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O futuro chegou: uma leitura de Rubem Fonseca no país de Bolsonaro

Alejandro Chacoff escreve um belo texto sobre o escritor Rubem Fonseca, talvez o autor brasileiro mais importante que estava vivo no país até falecer na terça-feira, 14/4.  A resenha foi publicada no site da revista Piauí e vai abaixo, na íntegra.

Em “A coleira do cão” – conto da coletânea homônima de Rubem Fonseca, publicada em 1965 –, o policial carioca Washington se irrita com o bom-mocismo de seu chefe, o delegado. “A polícia está ficando mole”, Washington diz. “E o resultado é este que o senhor está vendo: o número de assaltos e furtos aumenta dia a dia. Eu fiz o curso de detetive da escola. Lá não tem um stand de tiro, mas em compensação ensinam psicologia e direito constitucional. He, he.” O narrador de “O inimigo”, um conto anterior, se irrita com a seriedade vagamente pomposa de um ex-amigo de infância, e brada: “Só porque você deu um golpe do baú com êxito, casou com uma loura, herdou Gobelin do sogro, assiste aula de história da filosofia, dada por um professor de titica qualquer, só por isso, seu cretino, você tá pensando que é alguma coisa. Bestalhão. Não sei onde estou que não te parto a cara.” Em “A força humana”, um halterofilista melancólico passa andando pela rua e vê um homem negro dançando. “Pensei: outro maluco, pois a cidade está cada vez mais cheia de maluco, de maluco e de viado.”
O sarcasmo raivoso e a insolência performática dessas falas têm a mesma textura de inúmeros posts espalhados pela internet. É raro que frases coloquiais de personagens inventados há tanto tempo envelheçam tão bem. O ato de ler ou reler Rubem Fonseca – sobretudo os contos do início de sua carreira, publicados nas décadas de 60 e 70 – gera uma estranha sensação de ingenuidade retrospectiva. O surpreendente, à luz desses contos, não é tanto o momento político atual, mas sim o fato de que esse momento tenha demorado tanto tempo para chegar. “Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo”, diz o Cobrador, um de seus personagens mais famosos. Difícil imaginar algo mais palpável e atual do que esse sentimento de afronta, essa sensação perene de que eles (o mundo, a classe política, o empregador, quem seja) nos devem, e muito.
É uma atitude belicosa, encampada por quase todos os narradores e personagens de Fonseca. O seu mundo ficcional é povoado por gente que quer contar a própria história, ao mesmo tempo que desconfia de quem está ouvindo, mantendo as piores expectativas sobre o interlocutor. “O senhor talvez pense que eu estou bêbado, mas não estou bêbado porra nenhuma.” Assim começa “Gazela”, um de seus primeiros contos, publicado na coletânea Os Prisioneiros, de 1963 – e esse é o tom que perpassa boa parte de sua obra. Ao lê-la, é razoável enxergar uma nova camada de sentido no famoso conselho literário atribuído a Cortázar – o de que no conto se vence por nocaute, e no romance, por pontos –, em que o fundamental está no caráter de enfrentamento que a relação entre autor e leitor pode assumir. Os contos de Fonseca, com os seus marombados, policiais e traficantes, tomam o conflito tanto como premissa temática como formal. Há, nos seus narradores, um misto de pressa e desdém, como se suspeitassem do grau de atenção que o leitor dedica à história. A desesperança dos personagens não diz respeito apenas às vidas precárias que levam, mas também à impossibilidade de serem sequer compreendidos. “Ninguém entende ninguém”, diz o narrador de “Gazela”, peremptório e sombrio. É como se, até na forma, os contos captassem algo do porvir, e se preparassem para o cada vez mais ubíquo leitor de má-fé – esse ser que escrutiniza o texto e procura o termo, a pequena inconsistência que derrubará o autor, e o enterrará de vez.
Há pouco mais de uma década, um casal de amigos próximos (ex-casal, a essa altura) sentou-se ao lado do já falecido escritor e jornalista Fausto Wolff num restaurante carioca. Enquanto comiam, tentavam entreouvir a conversa da mesa vizinha, pescando só algumas frases. “Guimarães é uma ilha! Clarice é uma ilha!”, Wolff teria dito a certa altura, enfático. A frase ficou na minha cabeça, porque poderia ter sido facilmente complementada com outros autores (“Raduan é uma ilha! Hilda é uma ilha!” etc.). Presumo que Wolff se referia a certo caráter insular dos ficcionistas brasileiros mais marcantes de sua época, à autossuficiência e peculiaridade daqueles mundos ficcionais. É claro que, sob certo ângulo, o objetivo de todo ficcionista é justamente esse: o de criar um nicho, um universo pessoal tão totalizante que movimentos literários e categorias geográficas se tornam fúteis para defini-lo. Mas, ainda assim, há algo conspícuo na insularidade dos grandes escritores brasileiros da segunda metade do século xx. Não houve nesse período de produção literária no país uma figura central para louvar ou matar (como Borges, na Argentina; Vargas Llosa, no Peru; García Márquez, na Colômbia; ou Octavio Paz, a piñata preferida de Roberto Bolaño e de seus amigos da cena literária mexicana). Tampouco houve uma clivagem que organizasse o campo literário em terrenos bem definidos de batalhas estilísticas.
Embora tenha se tornado, ao longo do tempo, um dos mais influentes escritores brasileiros, Fonseca surgiu, com seus primeiros contos, como uma ilha particularmente remota nesse arquipélago a que Wolff parecia aludir. Havia algo de militante na forma em que ele tentava se separar de seus pares. Em “Intestino grosso”, um conto famoso publicado em 1975, na coletânea Feliz Ano Novo, um alter ego do autor enfrenta uma espécie de entrevista imaginária. O repórter fictício pergunta: “Existe uma literatura latino-americana?” Ao que o escritor-personagem responde: “Não me faça rir. Não existe nem mesmo uma literatura brasileira, com semelhanças de estrutura, estilo, caracterização ou lá o que seja. Existem pessoas escrevendo na mesma língua, em português, o que já é muito e tudo. Eu nada tenho a ver com Guimarães Rosa, estou escrevendo sobre pessoas empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado.”
Esse isolamento literário se reflete também na condição de isolamento dos personagens. Até por causa dos ambientes urbanos populosos, com “pessoas empilhadas” umas nas outras, a interação entre elas se dá quase sempre na base da fricção, seja via contato sexual, violência verbal ou física (frequentemente essas formas de interação se entrecruzam). Há pouquíssimas instâncias de conexão emocional ou intelectual entre os personagens. Os cínicos se dão bem; os românticos acabam em algum momento pagando o preço de sua ingenuidade. É um mundo ficcional árido, brutal, quase antiartístico, no sentido de que a obra deriva o seu páthos da impossibilidade de transcendência. Um ônibus atropela uma vaca; alguns passageiros e a vaca morrem; um grupo de observadores no acostamento se aproxima e corta fora pedaços do animal para levar para casa e comer, deixando no fim só uma poça de sangue no asfalto (“Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência”, 1969). Um grupo de velhos amigos cariocas que sempre se reúne num bar para fazer apostas inventa um jogo novo, no qual o objetivo é acertar o número, a cor de pele e o gênero das próximas vítimas do Esquadrão da Morte (“O jogo do morto”, 1979).
Fonseca escreve eloquentemente sobre o amor, mas grande parte de sua eloquência vem da capacidade de evocar a fragilidade de conexões estabelecidas. Em “O grande e o pequeno” (1965), um primo mais velho, descendente de uma família decadente e nostálgica de imigrantes portugueses, descreve obliquamente ao primo menor a sua paixão por uma mulher negra, e o seu plano de fugir com ela para romper os grilhões familiares. Em “Gazela”, o narrador rememora uma viagem a São Paulo na juventude, com uma antiga namorada que nunca esqueceu (“Eu e ela gozávamos a nossa liberdade, pensando que era turismo o prazer que sentíamos”). São dois contos belíssimos, em que as histórias terminam de maneira melancólica. O primo mal escapa da família e já é atormentado pela dúvida (“Não vou me arrepender não, mas se me arrepender eles não vão saber de nada”). Quanto ao casal de namorados, já no avião de volta eles reconhecem, em silêncio mútuo, o término da relação. “Eu sentia que não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer”, admite o narrador, impotente, enquanto assiste o choro da companheira de viagem, lamentando e ao mesmo tempo reconhecendo o fim repentino de seu amor.
Não é apenas nos diálogos, no tom belicoso ou na temática da violência urbana que os contos de Rubem Fonseca mimetizam o presente. Há pontos de contato mais sutis entre a sua obra e o momento atual. Em muitos de seus escritos, por exemplo, a intelectualidade é satirizada, num eco do anti-intelectualismo agora em voga. Essas sátiras, porém, raramente funcionam, perdendo-se frequentemente em excessos caricaturais, o que talvez seja reflexo da relação ambivalente que Fonseca mantém com a própria erudição. Citações ao cânone aparecem sempre sob um véu cômico, na boca de personagens desprezíveis ou alter egos pomposos, como se o autor tivesse certo orgulho, mas também um pouquinho de repulsa pelo fato de ter lido tudo. As epígrafes de Fonseca, que incluem Lao Tsé, Pérsio, a Bíblia, Horácio (e isso só nas primeiras quatro coletâneas de contos), por serem tão grandiloquentes, acabam flertando com a ironia, e assim ressaltam ainda mais essa erudição ambígua – afinal, irônica ou não, uma epígrafe é uma epígrafe.
Mas há um aspecto menos neurótico nesse aparente ceticismo em relação a ideias civilizatórias. Um mundo ficcional que se calca tanto na brutalidade não pode mesmo ter uma relação muito confortável com a intelectualidade. Nos contos de Fonseca, a primazia do corpo é irrefutável. Ideias e abstrações aparecem apenas como desculpas mesquinhas para que o indivíduo satisfaça seus apetites – o de matar, o de transar. Sem grandes possibilidades de transcender a mundanidade material de suas vidas, os personagens encontram pequenos respiros em amores da juventude, ou às vezes em alguma lembrança da infância. Não é gratuito que os contos mais ternos – “Gazela”, “O grande e o pequeno”, “O inimigo” – se refiram a essas fases da vida, ou a lembranças que têm delas. Qualquer fuga da existência miserável e solitária do indivíduo é precária, incompleta; ainda assim, as únicas fugas possíveis são pelo corpo.
É um mundo repleto de pessoas que trabalham com o corpo – seja salvaguardando ou alterando o corpo dos outros, seja vendendo e fetichizando o próprio. Um mundo cheio de policiais, marombados, prostitutas, médicos e dentistas (estes dois últimos certamente os mais desprezíveis na cadeia alimentar fonsequiana). O lirismo do autor atinge a sua força máxima justamente na descrição desses corpos – não da sua beleza jovial, mas da sua decadência e finitude. Um homem que acabou de levar um tiro tem o branco em volta dos olhos de um tom “azulado leitoso, como uma jabuticaba por dentro”. Os seios de uma mulher são “murchos e chatos, os bicos passas gigantes que alguém tinha pisado”. No buraco feito por uma bala na cabeça de um homem veem-se “restos de miolos, lascas de ossos misturados com cabelos, coágulos de sangue escuro cheios de moscas”. O Cobrador diz que não vai pagar o dentista que o atendeu, e quando nota que o outro homem pensa em confrontá-lo, afirma: “Eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.” O diferencial aqui, o termo que separa o conto de qualquer outro conto policialesco, é “barriga grande cheia de merda” – uma expressão que remete o leitor à banalidade dos processos intestinais, e à finitude do próprio corpo.
Esse estado atávico, quase animalesco, não ocorre num vácuo histórico. “Pessoas empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado.” A frase evoca um curral, e ilumina um paradoxo perceptível na obra de Fonseca: a de que a urbanização desenfreada e impensada pode devolver o indivíduo a um estado mais primitivo, mais estúpido, até. Como se sabe, Fonseca foi um dos primeiros ficcionistas a notar os efeitos mais destrutivos da (muito particular e veloz) urbanização brasileira, numa época em que ela ainda era frequentemente celebrada. Os seus narradores demonstram certo desprezo pela forma sonambulesca (e ao mesmo tempo estranhamente enérgica) com que a sociedade caminha rumo a esse modo de vida urbano bárbaro. Sacoleiros na Zona Franca de Manaus dão à cidade um “ar materialista e corrupto” (“Encontro no Amazonas”, 1979); Mandrake resolve um caso esdrúxulo, ganha dinheiro e uma Mercedes, mas no fim lamenta ter perdido a oportunidade de transar e saciar os seus apetites corpóreos, que afinal é o que importa no mundo árido que habita (“Dia dos Namorados”, 1975).
Muitos dos personagens – sobretudo os de classe média e alta – parecem embebidos por um estupor urbano, e não conseguem olhar com a dureza necessária para a vida que levam, enquanto outros fazem de tudo para evitar um autoexame mais profundo. Em “O outro” (1975), um executivo começa a ser abordado todo dia por um pedinte, num cenário muito típico das urbes brasileiras, e sem conseguir achar formas de livrar-se dele, toma a decisão absurda e extrema de matá-lo. Em “Manhã de sol” (1969), uma mulher segura um ladrão que tenta roubá-la na rua, e depois, acompanhada pelos guardas, vai com ele até a delegacia. Quando chega lá para prestar queixa, o vê apanhando da polícia e se autoflagelando – batendo com a cabeça nas grades. Sem aguentar a cena, a mulher passa a pedir incessantemente para ir embora.
Fonseca é dos poucos escritores que, ao escrever sobre a desigualdade social brasileira (ela é pano de fundo de muitos dos conflitos), não a sentimentaliza. Isso ocorre em parte por questões de temperamento e estilo, mas também porque essas vidas de classe média e classe alta que ele descreve não são algo para se invejar. Os seus burgueses vivem enclausurados em prédios, paranoicos, levam vidas insossas e medíocres. Há momentos cômicos e tristemente familiares na descrição de algumas dessas vidas, como em “Passeio noturno: Parte I” (1975), quando o protagonista tem que tirar os carros “dos meninos” da garagem antes de sair com o seu: “Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado.” Limitações afetam tanto estes personagens como os outros. Na maior parte do tempo, porém, tocam as suas vidas sem percebê-lo. Confrontadas com a realidade, Fonseca parece sugerir, as pessoas preferem não olhar, do mesmo jeito que uma boa parte dos escritores de sua época preferia não examinar os aspectos mais aterrorizantes da caótica urbanização brasileira.
Por um lado, Fonseca é uma espécie de escritor-profeta que antecipou a linguagem do momento atual, o seu tom agressivo e perene sentimento de afronta, à maneira do Cobrador. Por outro, sua obra ilumina a frivolidade do discurso que acompanha esse momento. Vista com a dureza necessária, a realidade urbana descrita por Fonseca – que sintetiza em parte a realidade social e política atual – é pagã, cínica, um lugar onde só o corpo provê alguns alívios momentâneos; uma sociedade atomizada onde qualquer esperança de conexão emocional é frustrada ou punida. A sua linguagem brutal, seca e violenta deriva de um senso de desolação metafísica e moral. É preciso um esforço mental hercúleo – ou uma cegueira voluntária, similar à dos personagens que se fecham nos seus carros e prédios, fugindo de pedintes – para pular desse seminiilismo a um slogan que evoque Deus e pátria, e a esperança de uma união nacional. A fraudulência do momento político atual não está exatamente nas figuras em si (é preciso ser muito arrogante para não compreender o apelo de políticos linha-dura como Jair Bolsonaro ou Sérgio Moro); está nesse jogo duplo de usar uma linguagem violenta e apocalíptica, para depois tentar coligá-la a um senso de pertencimento que englobe a todos. A conclusão lógica dos atos do Cobrador, após as tentativas de saciar a raiva acumulada ao longo de sua vida miserável, não é juntar-se a uma causa nacional; é construir uma bomba para tentar explodir tudo.
Na entrevista fictícia de “Intestino grosso”, o autor-personagem evoca com um misto de terror e eloquência esse estado degradado de convivência:
“Passamos anos e anos preocupados com o que alguns cientistas cretinos ingleses e alemães (Humboldt?) disseram sobre a impossibilidade de se criar uma civilização abaixo do Equador e decidimos arregaçar as mangas, acabar com os papos de botequim e, partindo de nossas lanchonetes de acrílico, fazer uma civilização como eles queriam, e construímos São Paulo, Santo André, São Bernardo e São Caetano, as nossas Manchesteres tropicais com suas sementes mortíferas. Até ontem o símbolo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo eram três chaminés soltando grossos rolos negros de fumaça no ar. Estamos matando todos os bichos, nem tatu aguenta, várias raças já foram extintas, 1 milhão de árvores são derrubadas por dia, daqui a pouco todas as jaguatiricas viraram tapetinho de banheiro, os jacarés do Pantanal viraram bolsa e as antas foram comidas nos restaurantes típicos, aqueles em que o sujeito vai, pede Capivara à Thermidor, prova um pedacinho, só para contar depois para os amigos, e joga o resto fora. Não dá mais para Diadorim.”
ALEJANDRO CHACOFF  é escritor, ensaísta e crítico literário da piauí. Autor do romance Apátridas, da Companhia das Letras






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