John Malkovich interpreta um papa fragilizado e sedutor em “The New Pope”, que toca em temas delicados como pedofilia e corrupção, escreve Elaine Guerini no Valor, de Veneza. Resenha publicada na quinta, 9/4, vale a leitura!
John Malkovich se considera um “homem espiritual, mas não religioso”; com mais de cem trabalhos na carreira, ele diz que não pensa em desacelerar — Foto: Vincent West/Reuters
Assim que John Malkovich ouve o elogio do diretor italiano Paolo Sorrentino, chamando-o de “o papa dos atores”, o americano de ascendência croata rebate: “Estou mais para anticristo”. Mesmo sendo brincadeira, Malkovich mantém o ar sério, de quem acredita mesmo no que diz. É assim que o ator de 66 anos ajuda a alimentar a sua aura, tornando-se tão convincente na interpretação de tipos estranhos, perturbados e perigosos no cinema ou em séries de TV.
Nos últimos tempos, Malkovich está mais inclinado a aceitar os convites para séries, porque elas apostam no conceito de narrativa longa, mais propícia para se aprofundar no desenvolvimento dos personagens. “O formato permite várias subtramas, que se ajudam, se completam e enriquecem a trama principal”, diz o ator, escolhido por Sorrentino para viver um pontífice em luta com demônios internos na série “The New Pope”.
Ator também está em “Space Force”, da Netflix, no papel de um cientista arrogante que tentará impedir uma guerra especial
Lançada no último Festival de Veneza, antes da pandemia do novo coronavírus na Itália, a série é a continuação de “The Young Pope”, realizada por Sorrentino para o canal Fox em 2016. Recorrendo ao humor que marcou a série anterior, protagonizada pelo papa jovem, atraente e narcisista interpretado por Jude Law, “The New Pope” chega à Fox Premium do Brasil no dia 17, prometendo mais provocação na sua busca por desmitificar o Vaticano.
Aqui a sátira cai inicialmente sobre os bastidores de uma sucessão papal, quando os cardeais procuram um novo candidato - de preferência, alguém capaz de ser manipulado. O que o Vaticano não esperava era ter dois pontífices simultâneos, assim que Pio XIII (Law) desperta milagrosamente de um coma, depois que o cardeal Sir John Brannox (Malkovich) já foi eleito e rebatizado de João Paulo III.
“Do ponto de vista do ator, vivemos a era de ouro das séries e minisséries”, afirma Malkovich, visto também em “The ABC Murders” (2018) e “Billions” (2018-2019). “O material que o cinema não conseguia absorver, por estar limitado à duração de duas horas, agora é explorado nas séries”, diz o ator. “Há a possibilidade de expandir a narrativa, fugindo da estrutura tradicional do cinema de seguir de perto um ou, no máximo, dois personagens. Até os papéis secundários ganham mais espaço.”
Sir John Brannox/João Paulo III tem a chance de revelar seus segredos aos poucos em “The New Pope”. O aristocrata inglês é escolhido como papa pelo estudo teológico que fez, “O Caminho do Meio”, um pedido de moderação na reforma da Igreja Católica. Por trás da aparente sensatez, no entanto, há um homem fragilizado pelos pais, que o culpavam pela morte de seu irmão gêmeo, Adam, na adolescência.
“Parte de você deve morrer quando isso acontece com o seu irmão gêmeo. Isso possivelmente causa uma idealização da morte, o que deixa o meu personagem se sentindo uma fraude como papa”, diz.
Tudo isso vem à tona quando o pontífice precisa guiar os fiéis em um momento de ameaças terroristas, algo que Malkovich faz muito bem, por ser um especialista em representar situação de mal-estar sem perder o requinte. Descrito por outros personagens como um “homem feito de porcelana”, João Paulo III também mantém o ar sedutor que Malkovich muitas vezes confere aos tipos que interpreta.
A chefe de marketing do Vaticano, Sofia (vivida por Cécile de France), chega a dizer que o jeito envolvente do novo papa é parecido com o do ator John Malkovich, um de seus favoritos. Ao ouvir o comentário, o religioso desdenha: “Ele não me agrada tanto”.
Ao longo dos nove episódios da série, “The New Pope” aborda temas delicados para a igreja, como corrupção no Vaticano, casamento gay e abuso de menores por padres. Na cena em que os cardeais pensam nas características desejadas em um novo papa, um deles pede que o pontífice perdoe os pedófilos, para assim aliviar a sua culpa.
“O limite na criação deve ser apenas a imaginação do artista, independentemente de suposições sobre o que pode ser considerado inadequado”, diz Malkovich, um “homem espiritual, mas não religioso”, como ele mesmo diz. “Em tudo o que fiz até hoje, nunca tive o desejo deliberado de ofender ninguém. Por outro lado, como está cada vez mais difícil prever o que poderia incomodar as pessoas, tento não me preocupar com isso. Sobretudo nos tempos atuais, em que as pessoas se ofendem com tudo.”
O ator indicado duas vezes ao Oscar de melhor coadjuvante, por “Um Lugar no Coração” (1984) e “Na Linha de Fogo” (1993), integra o elenco de mais uma série de comédia. “Space Force”, da Netflix, com previsão de estreia ainda neste ano, faz uma sátira da proposta apresentada pelo presidente americano Donald Trump, em junho de 2018, de estabelecer uma força militar com operações no espaço. Na série criada pelo time de “The Office” (2005-2013), Greg Daniels e Steve Carell, Malkovich vai interpretar o dr. Adrian Mallory, um cientista arrogante que tentará impedir uma guerra especial.
Esse será o 120º trabalho na carreira do ator, somando filmes, telefilmes e séries. “Não penso em desacelerar. Nunca me esqueço da postura de Marcello Mastroianni [1924-1996]. Quando rodamos juntos, ele adorava chegar ao trabalho todas as manhãs”, diz Malkovich, referindo-se às filmagens de “Além das Nuvens” (1995), um drama de episódios assinado por Michelangelo Antonioni (1912-2007) e Wim Wenders. “Como boa parte dos italianos, Marcello tinha essa afirmação da vida em tudo o que fazia. Ele me fez ver a beleza de viver para as artes dramáticas.”
Com uma trajetória de mais de quatro décadas, Malkovich costuma ser lembrado pela comédia que leva o seu nome, “Quero Ser John Malkovich” - o 20º aniversário do filme foi comemorado no ano passado. “Assim que li o roteiro, mesmo reconhecendo que o material era hilário, disse ‘não’. Na época, me interessei apenas por dirigir o filme, caso eles topassem reescrevê-lo sobre outra pessoa, mudando o título, naturalmente”, diz o ator.
Mas o roteirista Charlie Kaufman não concordou, insistindo que Malkovich aceitasse ser o ator, que tem a cabeça visitada por curiosos na história. O impasse fez o projeto ser engavetado. Pelo menos até Malkovich receber um telefonema de Francis Ford Coppola, pedindo que o ator se encontrasse, em Paris, com Spike Jonze, o diretor escolhido para o filme. Embora Coppola não estivesse envolvido na produção, ele advogava pelo genro Jonze, o marido de Sofia Coppola na época.
“No encontro com Spike, aceitei fazer o filme. Disse ‘sim’ porque ele acatou a minha sugestão de trazer Charlie Sheen para viver o meu melhor amigo”, afirma o ator, corrigindo-se logo em seguida. “Não foi isso. Acabei cedendo por tanta pressão. Como o projeto circulou por anos em Los Angeles, todo mundo já o conhecia. E eu já não aguentava mais ouvir a pergunta: ‘Quando você vai finalmente fazer o filme?’”, recorda Malkovich, rindo.
John Malkovich se considera um “homem espiritual, mas não religioso”; com mais de cem trabalhos na carreira, ele diz que não pensa em desacelerar — Foto: Vincent West/Reuters
Assim que John Malkovich ouve o elogio do diretor italiano Paolo Sorrentino, chamando-o de “o papa dos atores”, o americano de ascendência croata rebate: “Estou mais para anticristo”. Mesmo sendo brincadeira, Malkovich mantém o ar sério, de quem acredita mesmo no que diz. É assim que o ator de 66 anos ajuda a alimentar a sua aura, tornando-se tão convincente na interpretação de tipos estranhos, perturbados e perigosos no cinema ou em séries de TV.
Nos últimos tempos, Malkovich está mais inclinado a aceitar os convites para séries, porque elas apostam no conceito de narrativa longa, mais propícia para se aprofundar no desenvolvimento dos personagens. “O formato permite várias subtramas, que se ajudam, se completam e enriquecem a trama principal”, diz o ator, escolhido por Sorrentino para viver um pontífice em luta com demônios internos na série “The New Pope”.
Ator também está em “Space Force”, da Netflix, no papel de um cientista arrogante que tentará impedir uma guerra especial
Lançada no último Festival de Veneza, antes da pandemia do novo coronavírus na Itália, a série é a continuação de “The Young Pope”, realizada por Sorrentino para o canal Fox em 2016. Recorrendo ao humor que marcou a série anterior, protagonizada pelo papa jovem, atraente e narcisista interpretado por Jude Law, “The New Pope” chega à Fox Premium do Brasil no dia 17, prometendo mais provocação na sua busca por desmitificar o Vaticano.
Aqui a sátira cai inicialmente sobre os bastidores de uma sucessão papal, quando os cardeais procuram um novo candidato - de preferência, alguém capaz de ser manipulado. O que o Vaticano não esperava era ter dois pontífices simultâneos, assim que Pio XIII (Law) desperta milagrosamente de um coma, depois que o cardeal Sir John Brannox (Malkovich) já foi eleito e rebatizado de João Paulo III.
“Do ponto de vista do ator, vivemos a era de ouro das séries e minisséries”, afirma Malkovich, visto também em “The ABC Murders” (2018) e “Billions” (2018-2019). “O material que o cinema não conseguia absorver, por estar limitado à duração de duas horas, agora é explorado nas séries”, diz o ator. “Há a possibilidade de expandir a narrativa, fugindo da estrutura tradicional do cinema de seguir de perto um ou, no máximo, dois personagens. Até os papéis secundários ganham mais espaço.”
Sir John Brannox/João Paulo III tem a chance de revelar seus segredos aos poucos em “The New Pope”. O aristocrata inglês é escolhido como papa pelo estudo teológico que fez, “O Caminho do Meio”, um pedido de moderação na reforma da Igreja Católica. Por trás da aparente sensatez, no entanto, há um homem fragilizado pelos pais, que o culpavam pela morte de seu irmão gêmeo, Adam, na adolescência.
“Parte de você deve morrer quando isso acontece com o seu irmão gêmeo. Isso possivelmente causa uma idealização da morte, o que deixa o meu personagem se sentindo uma fraude como papa”, diz.
Tudo isso vem à tona quando o pontífice precisa guiar os fiéis em um momento de ameaças terroristas, algo que Malkovich faz muito bem, por ser um especialista em representar situação de mal-estar sem perder o requinte. Descrito por outros personagens como um “homem feito de porcelana”, João Paulo III também mantém o ar sedutor que Malkovich muitas vezes confere aos tipos que interpreta.
A chefe de marketing do Vaticano, Sofia (vivida por Cécile de France), chega a dizer que o jeito envolvente do novo papa é parecido com o do ator John Malkovich, um de seus favoritos. Ao ouvir o comentário, o religioso desdenha: “Ele não me agrada tanto”.
Ao longo dos nove episódios da série, “The New Pope” aborda temas delicados para a igreja, como corrupção no Vaticano, casamento gay e abuso de menores por padres. Na cena em que os cardeais pensam nas características desejadas em um novo papa, um deles pede que o pontífice perdoe os pedófilos, para assim aliviar a sua culpa.
“O limite na criação deve ser apenas a imaginação do artista, independentemente de suposições sobre o que pode ser considerado inadequado”, diz Malkovich, um “homem espiritual, mas não religioso”, como ele mesmo diz. “Em tudo o que fiz até hoje, nunca tive o desejo deliberado de ofender ninguém. Por outro lado, como está cada vez mais difícil prever o que poderia incomodar as pessoas, tento não me preocupar com isso. Sobretudo nos tempos atuais, em que as pessoas se ofendem com tudo.”
O ator indicado duas vezes ao Oscar de melhor coadjuvante, por “Um Lugar no Coração” (1984) e “Na Linha de Fogo” (1993), integra o elenco de mais uma série de comédia. “Space Force”, da Netflix, com previsão de estreia ainda neste ano, faz uma sátira da proposta apresentada pelo presidente americano Donald Trump, em junho de 2018, de estabelecer uma força militar com operações no espaço. Na série criada pelo time de “The Office” (2005-2013), Greg Daniels e Steve Carell, Malkovich vai interpretar o dr. Adrian Mallory, um cientista arrogante que tentará impedir uma guerra especial.
Esse será o 120º trabalho na carreira do ator, somando filmes, telefilmes e séries. “Não penso em desacelerar. Nunca me esqueço da postura de Marcello Mastroianni [1924-1996]. Quando rodamos juntos, ele adorava chegar ao trabalho todas as manhãs”, diz Malkovich, referindo-se às filmagens de “Além das Nuvens” (1995), um drama de episódios assinado por Michelangelo Antonioni (1912-2007) e Wim Wenders. “Como boa parte dos italianos, Marcello tinha essa afirmação da vida em tudo o que fazia. Ele me fez ver a beleza de viver para as artes dramáticas.”
Com uma trajetória de mais de quatro décadas, Malkovich costuma ser lembrado pela comédia que leva o seu nome, “Quero Ser John Malkovich” - o 20º aniversário do filme foi comemorado no ano passado. “Assim que li o roteiro, mesmo reconhecendo que o material era hilário, disse ‘não’. Na época, me interessei apenas por dirigir o filme, caso eles topassem reescrevê-lo sobre outra pessoa, mudando o título, naturalmente”, diz o ator.
Mas o roteirista Charlie Kaufman não concordou, insistindo que Malkovich aceitasse ser o ator, que tem a cabeça visitada por curiosos na história. O impasse fez o projeto ser engavetado. Pelo menos até Malkovich receber um telefonema de Francis Ford Coppola, pedindo que o ator se encontrasse, em Paris, com Spike Jonze, o diretor escolhido para o filme. Embora Coppola não estivesse envolvido na produção, ele advogava pelo genro Jonze, o marido de Sofia Coppola na época.
“No encontro com Spike, aceitei fazer o filme. Disse ‘sim’ porque ele acatou a minha sugestão de trazer Charlie Sheen para viver o meu melhor amigo”, afirma o ator, corrigindo-se logo em seguida. “Não foi isso. Acabei cedendo por tanta pressão. Como o projeto circulou por anos em Los Angeles, todo mundo já o conhecia. E eu já não aguentava mais ouvir a pergunta: ‘Quando você vai finalmente fazer o filme?’”, recorda Malkovich, rindo.
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