Boa análise política do colunista da Folha de S. Paulo, Reinaldo Azevedo, sobre o atual momento do país, publicado na sexta, 3/4. Escreve o jornalista: nesta quinta, o presidente Jair Bolsonaro divulgou e pediu que se passasse adiante um vídeo em que uma senhora cobra que os militares saiam às ruas para pôr fim à quarentena. O público-alvo da exortação golpista —a de Bolsonaro— não são os brasileiros, mas os quartéis. Prega no vazio. Adequadas às suas particularidades, as Forças Armadas também aplicam medidas de isolamento social. Continua, na íntegra, abaixo:
O presidente comete mais um crime de responsabilidade. Até a minha coluna passada, contavam-se 10. Agora, 12. Responderá por eles no tempo possível. À maneira cabocla, o coronavírus revelou a existência de um ‘deep state’ no Brasil. Pela Saúde, fala o ministro Luiz Henrique Mandetta. Pelo ordenamento geral, o general Braga Netto, da Casa Civil.
Governam o país. À margem, vitupera Bolsonaro, estimulando os perdigotos da desordem e da tragédia, prenhes de vírus. Governa o Bolsolavistão. Ademais, a Constituição reconhece a existência de um vice-presidente também eleito: general Hamilton Mourão. A Carta e a lei 1.079 trazem o regramento necessário para que a República sobreviva a vontades que a aniquilariam.
Entendo. Não é mesmo fácil a um presidente ter de vir a público para anunciar que, em alguns meses, de 100 mil a 240 mil cidadãos podem morrer vítimas da Covid-19, obrigando-se ainda a alertar que, sem medidas de distanciamento social, a cifra aponta para catastróficos 2,2 milhões.
Foi o que fez Donald Trump na terça. Pela primeira vez, o histrião pareceu um estadista. Economizou nos esgares. Terá de acertar contas com o povo americano. Até havia pouco, nos seus discursos, a doença era só uma gripe provocada pelo ‘vírus chinês’, e os riscos que corriam os EUA não passavam de um fantasma brandido por democratas para prejudicar sua campanha à reeleição.
Sua plateia se divertia a valer, com risos brancos, robustos e corados. Muitos estão agora contaminados, internados ou mortos. Não é justiça divina. Deus tem outros afazeres. É a educação pelo vírus. Até Trump é capaz de aprender.
O presidente dos EUA e a maioria dos líderes mundiais deixaram-se convencer pelo estudo liderado pelo Imperial College de Londres, que estimou o impacto da doença em 202 países, incluindo o Brasil. Por aqui, anteviu-se a morte de 1,15 milhão caso se adotasse o padrão milanês de combate ao vírus, como prega Bolsonaro.
As advertências do Imperial College foram referendadas por modelos matemáticos de especialistas dos EUA, da Europa e da Índia, entre outros países. Bolsonaro, em quem a revista inglesa The Economist —liberal, de direita!— tascou a pecha globalmente inapagável de ‘BolsoNero’, dispõe de suas próprias certezas.
À ciência, opõe as convicções de um fatalista tragicômico. Duas delas: “Todo mundo morre um dia” e “brasileiro tem de ser estudado porque pula no esgoto e não acontece nada”. A qualidade de um debatedor ou de um formulador de políticas públicas também se mede pelos argumentos irrespondíveis que é capaz de esgrimir.
Nota em defesa de Nero: nem tocou fogo em Roma nem foi dedilhar sua lira enquanto a cidade ardia, como no horrível filme ‘Quo Vadis’, baseado em romance ainda pior.
Já o nosso imperador lembra, às vezes, de fato, o Nero tresloucado que Suetônio, precursor dos blogueiros da difamação, inventou em ‘Os Doze Césares’, um clássico.
Bolsonaro não está só. O ditador Alexander Lukashenko, que governa Belarus desde 1994, defende que se combata o vírus com sauna e vodca. Gurbanguly Berdimuhamedow —não tente decorar—, que tiraniza o Turcomenistão desde 2007, proibiu a imprensa e os indivíduos de escrever ou pronunciar “coronavírus”. Jornalistas devem ainda evitar o vocábulo “problema”. Uma imprensa sem viés ideológico.
“Eu quero que cada americano esteja preparado para dias difíceis. Nós vamos passar por duas semanas muito brutais”, afirmou Trump ao reiterar a necessidade das medidas de isolamento social. Bolsonaro prefere passar adiante um vídeo que convida os quartéis a dar um golpe no Bolsolavistão.
Não vai ter golpe, vai ter lei. Melhor não morrer nem de vodca nem de vírus.
O presidente comete mais um crime de responsabilidade. Até a minha coluna passada, contavam-se 10. Agora, 12. Responderá por eles no tempo possível. À maneira cabocla, o coronavírus revelou a existência de um ‘deep state’ no Brasil. Pela Saúde, fala o ministro Luiz Henrique Mandetta. Pelo ordenamento geral, o general Braga Netto, da Casa Civil.
Governam o país. À margem, vitupera Bolsonaro, estimulando os perdigotos da desordem e da tragédia, prenhes de vírus. Governa o Bolsolavistão. Ademais, a Constituição reconhece a existência de um vice-presidente também eleito: general Hamilton Mourão. A Carta e a lei 1.079 trazem o regramento necessário para que a República sobreviva a vontades que a aniquilariam.
Entendo. Não é mesmo fácil a um presidente ter de vir a público para anunciar que, em alguns meses, de 100 mil a 240 mil cidadãos podem morrer vítimas da Covid-19, obrigando-se ainda a alertar que, sem medidas de distanciamento social, a cifra aponta para catastróficos 2,2 milhões.
Foi o que fez Donald Trump na terça. Pela primeira vez, o histrião pareceu um estadista. Economizou nos esgares. Terá de acertar contas com o povo americano. Até havia pouco, nos seus discursos, a doença era só uma gripe provocada pelo ‘vírus chinês’, e os riscos que corriam os EUA não passavam de um fantasma brandido por democratas para prejudicar sua campanha à reeleição.
Sua plateia se divertia a valer, com risos brancos, robustos e corados. Muitos estão agora contaminados, internados ou mortos. Não é justiça divina. Deus tem outros afazeres. É a educação pelo vírus. Até Trump é capaz de aprender.
O presidente dos EUA e a maioria dos líderes mundiais deixaram-se convencer pelo estudo liderado pelo Imperial College de Londres, que estimou o impacto da doença em 202 países, incluindo o Brasil. Por aqui, anteviu-se a morte de 1,15 milhão caso se adotasse o padrão milanês de combate ao vírus, como prega Bolsonaro.
As advertências do Imperial College foram referendadas por modelos matemáticos de especialistas dos EUA, da Europa e da Índia, entre outros países. Bolsonaro, em quem a revista inglesa The Economist —liberal, de direita!— tascou a pecha globalmente inapagável de ‘BolsoNero’, dispõe de suas próprias certezas.
À ciência, opõe as convicções de um fatalista tragicômico. Duas delas: “Todo mundo morre um dia” e “brasileiro tem de ser estudado porque pula no esgoto e não acontece nada”. A qualidade de um debatedor ou de um formulador de políticas públicas também se mede pelos argumentos irrespondíveis que é capaz de esgrimir.
Nota em defesa de Nero: nem tocou fogo em Roma nem foi dedilhar sua lira enquanto a cidade ardia, como no horrível filme ‘Quo Vadis’, baseado em romance ainda pior.
Já o nosso imperador lembra, às vezes, de fato, o Nero tresloucado que Suetônio, precursor dos blogueiros da difamação, inventou em ‘Os Doze Césares’, um clássico.
Bolsonaro não está só. O ditador Alexander Lukashenko, que governa Belarus desde 1994, defende que se combata o vírus com sauna e vodca. Gurbanguly Berdimuhamedow —não tente decorar—, que tiraniza o Turcomenistão desde 2007, proibiu a imprensa e os indivíduos de escrever ou pronunciar “coronavírus”. Jornalistas devem ainda evitar o vocábulo “problema”. Uma imprensa sem viés ideológico.
“Eu quero que cada americano esteja preparado para dias difíceis. Nós vamos passar por duas semanas muito brutais”, afirmou Trump ao reiterar a necessidade das medidas de isolamento social. Bolsonaro prefere passar adiante um vídeo que convida os quartéis a dar um golpe no Bolsolavistão.
Não vai ter golpe, vai ter lei. Melhor não morrer nem de vodca nem de vírus.
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