Pular para o conteúdo principal

Marcelo Rubens Paiva: aprendendo com a epidemia

Uma das nossas virtudes é a de ganhar sabedoria de experiências negativas, escreve o jornalista em um artigo brilhante publicado neste sábado, 4/3, no Estadão. Vale, e muito, a leitura. Abaixo, na íntegra.

Pragas estão entre nós desde tempos bíblicos. Quando os primeiros homens e mulheres decidiram seguir o Norte, rodear o Mediterrâneo, se dividir em levas a caminho do Oriente e Ocidente, levaram junto seus companheiros mais íntimos, adaptados por conta de milhões de anos de evolução em contato com outros animais, que continuavam em estado de mutação: caspas, piolhos e vírus.

Rotas da seda geravam comércio de especiarias e doenças. Quando Constantinopla foi invadida enfim pelos turcos, interrompendo o comércio mundial, as caravelas portuguesas avançaram pelo Atlântico Sul e Índico e, pela primeira vez, juntaram biomas do Hemisfério Norte e Sul e de três florestas tropicais, a do Sudeste da Ásia, a africana e a brasileira.

Com isso, os vírus de um ambiente viajaram pelas entranhas em caravelas pelos continentes e contaminaram povos distantes ou há milhares de anos isolados. Malária, febre amarela e a mortal, que se transformou em arma de guerra, varíola, até a caspa, atacaram os nativos.

Os indígenas do Novo Mundo foram dizimados por uma arma mais letal que ferro e chumbo de conquistadores espanhóis e portugueses: o vírus da varíola, além da cólera, gripe, sarampo, tifo, peste bubônica. Conquistadores deixavam roupas imundas para os indígenas levar. Nelas, doenças.

A aglomeração urbana é sinônimo de epidemia. Em Londres, pessoas de um bairro, que colhiam água de uma mesma fonte, começaram a morrer. Era a cólera, entre 1817 e 1823, herdada de colônias como a Índia, doença que por sinal continua ativa e visitou o Brasil anos atrás.

O saneamento passou a ser prioritário em cidades esvaziadas como Paris e Londres, o Estado se fortaleceu, nasceu uma burocracia fortemente ligada à saúde pública. Os talheres e a etiqueta nas refeições, antes restritos a aristocratas, viraram obrigação.

Em 1917, e sobre ela muito tem se falado, a gripe espanhola, que começou numa base militar americana, varreu a Europa durante a Primeira Guerra, levada por soldados ao front de batalha. Embalagens descartáveis, garrafas e enlatados. No fim dela, o mundo viveu um desbundo: Era do Jazz, República de Weimar. Tudo era possível. Sexo livre, festas, drogas, porres, poesia no ar. Sobrevivemos? Bora, curtir.

Tivemos sífilis e tuberculose. Temos dengue, febre amarela e malária. Recentemente, tivemos contato com novos inimigos, vindos da África e Ásia, como HIV, ebola, H1N1, Sars, chicungunha, zica. Vivemos sob a ameaça constante de uma pandemia avassaladora. Sobrevivemos a todas elas, e o mundo muda, na geopolítica e nas nossas cabeças.

O HIV trouxe dilemas morais. Sua principal via de contato é o sexo e a seringa de uma agulha. Homossexuais e viciados foram punidos, como os idosos hoje, como se fossem os responsáveis pela doença. “Problema deles que são degenerados”, pensavam os seguidores de Reagan. A Guerra Contra as Drogas, que não deu em nada, começou ali. Hoje se diz: “Problema deles que são velhos e têm doenças preexistentes”.

O mundo já mudou. No começo da crise da covid-19, vejo gente se perdoando, reatando amizades, valorizando o menos, repensando a economia global, a desigualdade. Vejo pais que se voltaram aos filhos, aos livros. Vejo gente se dedicando a afazeres domésticos antes terceirizados, reaprendendo a cozinhar, valorizando cada grão de comida, gole de bebida.

A arqueóloga portuguesa Joana Freitas explica: “O homem é um exemplo de superação nas linhas evolutivas. Não éramos fisicamente dominadores, nem estávamos no topo das cadeias alimentares. Éramos caçadores, mas presas fáceis também. A evolução do nosso cérebro, as capacidades intelectuais e de cognição, deu-nos a vantagem. Durante milênios, feitos de avanços e retrocessos, a espécie humana prosperou e ocupou os quatro cantos do planeta. A uma capacidade adaptativa gigante juntou-se a sobrevivência assente na coesão de grupo. Há cerca de 10.000 anos, começam a aparecer as primeiras sociedades sedentárias possíveis pela domesticação, embora incipientes de plantas e animais. Aqui, nesse preciso momento, o homem assinava com o destino. Populações crescentes e fixas num local, convivência diária com os animais domesticados e todos os parasitas a eles associados, formaram as condiçõe
s perfeitas para as primeiras epidemias”.

Joana lista as pandemias que mudaram o curso da História, e mortais, e entre elas está a peste bubônica, em Roma, entre 527-565 d.C., sob o comando do imperador Justiniano. Resultado. O império romano entrou em colapso. Nunca mais foi unificado. A data representa o início da era negra da época medieval. O medo da realidade mergulhou o Ocidente no transcendental e na idade das trevas, a Idade Média. Deus castigava aqueles que não tinham fé ou adotavam uma religião pagã. A Igreja Católica se expandiu. Deu na Inquisição.


A peste negra, entre 1343 e 1351, atacou a Ásia e Europa e matou, segundo Joana, cerca de 80 milhões de pessoas. Afetou toda a economia mundial. Porém o caminho foi oposto. A medicina rompeu os tabus do catolicismo e passou a tratar o corpo humano como algo a ser investigado, não como a face de Deus. Deu na Renascença.

Epidemias trouxeram trevas e iluminismo. Escureceu e acendeu. Nos bloqueou ou nos expandiu. Uma das nossas virtudes é a de ganhar sabedoria de experiências negativas. Nós vamos superar essa, com união e serenidade. E deixemos a estupidez falando sozinha.


Comentários

Postar um comentário

O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.

Postagens mais visitadas deste blog

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...