Pular para o conteúdo principal

Valor: para especialista em desigualdade, covid-19 pode causar colapso social

Diego Viana escreve no Valor sobre os efeitos sociais da crise provocada pela pandemia do coronavírus, outro bom artigo que vale a leitura. Abaixo, na íntegra.

Este é um ano de máquinas paradas e trabalhadores isolados em casa. Como a economia vai se recuperar ainda é incerto, mas uma constatação sobre o século XXI segue intocada. O capitalismo triunfou: é praticamente o único sistema econômico do mundo e está espalhado por todo o planeta.
Em “Capitalism, Alone” (Capitalismo, Sozinho), lançado nos Estados Unidos, o economista sérvio Branko Milanovic, de 66 anos, conta a história desse triunfo e mostra que o domínio completo do modo capitalista de produção também é uma faca de dois gumes. O livro é uma obra de escopo mais amplo do que os anteriores de Milanovic. Professor da City University de Nova York (Cuny), Milanovic passou 20 anos como economista do Departamento de Pesquisa do Banco Mundial.
No período, tornou-se conhecido como um dos maiores especialistas em desigualdade no mundo e criador do “gráfico do elefante”, que representa os ganhos relativos de diferentes estratos de renda globalmente desde a queda do Muro de Berlim, em 1989. O gráfico tem uma forma que sugere a silhueta de um elefante: os maiores vencedores são o 1% mais rico e as classes emergentes do mundo em desenvolvimento, ou “classe média global”, nos termos do economista. Os maiores perdedores são a parcela extremamente pobre da população e a tradicional classe média dos países desenvolvidos, Europa em particular.
O autor explica a passagem do trabalho sobre desigualdade para um tratado histórico e de economia política pelo lado pessoal. “Quando se trabalha muito com dados, como sempre trabalhei, chega um momento em que queremos dar sentido ao que estamos dizendo”, afirma Milanovic ao Valor. Mas o vínculo também é ancorado no próprio trabalho do autor. Seguindo a pesquisa em ciência política, ele argumenta que a desigualdade econômica leva à instabilidade política.
Um segundo elemento se soma ao vínculo entre desigualdade e política. A mudança na estrutura da desigualdade global está associada ao outro grande fenômeno deste início de século: a ascensão econômica da Ásia. Muitos dos perdedores do Ocidente se ressentem da mudança na estrutura produtiva e social no mundo, o que pode explicar, em parte, o desejo de um retorno ao nacionalismo. Mas o crescimento asiático também representa o retorno a uma proporção que existiu até o século XVIII: só com a emergência dos impérios industriais e coloniais do Ocidente essa parte do mundo se tornou hegemônica em termos produtivos e econômicos.
Por outro lado, Milanovic chama atenção para uma diferença fundamental. Hoje, o planeta está conectado de um modo que era impensável há 300 anos. É isto que faz com que, pela primeira vez, haja um modo de produção praticamente ubíquo no mundo. E esse modo é o capitalismo. Houve algo como um capitalismo no Império Romano.
Na Itália, a partir do século XIII, havia práticas bancárias parecidas com o capitalismo que conhecemos. As feiras de Borgonha e a Liga Hanseática ensejaram o uso do termo “capitalista” para se referir a alguém que emprestava dinheiro com a expectativa do ganho. Depois, desde que as revoluções financeira e industrial geraram um sistema econômico capitalista dos pés à cabeça, sempre persistiram outros modos de produção ao redor do mundo, dos resquícios feudais ao grande sistema alternativo do século XX: o comunismo.
Mas os resíduos feudais foram varridos e o mundo comunista entrou em colapso. Sobrou só o capitalismo, que se encontra, portanto, “sozinho”. E o que isso significa? “O maior sucesso que o capitalismo obteve foi alinhar os objetivos sistêmicos e individuais”, explica Milanovic. “Hoje, todos falam a mesma língua dos ganhos monetários e seguem as mesmas regras do lucro e prejuízo”, completa. Isso implica que, mundo afora, os comportamentos, princípios e cálculos se tornaram semelhantes.
A conexão mundial que expressa o triunfo do capitalismo também introduz fragilidades. Milanovic tem alertado para o risco de colapso social resultando da pandemia do novo coronavírus. Não se trata apenas da paralisia econômica, mas também da renúncia aos laços de conexão global. Quanto mais tempo durarem a pandemia e a crise econômica subsequente, maior é a probabilidade de um retorno a economias autônomas. O economista também prevê um aprofundamento das desigualdades no interior dos países.
Esses perigos vêm se somar a uma contradição interna ao próprio sistema. O capitalismo vencedor se divide em dois tipos principais: o “liberal-meritocrático” e o “político”. A tipologia não é empírica, mas conceitual. As noções de “liberalismo” e “meritocracia” vêm da obra do filósofo americano John Rawls, autor de “Uma Teoria da Justiça” (1971).
“Meritocracia significa que quaisquer posição e nível de renda estão abertos a todos. Não há impedimentos legais para que alguém assuma um posto social”, diz. “Já o liberalismo significa que há só dois tipos de intervenção: uma para reduzir vantagens de herança, por meio de taxação, e outra para reduzir vantagens de família, por meio da educação pública e gratuita.”
O “capitalismo político” é um termo que remete ao sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) e se refere ao uso do sistema político para ganhos econômicos. Em sua versão atual, porém, tornou-se um mecanismo poderoso, pelo qual burocracias especializadas estimulam o capitalismo privado. E qual foi o catalisador dessa transformação no papel do Estado em relação ao sistema de mercado?
“Diferentemente do que imaginavam os marxistas, o comunismo foi o grande promotor do capitalismo nos países que tinham sido colônias”, afirma o economista sérvio. Assim, na sua ânsia de fazer avançar as economias até o estágio mais moderno, os regimes comunistas destruíram as ideologias e relações de poder ultrapassadas nesses países, deixando o caminho aberto para as lógicas do lucro e do enriquecimento.
Ascensão da Ásia e capitalismo globalizado são dois movimentos conectados que constituem a face da economia mundial contemporânea. Mas é justamente essa consolidação que põe em risco o próprio sistema. Sem rivais, uma tendência deletéria que aproxima os dois tipos de capitalismo, embora por direções opostas, pode seguir seu curso, desimpedida: a fusão entre elites políticas e econômicas.
“O capitalismo liberal está se tornando plutocrático e se parece cada vez mais com o capitalismo político, porque as elites política e econômica se tornam uma mesma elite”, afirma o economista. No capitalismo político, o pertencimento aos grupos dominantes do Estado, como o Partido Comunista Chinês, garante o acesso ao poder econômico.
“No capitalismo liberal, ocorre o contrário: os ricos compram o processo político e, com isso, se tornam um tipo de poder político. No fim, o resultado é o mesmo.” Quando a fusão ocorre, Milanovic se refere a “elites autossustentadas”. “Tento examinar as forças sistêmicas que levam à criação de elites assim.”
Ao identificar o problema, o livro retoma o tema em que Milanovic é especializado: a desigualdade. No plano intranacional, ela tem sido reconhecida como responsável pelo avanço do populismo. Na economia, a desigualdade também tem sido vista como uma fonte de instabilidade e estagnação, já que limita a capacidade de consumo e o incentivo a empreender.
Por outro lado, os efeitos da desigualdade global, isto é, entre países e sociedades distantes, não são tão claramente visíveis. Um desses efeitos foi identificado precocemente por Adam Smith em 1776, ao escrever, em “A Riqueza das Nações”, que a superioridade econômica e militar dos europeus no período colonial era tão grande, que eles puderam cometer atrocidades impunemente. Só a recuperação das antigas potências europeias geraria um novo equilíbrio, baseado no respeito mútuo e no medo. “Smith foi incrivelmente presciente nessa passagem”, comenta o economista.
Milanovic cita outros males da desigualdade global. O mais imediatamente visível é a tensão em torno da imigração nos países ricos. Assustadas com o que percebem como uma invasão, as populações desses países acabam nos braços de lideranças demagógicas. “Mas o que leva a esse movimento imigratório é a desigualdade global, já que as mesmas qualificações levam a remunerações muito díspares em diferentes partes do mundo”, afirma.
O segundo grande mal, diz Milanovic, é discutido mais por filósofos políticos do que por economistas: trata-se da desigualdade de oportunidade. “Hoje, ninguém pode, em princípio, ser favorável à desigualdade de oportunidades dentro de uma sociedade. Está consolidada a ideia de que é um absurdo, como é o caso no Brasil, filhos de uma família rica terem mais chances de sucesso do que os pobres; ou que brancos tenham mais chances que negros; ou homens, que mulheres.”
A consolidação da desigualdade está ligada à fusão entre elites políticas e econômicas, que torna o capitalismo, ao fim e ao cabo, mais um sistema aristocrático. Para freá-la, Milanovic sugere três medidas. Todas estão voltadas para garantir a igualdade de dotações (endowment), em vez da igualdade de resultados. “O argumento visa mudar o foco do pensamento sobre redistribuição: em vez de distribuir as posses correntes, devemos tornar os pontos de partida bem menos desiguais do que são hoje”, diz.
Há dois tipos de dotação, explica o economista, e se referem aos principais fatores de produção: capital e trabalho. A dotação de capital é redistribuída por meio da taxação das heranças, e o trabalho, pelas oportunidades de formação. Assim, a primeira proposta é uma reforma tributária que taxe as camadas mais ricas da população. A segunda proposta é o investimento em escolas públicas, para evitar que as classes favorecidas reproduzam seus privilégios com escolas de elite, enquanto o resto da população fica sujeita ao ensino público sucateado.
A terceira proposta não passa diretamente pelo problema da desigualdade, mas pela condição concreta que a leva a ser incentivada ou inibida: a política. Milanovic propõe o financiamento exclusivamente público de campanhas. “Essa é a única maneira de garantir que os ricos não vão conseguir controlar o processo político e formar uma elite duradoura”, diz.
Todas essas soluções têm uma limitação em comum: só podem ser implementadas no plano nacional, ou seja, dependem da soberania de um governo. Mas os maiores desafios do mundo, hoje, são globais. O caso mais citado é o de multinacionais que evitam os impostos dos países onde atuam ao registrar suas sedes, em paraísos fiscais. Essa é uma grande causa de perda de receita em países como os Estados Unidos.
“Tive que limitar minhas propostas ao plano nacional, porque não vejo, nas instituições multilaterais ou nas negociações entre Estados, a capacidade de garantir os acordos dentro de cada país. Seria necessária uma capacidade de coordenação muito maior”, diz o economista. “Há uma pressão crescente entre os países ricos para combater a evasão de impostos de multinacionais. Ainda é duvidoso que chegue a algum resultado, mas é algo que podemos acompanhar.”



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe