas dos familiares.
Para refletir sobre este momento, o Valor conversou com os psicanalistas Luiz Tenório Oliveira Lima (foto) e Maria Homem e os psiquiatras Rodrigo Bressan e Emanuelle Pires, também psicanalista. Bressan é professor livre-docente da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, Emanuelle integra o corpo clínico do Hospital Albert Einstein, Lima é professor na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e Maria Homem, professora da Faap, é autora, com o psicanalista Contardo Calligaris, de “Coisa de Menina? Uma Conversa sobre Gênero, Sexualidade, Maternidade e Feminismo”.
Valor: Como vocês estão experimentando suas próprias quarentenas?
Maria Homem: Como digo para meu filho, que hoje não é tão pequeno: “Estamos vivendo um acontecimento histórico. Você vai lembrar disso para sempre e contar para os seus filhos”. A quarentena pode ser muito difícil e mesmo impossível para alguns, sobretudo os mais vulneráveis. É algo que nos atravessa e instaura um antes e um depois inédito na experiência humana da forma como ocorre agora.
Emanuelle Pires: No início, acompanhava notícias direto, o que me tomou tempo e energia. Agora só me informo pela manhã e antes de dormir. Busco estabelecer uma rotina semelhante à que tinha antes. Horários para dormir, acordar, trabalhar, refeições e lazer. O mesmo vale para os meus filhos, com aulas virtuais. Corro nas calçadas do bairro. Trabalho sozinha no consultório. Minha secretária trabalha remotamente. Meu marido se reveza comigo no cuidado com as crianças.
Rodrigo Bressan: Tento implementar uma rotina de sono, trabalho e exercício físico. Faço “conference calls” há muitos anos com colegas do exterior. Fiquei surpreso com as teleconferências entre pessoas que encontro habitualmente no trabalho: interrompem menos, pensam mais antes de se manifestar e as reuniões estão mais objetivas e resolutivas. Acho que essa mudança de hábitos terá um impacto positivo no futuro. Não sou particularmente ansioso, mas não é fácil lidar com o fato de não sabermos quanto tempo vai durar tudo isto. Além da demanda normal do consultório, há procura de quem está sofrendo com o estresse da quarentena.
Luiz Tenório Oliveira Lima: Com calma, pelo menos até agora. Está sendo uma oportunidade para estudar e ler. Mas as sessões por áudio são muito cansativas.
Valor: De que forma vocês veem as consequências do confinamento na vida social?
Maria: É cedo para ver as consequências dessa experiência nas nossas vidas. Ela trará novos elementos para o debate global. Várias camadas de nossa forma de vida estarão em xeque: sociabilidade, produtividade, ambiente, poluição, circulação de bens e pessoas, saúde pública, desigualdade, dinheiro, relações de afeto, relações de trabalho, previdência e providência.
Emanuelle: Para quem já tem uma rede social ampla, os contatos virtuais propiciam troca de experiências, comentários. Quem já estava isolado socialmente, como muitos idosos, vive um confinamento mais doloroso. Aqueles que tinham contato com os filhos e netos em almoços de domingo semanais ou quinzenais agora experimentam solidão e saudade. Nos pacientes com transtornos mentais tenho visto o pior cenário. Pessoas com sintomas depressivos e ansiosos encontravam na rotina do trabalho uma fonte de convívio social e um estímulo para seguir firme no combate ao desânimo e desesperança típicos dessas enfermidades. Muitos não conseguem o mesmo em home office e notam que é difícil conter a procrastinação e desatenção.
Bressan: Haverá uma restrição da sociabilização em geral. Principalmente em relação aos colegas de trabalho com quem convivemos na rotina. Tenho observado um fenômeno interessante. Várias pessoas têm se aproximado de amigos ou parentes com um significado mais profundo na vida delas. A pandemia cria uma situação de ameaça geral e se tem mais tempo.
Lima: Acho muito cedo para fazer uma previsão diante da combinação de uma experiência tão inédita, nunca antes experimentada, com um universo social e cultural tão diversificado e heterogêneo como o do nosso país. Seria temerário qualquer juízo sobre o futuro.
Valor: Pelas circunstâncias da pandemia, as pessoas não conseguem se despedir de seus familiares. Como uma situação traumática como esta forja a subjetividade contemporânea? De que forma nos iguala a todos num país tão desigual?
Bressan: Todas as sociedades têm como ponto central o entendimento da morte como pedra fundamental da cultura. O que está ocorrendo vai dificultar o processamento do luto e será um desafio para a saúde mental das pessoas. É possível que ocorram mais quadros de estresse pós-traumático e, eventualmente, depressão pós-luto. Sabemos que a resposta ao estresse codifica a expressão dos nossos genes e é passada para as próximas gerações. Todos temos a certeza da finitude, mas a enorme assimetria social faz com que pessoas sejam vistas como melhores ou piores, rico versus pobres, anônimos versus celebridades. Um evento que ameaça a vida, em geral, suscita mais solidariedade.
Maria: Sim, a morte nos iguala a todos. Tanto no sentido de ser o irremediável acontecimento de nossas vidas, quanto no fato de, todos, neste momento, não termos o poder de realizar nossos rituais. É uma dupla perda que deveremos aprender a elaborar. E há um terceiro luto agora. Sempre nos consolamos com o momento especial de nossa futura morte. Às vezes até o fantasiamos em ruminações adolescentes ou adultas. Se tínhamos uma franja desse leve narcisismo do reconhecimento post mortem, também é chegada a hora de saber que poderemos morrer ou ver alguém amado morrer no meio de um turbilhão de mortos. Só um entre muitos.
Lima: Não penso que uma situação traumática como esta, que afeta as pessoas em diferentes lugares e culturas, possa alterar a subjetividade contemporânea. As pessoas e os lugares são muito desiguais. Não só economicamente, mas psicológica e culturalmente. Penso que só em cada caso e situação podemos formar alguma ideia consistente. Nas circunstâncias atuais, não temos evidências sobre consequências das situações traumáticas, enquanto tais. Seja em relação às pessoas, aos lugares ou às culturas. O tempo e a paciência de cada um são as condições mais propícias para um conhecimento verdadeiro sobre uma situação tão terrível como a que estamos vivendo em escala planetária.
Emanuelle: Os rituais de velório e sepultamento são importantes no processo de luto pois permitem reunir família e amigos que se confortam mutuamente e rendem homenagens ao seu ente querido. A privação desses rituais pode ser muito traumática e nos coloca frente à vulnerabilidade diante da morte. Essa realidade pode ter um efeito significativo na subjetividade de todos ao colocar em perspectiva os efeitos do consumismo desenfreado e da enorme desigualdade social de nosso país. Nossa integridade física está sob risco e nosso narcisismo, em xeque. As selfies desapareceram das redes sociais e a solidariedade parece emergir como um valor a ser alcançado.
Valor: Como é possível reinventar a vida na internet, depois que ela se tornou o principal meio comunicação?
Maria: É a rede que temos. A grande teia que soubemos inventar para nos conectar. Saibamos ter a coragem de fazer as perguntas certas e o debate lúcido sobre essa que será a inescapável nova forma de contato entre os seres. Não só nessa crise, mas em nosso futuro como espécie.
Bressan: O uso intenso da internet, em especial a mídia social, está associado a uma redução do convívio social e, para os jovens, a uma diminuição da capacidade de interação social fora da tela. Ao mesmo tempo, ela é uma importante fonte de socialização. Agora, jovens estudam com a companhia de um amigo que está do outro lado da tela, tiram dúvidas. Temos que aprender com eles e já estamos aprendendo. Há amigos que fazem happy hour virtual, brindando cada um com a sua bebida e jogando conversa fora. É diferente? Claro, mas preserva a sociabilidade e coisas boas podem aparecer.
Emanuelle: Agora temos um recurso inestimável nas mãos. Ensino a distância, teleatendimento, aplicativos de atividade física e meditação, reuniões corporativas e com amigos on-line. Tudo pode poupar tempo de deslocamento e poderá continuar após essa contingência.
Lima: A vida está sempre sendo reinventada, e recriar a internet pode ser um fator determinante na possibilidade de renovação. Como no poema visual de Augusto de Campos: “Renovar/ Dia Sol /A /Sol Dia/ Renovar”.
Valor: A Ordem dos Psicólogos de Portugal lançou um documento com recomendações para lidar com o estresse durante a pandemia do coronavírus: diz que é normal sentir-se “triste, ansioso, confuso, assustado ou zangado”. E propõe um estilo de vida saudável, com dieta adequada, exercícios em casa e um bom sono sem álcool ou drogas. Vocês consideram uma agenda muito rigorosa para tempos tão turbulentos?
Maria: Comer bem, movimentar-se e dormir bem sempre foram e serão diretrizes básicas para manter o corpo vivo e o mais imune possível diante do outro e de um mundo que pode ser invasivo e destruidor. É o que estamos vivendo agora, um momento em que o poder destrutivo é elevado. E não é fantasia. É um vírus, é real. Mas a humanidade sempre seguiu sua jornada solitária (ou a busca por companhia transcendente) com substâncias que alteram a consciência. Por que agora seria diferente? Duvido.
Emanuelle: Essa agenda será adotada por pessoas que já seguiam uma rotina saudável antes do confinamento. Acho difícil que um momento contingencial propicie o despertar do engajamento numa rotina saudável. Como política de saúde pública é o que devemos preconizar. Além disso, é preciso a urgente regulamentação do Conselho Federal de Medicina para que a telepsiquiatria garanta a assistência à população.
Bressan: Ao contrário, é em tempos difíceis que devemos ter mais disciplina. É como numa maratona, precisamos de um preparo grande para enfrentar uma corrida longa. Não dá para agir como se todos os dias fossem fim de semana. O nosso comportamento de fim de semana só é assim (mais liberal e cheio de exageros) pois existem os dias normais. Não dá para funcionar dessa forma na situação de privação social e de locomoção em que nos encontramos.
Lima: São regras muito rigorosas e não necessárias, acredito. As pessoas são diferentes entre si.
Valor: Há quem acredite que o que estamos vivendo tornará o mundo e a nós mesmos melhores. Qual sua percepção a respeito?
Emanuelle: Concordo. Do ponto de vista subjetivo, o momento exige flexibilidade, criatividade, resiliência e capacidade de tolerância. Do ponto de vista social, a população pode vir a exigir políticas ambientais mais consistentes, retomada do investimento em políticas públicas para a saúde, ciências e desenvolvimento. O discurso individualista e baseado no consumo pode perder força.
Maria: É uma encruzilhada, como em qualquer momento em que está em jogo a vida e a morte. Não há como não ter consequências. Tudo o que nos atinge é argamassa para elaboração subjetiva e social. O mundo será então mais “humano, justo e igualitário”? Não creio. Mas, se não queríamos assumir, agora saberemos que ele é profundamente humano e, talvez por isso mesmo, injusto e desigual. Como conduziremos o debate a partir de agora? Com menos cinismo, por favor.
Bressan: Sou cético quanto à ideia de que todas as mudanças vêm para melhor. “Jogo do contente” pode ser uma estratégia para sobreviver à crise, mas não é uma forma boa de predizer as consequências futuras. Tenho certeza de que coisas muito boas podem surgir desta enorme dificuldade, que está somente começando.
Lima: Não sei o que significa as pessoas ou o mundo se tornarem melhores. Quanto às pessoas, é impossível saber, não só agora em situação de crise, mas em qualquer tempo. Acho que um momento como este aumenta muito, em todos, o desejo de que sejamos e que fiquemos melhores depois de tudo. Não sei se será de fato possível.
Valor: Temos a cultura corporal do contato, agora proibido. Seria esse um vírus antiamor?
Bressan: Tivemos o HIV, o vírus antissexo, e agora o antiamor: é engraçado. Acredito que é mais um vírus que, muito provavelmente, será controlado e as pessoas vão voltar a se abraçar e beijar da mesma forma. Mas, assim como ocorreu com o HIV, pode ter consequências. No caso do HIV, a consequência foi positiva: as pessoas passaram a fazer mais sexo protegido, e não menos sexo. Quais serão as consequências da covid-19? Espero que não paremos de abraçar e beijar.
Maria: O amor nunca foi só corporal. O amor é sobretudo imaginário. Conseguiremos nos apaixonar mais longamente por aquele Pierrô que esbarramos no Carnaval. Ele morrerá só em setembro.
Lima: Contato corporal e amor, para mim, são situações, atitudes e sentimentos muito diferentes. Contato e amor não são a mesma coisa. Amor é demasiadamente complexo. É uma trama muito grande de sentimentos e emoções.
Emanuelle: Depende. Podemos aproveitar a experiência de inúmeros casais que se relacionaram a distância ao longo da história. Se falta o corpo, que sobrem as palavras. Mais uma vez é preciso ter iniciativa e escapar da lamentação. Vídeos, mensagens e cartões virtuais podem manter o amor em tempos de contingência.
Valor: Psiquiatras franceses falam que é cedo para saber se o confinamento fará os casais darem um tempo na vida sexual ou se teremos um “baby boom”.
Bressan: É muito provável que a convivência intensa leve a bastante desgaste das relações, principalmente na fase de incertezas que estamos vivendo. Quando estivermos lidando com as consequências reais da pandemia, tais como hospitais em colapso, mortes e empobrecimento geral da população, a tendência é que os casais fiquem mais próximos e se ajudem. A vida sexual deve se intensificar até porque seremos privados de grande parte das alternativas de prazer.
Emanuelle: A vida sexual poderá ser afetada negativamente. Para desejar é necessário experimentar a falta de alguém, uma certa distância. O confinamento não facilita isso.
Maria: Torço para que os casais saibam se conhecer no mais fundo de suas fantasias proibidas e inconscientes, que é o que move de fato o desejo. Aquele desejo que interessa, o mais pulsante. O resto é sexo protocolar e tédio absoluto. O resto é aquela fria camada de irritação ou ódio visceral que, por vezes, mantém os casamentos.
Lima: Não sei, tudo pode acontecer.
Valor: O isolamento social será uma prova também para os casais “infiéis”? Pode trazer verdade aos relacionamentos?
Maria: Essa experiência que estamos vivendo vai revelar e, eventualmente, exterminar tudo aquilo que está aí para ser destruído. Ou seja, se você quer continuar nas mesmas bases sobre as quais construiu sua vida, prepare-se: agora é a hora de se esforçar para segurar as cordas que mantêm tudo assim como está.
Emanuelle: Se a infidelidade for baseada apenas em relações sexuais extraconjugais, sim. Se houver cunho amoroso, o encontro poderá apenas ser adiado.
Bressan: Essa pergunta só será respondida pelos estudos feitos após a resolução da pandemia. Com certeza vai mudar a dinâmica do cônjuge infiel, privado do encontro do amante. O fato de não se encontrarem não significa que o relacionamento extraconjugal vai acabar. Experiência clínica mostra que as mensagens se mantêm e mantêm os relacionamentos. A convivência maior dos casais pode contribuir tanto para o acirramento quanto apaziguamento dos problemas.
Lima: É muito difícil saber. Precisaríamos ter acesso a cada caso ou a cada situação para saber com precisão.
Valor: Os carrinhos de supermercado cheios de provisões e o desaparecimento do papel higiênico do comércio mostram que somos mais individualistas do que solidários?
Bressan: Mostra que todos somos vulneráveis ao comportamento de manada. A falta de diretrizes claras de governantes faz as pessoas avaliarem os riscos por si mesmas. A realização de estoques permite que as pessoas tenham um sensação de controle sobre a incerteza: “mesmo se faltar para os outros, estou garantido”, o que reduz a ansiedade antecipatória ligada à possibilidade da escassez.
Emanuelle: Acho que demonstram pânico e uma conduta para evitar sofrimento - o que, sem dúvida, prejudica a todos.
Lima: Esse tipo de comportamento pode ser explicado por medo e pânico. É uma situação complicada porque não temos treino com falta e escassez, inclusive internas. Do contato interno da pessoa com ela própria. As pessoas ficam à mercê de uma tempestade de emoções, e o resultado pode ser certas atitudes e ações de medo e pânico.
Maria: Mostra que estamos c. de medo e que precisamos de nos defender de toda essa m.. Como sabemos, o papel higiênico revela nossa relação com esse objeto tão primário - um dos primeiros com o qual nos relacionamos na vida, o cocô. Ampliando: temos medo do outro, temos medo do que nós mesmos produzimos, temos culpa do que nós possamos vir a fazer e, sobretudo, não fazer.
Valor: Quais são as pequenas coisas que nos permitirão sobreviver e atravessar esta crise?
Bressan: A rotina e a manutenção do contato interpessoal são de fundamental importância, pois ajudam a ter a sensação de que o tempo está passando e que estamos caminhando em busca de uma resolução do problema. É importante compartilhar com outras pessoas as agruras da quarentena. Está demonstrado que quando você ouve as dores do outro, isso ajuda para que você não se sinta tão sozinho no sofrimento, o que permite a superação dos desafios com mais facilidade.
Emanuelle: Situações-limite como esta nos põem em contato com a nossa finitude e podem nos despertar para um panorama mais amplo, ou seja, para o valor das relações, da saúde e da vida em comunidade. Pequenos gestos como ajudar um vizinho idoso que não pode ir ao supermercado, parceiros dividirem as tarefas domésticas ou famílias voltarem a fazer refeições em conjunto podem trazer recompensa emocional e o regozijo que só o amor e a amizade podem proporcionar.
Lima: O contato de cada um consigo mesmo, o dar-se conhecimento de si próprio. Se o que chamo de contato significar convivência interna com a dor mental, inerente a cada um de nós. Porque a situação mais melancólica está sempre presente, mesmo nos momentos de maior alegria.
Maria: As pequenas coisas deixarei para cada um inventar. A grande coisa é: permita-se viver isso. Não é todo dia que a seta do trágico penetra na história da humanidade com tal velocidade e potência.
Via Skype, FaceTime, Zoom ou WhatsApp, o trabalho de quem lida com a saúde mental vive intensidade inédita, ditada pela emergência da pandemia do novo coronavírus. É um tempo de angústias e incertezas que, a partir do isolamento social, traz mudanças imprevisíveis a uma sociedade muito pautada pelo individualismo: do casamento ao trabalho, da solidão à vida nas redes, passando pelo luto com mortes em série e corpos enterrados sem despedidas dos familiares.
Para refletir sobre este momento, o Valor conversou com os psicanalistas Luiz Tenório Oliveira Lima (foto) e Maria Homem e os psiquiatras Rodrigo Bressan e Emanuelle Pires, também psicanalista. Bressan é professor livre-docente da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, Emanuelle integra o corpo clínico do Hospital Albert Einstein, Lima é professor na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e Maria Homem, professora da Faap, é autora, com o psicanalista Contardo Calligaris, de “Coisa de Menina? Uma Conversa sobre Gênero, Sexualidade, Maternidade e Feminismo”.
Valor: Como vocês estão experimentando suas próprias quarentenas?
Maria Homem: Como digo para meu filho, que hoje não é tão pequeno: “Estamos vivendo um acontecimento histórico. Você vai lembrar disso para sempre e contar para os seus filhos”. A quarentena pode ser muito difícil e mesmo impossível para alguns, sobretudo os mais vulneráveis. É algo que nos atravessa e instaura um antes e um depois inédito na experiência humana da forma como ocorre agora.
Emanuelle Pires: No início, acompanhava notícias direto, o que me tomou tempo e energia. Agora só me informo pela manhã e antes de dormir. Busco estabelecer uma rotina semelhante à que tinha antes. Horários para dormir, acordar, trabalhar, refeições e lazer. O mesmo vale para os meus filhos, com aulas virtuais. Corro nas calçadas do bairro. Trabalho sozinha no consultório. Minha secretária trabalha remotamente. Meu marido se reveza comigo no cuidado com as crianças.
Rodrigo Bressan: Tento implementar uma rotina de sono, trabalho e exercício físico. Faço “conference calls” há muitos anos com colegas do exterior. Fiquei surpreso com as teleconferências entre pessoas que encontro habitualmente no trabalho: interrompem menos, pensam mais antes de se manifestar e as reuniões estão mais objetivas e resolutivas. Acho que essa mudança de hábitos terá um impacto positivo no futuro. Não sou particularmente ansioso, mas não é fácil lidar com o fato de não sabermos quanto tempo vai durar tudo isto. Além da demanda normal do consultório, há procura de quem está sofrendo com o estresse da quarentena.
Luiz Tenório Oliveira Lima: Com calma, pelo menos até agora. Está sendo uma oportunidade para estudar e ler. Mas as sessões por áudio são muito cansativas.
Valor: De que forma vocês veem as consequências do confinamento na vida social?
Maria: É cedo para ver as consequências dessa experiência nas nossas vidas. Ela trará novos elementos para o debate global. Várias camadas de nossa forma de vida estarão em xeque: sociabilidade, produtividade, ambiente, poluição, circulação de bens e pessoas, saúde pública, desigualdade, dinheiro, relações de afeto, relações de trabalho, previdência e providência.
Emanuelle: Para quem já tem uma rede social ampla, os contatos virtuais propiciam troca de experiências, comentários. Quem já estava isolado socialmente, como muitos idosos, vive um confinamento mais doloroso. Aqueles que tinham contato com os filhos e netos em almoços de domingo semanais ou quinzenais agora experimentam solidão e saudade. Nos pacientes com transtornos mentais tenho visto o pior cenário. Pessoas com sintomas depressivos e ansiosos encontravam na rotina do trabalho uma fonte de convívio social e um estímulo para seguir firme no combate ao desânimo e desesperança típicos dessas enfermidades. Muitos não conseguem o mesmo em home office e notam que é difícil conter a procrastinação e desatenção.
Bressan: Haverá uma restrição da sociabilização em geral. Principalmente em relação aos colegas de trabalho com quem convivemos na rotina. Tenho observado um fenômeno interessante. Várias pessoas têm se aproximado de amigos ou parentes com um significado mais profundo na vida delas. A pandemia cria uma situação de ameaça geral e se tem mais tempo.
Lima: Acho muito cedo para fazer uma previsão diante da combinação de uma experiência tão inédita, nunca antes experimentada, com um universo social e cultural tão diversificado e heterogêneo como o do nosso país. Seria temerário qualquer juízo sobre o futuro.
Valor: Pelas circunstâncias da pandemia, as pessoas não conseguem se despedir de seus familiares. Como uma situação traumática como esta forja a subjetividade contemporânea? De que forma nos iguala a todos num país tão desigual?
Bressan: Todas as sociedades têm como ponto central o entendimento da morte como pedra fundamental da cultura. O que está ocorrendo vai dificultar o processamento do luto e será um desafio para a saúde mental das pessoas. É possível que ocorram mais quadros de estresse pós-traumático e, eventualmente, depressão pós-luto. Sabemos que a resposta ao estresse codifica a expressão dos nossos genes e é passada para as próximas gerações. Todos temos a certeza da finitude, mas a enorme assimetria social faz com que pessoas sejam vistas como melhores ou piores, rico versus pobres, anônimos versus celebridades. Um evento que ameaça a vida, em geral, suscita mais solidariedade.
Maria: Sim, a morte nos iguala a todos. Tanto no sentido de ser o irremediável acontecimento de nossas vidas, quanto no fato de, todos, neste momento, não termos o poder de realizar nossos rituais. É uma dupla perda que deveremos aprender a elaborar. E há um terceiro luto agora. Sempre nos consolamos com o momento especial de nossa futura morte. Às vezes até o fantasiamos em ruminações adolescentes ou adultas. Se tínhamos uma franja desse leve narcisismo do reconhecimento post mortem, também é chegada a hora de saber que poderemos morrer ou ver alguém amado morrer no meio de um turbilhão de mortos. Só um entre muitos.
Lima: Não penso que uma situação traumática como esta, que afeta as pessoas em diferentes lugares e culturas, possa alterar a subjetividade contemporânea. As pessoas e os lugares são muito desiguais. Não só economicamente, mas psicológica e culturalmente. Penso que só em cada caso e situação podemos formar alguma ideia consistente. Nas circunstâncias atuais, não temos evidências sobre consequências das situações traumáticas, enquanto tais. Seja em relação às pessoas, aos lugares ou às culturas. O tempo e a paciência de cada um são as condições mais propícias para um conhecimento verdadeiro sobre uma situação tão terrível como a que estamos vivendo em escala planetária.
Emanuelle: Os rituais de velório e sepultamento são importantes no processo de luto pois permitem reunir família e amigos que se confortam mutuamente e rendem homenagens ao seu ente querido. A privação desses rituais pode ser muito traumática e nos coloca frente à vulnerabilidade diante da morte. Essa realidade pode ter um efeito significativo na subjetividade de todos ao colocar em perspectiva os efeitos do consumismo desenfreado e da enorme desigualdade social de nosso país. Nossa integridade física está sob risco e nosso narcisismo, em xeque. As selfies desapareceram das redes sociais e a solidariedade parece emergir como um valor a ser alcançado.
Valor: Como é possível reinventar a vida na internet, depois que ela se tornou o principal meio comunicação?
Maria: É a rede que temos. A grande teia que soubemos inventar para nos conectar. Saibamos ter a coragem de fazer as perguntas certas e o debate lúcido sobre essa que será a inescapável nova forma de contato entre os seres. Não só nessa crise, mas em nosso futuro como espécie.
Bressan: O uso intenso da internet, em especial a mídia social, está associado a uma redução do convívio social e, para os jovens, a uma diminuição da capacidade de interação social fora da tela. Ao mesmo tempo, ela é uma importante fonte de socialização. Agora, jovens estudam com a companhia de um amigo que está do outro lado da tela, tiram dúvidas. Temos que aprender com eles e já estamos aprendendo. Há amigos que fazem happy hour virtual, brindando cada um com a sua bebida e jogando conversa fora. É diferente? Claro, mas preserva a sociabilidade e coisas boas podem aparecer.
Emanuelle: Agora temos um recurso inestimável nas mãos. Ensino a distância, teleatendimento, aplicativos de atividade física e meditação, reuniões corporativas e com amigos on-line. Tudo pode poupar tempo de deslocamento e poderá continuar após essa contingência.
Lima: A vida está sempre sendo reinventada, e recriar a internet pode ser um fator determinante na possibilidade de renovação. Como no poema visual de Augusto de Campos: “Renovar/ Dia Sol /A /Sol Dia/ Renovar”.
Valor: A Ordem dos Psicólogos de Portugal lançou um documento com recomendações para lidar com o estresse durante a pandemia do coronavírus: diz que é normal sentir-se “triste, ansioso, confuso, assustado ou zangado”. E propõe um estilo de vida saudável, com dieta adequada, exercícios em casa e um bom sono sem álcool ou drogas. Vocês consideram uma agenda muito rigorosa para tempos tão turbulentos?
Maria: Comer bem, movimentar-se e dormir bem sempre foram e serão diretrizes básicas para manter o corpo vivo e o mais imune possível diante do outro e de um mundo que pode ser invasivo e destruidor. É o que estamos vivendo agora, um momento em que o poder destrutivo é elevado. E não é fantasia. É um vírus, é real. Mas a humanidade sempre seguiu sua jornada solitária (ou a busca por companhia transcendente) com substâncias que alteram a consciência. Por que agora seria diferente? Duvido.
Emanuelle: Essa agenda será adotada por pessoas que já seguiam uma rotina saudável antes do confinamento. Acho difícil que um momento contingencial propicie o despertar do engajamento numa rotina saudável. Como política de saúde pública é o que devemos preconizar. Além disso, é preciso a urgente regulamentação do Conselho Federal de Medicina para que a telepsiquiatria garanta a assistência à população.
Bressan: Ao contrário, é em tempos difíceis que devemos ter mais disciplina. É como numa maratona, precisamos de um preparo grande para enfrentar uma corrida longa. Não dá para agir como se todos os dias fossem fim de semana. O nosso comportamento de fim de semana só é assim (mais liberal e cheio de exageros) pois existem os dias normais. Não dá para funcionar dessa forma na situação de privação social e de locomoção em que nos encontramos.
Lima: São regras muito rigorosas e não necessárias, acredito. As pessoas são diferentes entre si.
Valor: Há quem acredite que o que estamos vivendo tornará o mundo e a nós mesmos melhores. Qual sua percepção a respeito?
Emanuelle: Concordo. Do ponto de vista subjetivo, o momento exige flexibilidade, criatividade, resiliência e capacidade de tolerância. Do ponto de vista social, a população pode vir a exigir políticas ambientais mais consistentes, retomada do investimento em políticas públicas para a saúde, ciências e desenvolvimento. O discurso individualista e baseado no consumo pode perder força.
Maria: É uma encruzilhada, como em qualquer momento em que está em jogo a vida e a morte. Não há como não ter consequências. Tudo o que nos atinge é argamassa para elaboração subjetiva e social. O mundo será então mais “humano, justo e igualitário”? Não creio. Mas, se não queríamos assumir, agora saberemos que ele é profundamente humano e, talvez por isso mesmo, injusto e desigual. Como conduziremos o debate a partir de agora? Com menos cinismo, por favor.
Bressan: Sou cético quanto à ideia de que todas as mudanças vêm para melhor. “Jogo do contente” pode ser uma estratégia para sobreviver à crise, mas não é uma forma boa de predizer as consequências futuras. Tenho certeza de que coisas muito boas podem surgir desta enorme dificuldade, que está somente começando.
Lima: Não sei o que significa as pessoas ou o mundo se tornarem melhores. Quanto às pessoas, é impossível saber, não só agora em situação de crise, mas em qualquer tempo. Acho que um momento como este aumenta muito, em todos, o desejo de que sejamos e que fiquemos melhores depois de tudo. Não sei se será de fato possível.
Valor: Temos a cultura corporal do contato, agora proibido. Seria esse um vírus antiamor?
Bressan: Tivemos o HIV, o vírus antissexo, e agora o antiamor: é engraçado. Acredito que é mais um vírus que, muito provavelmente, será controlado e as pessoas vão voltar a se abraçar e beijar da mesma forma. Mas, assim como ocorreu com o HIV, pode ter consequências. No caso do HIV, a consequência foi positiva: as pessoas passaram a fazer mais sexo protegido, e não menos sexo. Quais serão as consequências da covid-19? Espero que não paremos de abraçar e beijar.
Maria: O amor nunca foi só corporal. O amor é sobretudo imaginário. Conseguiremos nos apaixonar mais longamente por aquele Pierrô que esbarramos no Carnaval. Ele morrerá só em setembro.
Lima: Contato corporal e amor, para mim, são situações, atitudes e sentimentos muito diferentes. Contato e amor não são a mesma coisa. Amor é demasiadamente complexo. É uma trama muito grande de sentimentos e emoções.
Emanuelle: Depende. Podemos aproveitar a experiência de inúmeros casais que se relacionaram a distância ao longo da história. Se falta o corpo, que sobrem as palavras. Mais uma vez é preciso ter iniciativa e escapar da lamentação. Vídeos, mensagens e cartões virtuais podem manter o amor em tempos de contingência.
Valor: Psiquiatras franceses falam que é cedo para saber se o confinamento fará os casais darem um tempo na vida sexual ou se teremos um “baby boom”.
Bressan: É muito provável que a convivência intensa leve a bastante desgaste das relações, principalmente na fase de incertezas que estamos vivendo. Quando estivermos lidando com as consequências reais da pandemia, tais como hospitais em colapso, mortes e empobrecimento geral da população, a tendência é que os casais fiquem mais próximos e se ajudem. A vida sexual deve se intensificar até porque seremos privados de grande parte das alternativas de prazer.
Emanuelle: A vida sexual poderá ser afetada negativamente. Para desejar é necessário experimentar a falta de alguém, uma certa distância. O confinamento não facilita isso.
Maria: Torço para que os casais saibam se conhecer no mais fundo de suas fantasias proibidas e inconscientes, que é o que move de fato o desejo. Aquele desejo que interessa, o mais pulsante. O resto é sexo protocolar e tédio absoluto. O resto é aquela fria camada de irritação ou ódio visceral que, por vezes, mantém os casamentos.
Lima: Não sei, tudo pode acontecer.
Valor: O isolamento social será uma prova também para os casais “infiéis”? Pode trazer verdade aos relacionamentos?
Maria: Essa experiência que estamos vivendo vai revelar e, eventualmente, exterminar tudo aquilo que está aí para ser destruído. Ou seja, se você quer continuar nas mesmas bases sobre as quais construiu sua vida, prepare-se: agora é a hora de se esforçar para segurar as cordas que mantêm tudo assim como está.
Emanuelle: Se a infidelidade for baseada apenas em relações sexuais extraconjugais, sim. Se houver cunho amoroso, o encontro poderá apenas ser adiado.
Bressan: Essa pergunta só será respondida pelos estudos feitos após a resolução da pandemia. Com certeza vai mudar a dinâmica do cônjuge infiel, privado do encontro do amante. O fato de não se encontrarem não significa que o relacionamento extraconjugal vai acabar. Experiência clínica mostra que as mensagens se mantêm e mantêm os relacionamentos. A convivência maior dos casais pode contribuir tanto para o acirramento quanto apaziguamento dos problemas.
Lima: É muito difícil saber. Precisaríamos ter acesso a cada caso ou a cada situação para saber com precisão.
Valor: Os carrinhos de supermercado cheios de provisões e o desaparecimento do papel higiênico do comércio mostram que somos mais individualistas do que solidários?
Bressan: Mostra que todos somos vulneráveis ao comportamento de manada. A falta de diretrizes claras de governantes faz as pessoas avaliarem os riscos por si mesmas. A realização de estoques permite que as pessoas tenham um sensação de controle sobre a incerteza: “mesmo se faltar para os outros, estou garantido”, o que reduz a ansiedade antecipatória ligada à possibilidade da escassez.
Emanuelle: Acho que demonstram pânico e uma conduta para evitar sofrimento - o que, sem dúvida, prejudica a todos.
Lima: Esse tipo de comportamento pode ser explicado por medo e pânico. É uma situação complicada porque não temos treino com falta e escassez, inclusive internas. Do contato interno da pessoa com ela própria. As pessoas ficam à mercê de uma tempestade de emoções, e o resultado pode ser certas atitudes e ações de medo e pânico.
Maria: Mostra que estamos c. de medo e que precisamos de nos defender de toda essa m.. Como sabemos, o papel higiênico revela nossa relação com esse objeto tão primário - um dos primeiros com o qual nos relacionamos na vida, o cocô. Ampliando: temos medo do outro, temos medo do que nós mesmos produzimos, temos culpa do que nós possamos vir a fazer e, sobretudo, não fazer.
Valor: Quais são as pequenas coisas que nos permitirão sobreviver e atravessar esta crise?
Bressan: A rotina e a manutenção do contato interpessoal são de fundamental importância, pois ajudam a ter a sensação de que o tempo está passando e que estamos caminhando em busca de uma resolução do problema. É importante compartilhar com outras pessoas as agruras da quarentena. Está demonstrado que quando você ouve as dores do outro, isso ajuda para que você não se sinta tão sozinho no sofrimento, o que permite a superação dos desafios com mais facilidade.
Emanuelle: Situações-limite como esta nos põem em contato com a nossa finitude e podem nos despertar para um panorama mais amplo, ou seja, para o valor das relações, da saúde e da vida em comunidade. Pequenos gestos como ajudar um vizinho idoso que não pode ir ao supermercado, parceiros dividirem as tarefas domésticas ou famílias voltarem a fazer refeições em conjunto podem trazer recompensa emocional e o regozijo que só o amor e a amizade podem proporcionar.
Lima: O contato de cada um consigo mesmo, o dar-se conhecimento de si próprio. Se o que chamo de contato significar convivência interna com a dor mental, inerente a cada um de nós. Porque a situação mais melancólica está sempre presente, mesmo nos momentos de maior alegria.
Maria: As pequenas coisas deixarei para cada um inventar. A grande coisa é: permita-se viver isso. Não é todo dia que a seta do trágico penetra na história da humanidade com tal velocidade e potência.
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