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Época: como está a cabeça de quem vive em isolamento há um mês

A saúde mental daqueles que se viram obrigados a conviver com os outros, consigo mesmos e com uma nova vida é o tema da excelente reportagem de Danilo Thomaz e João Paulo Saconi, publicada no site da revista nesta sexta, 17/3. Abaixo, na íntegra.

A artista visual Luciana Colvara Bachilli, de 41 anos, conhecida como Luluca, mudou-se em 2017 do Rio de Janeiro para Balneário Camboriú, Santa Catarina, pretendendo dar um novo começo a sua vida, depois de ter sido diagnosticada, dois anos antes, com transtorno de personalidade borderline, marcado por alterações bruscas e extremas de humor, além de sintomas como impulsividade, irritação e dificuldade em controlar as próprias emoções. Em três anos na cidade catarinense, conseguiu atenuar os problemas. Mas toda a melhora alcançada está por um fio desde o início da pandemia. “É a luta constante para não cair nos piores comportamentos: fumar demais, beber demais”, disse a artista, que tem intensificado os hábitos prejudiciais a sua condição de saúde por causa do isolamento social, que completa um mês. “Estou bebendo demais, me alimentando mal, meus pensamentos são destrutivos. Eu estou bebendo o dia todo”, confessou. Em alguns dias, passa à base de café. Em outros, come até vomitar. Alterna o descontrole com períodos de angústia, em que filosofa sobre o privilégio de poder ficar tranquilamente em casa na quarentena e mesmo assim não se sentir bem.
Situações traumáticas mexem com a saúde mental das pessoas. Desde a perda de um ente querido e de um emprego até presenciar ou ser vítima de atos de violência. Viver em meio à maior pandemia dos últimos 100 anos, com todos os seus efeitos colaterais sociais e econômicos, não é diferente de passar por um grande trauma. Há o medo do contágio, a vida em isolamento, as perspectivas econômicas incertas e a mudança brusca na rotina, que resulta na total substituição da vida cotidiana que se tinha por outra, nem sempre melhor. Uma pesquisa publicada pela revista científica Lancet em março deste ano apontava que, entre os efeitos de uma quarentena prolongada, está, nos casos mais severos, o transtorno de estresse pós-traumático, cujos sintomas são a paranoia, os flashbacks e pesadelos que podem durar anos. No Brasil, uma pesquisa da consultoria Ideia Big Data, feita com 1.591 pessoas entre os dias 14 e 15 de abril, propôs aos entrevistados uma pergunta objetiva, por telefone, que permitia múltiplas respostas: “Qual palavra melhor define seu sentimento diante do coronavírus?”. O termo mais citado, com 60%, foi “preocupação”, seguido de “ansiedade”, com 40%, e, logo depois, “medo”, com 34%. São sensações que, quando momentâneas, fazem parte do cotidiano de qualquer pessoa. Mas, se persistentes, podem acarretar o surgimento ou a retomada de transtornos psíquicos, como no caso de Luluca.
Como ainda não se vislumbra o fim da pandemia do novo coronavírus, ao menos por enquanto, a tendência é que os quadros depressivos já existentes sejam agravados ou retomados em razão da mudança de rotina dos brasileiros, e que algumas pessoas que antes não sofriam da doença passem a lutar contra ela. “O período em que nos encontramos levará a um aumento dos casos de transtornos ansiosos, entre os quais encontra-se o pânico, e também de depressão”, estima Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da Associação Psiquiátrica da América Latina (Apal). Prevendo esse cenário em todos os países afetados pelo vírus, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu, logo no início do isolamento, um documento com uma série de tópicos voltados à preservação da saúde mental. Entre as recomendações para a quarentena estão “tentar, ao máximo, manter a mesma rotina, ou criar uma nova rotina”, se necessário. Ficar sem rotina é um perigo. A OMS recomenda ainda que o contato social se mantenha ativo por meio da internet e que haja uma agenda de exercícios físicos, alimentação saudável e sono. Esses três últimos itens são fundamentais também para manter baixo o nível de cortisol no sangue. Esse hormônio, produzido pelas glândulas suprarrenais, é liberado de forma excessiva no sistema nervoso quando ativado pela sensação de medo ou irritação. Muito cortisol no sangue implica também a queda da imunidade, o que não convém a ninguém em tempos de pandemia.
O acúmulo de tarefas e a cobrança para manter-se produtiva abalaram a saúde mental da estudante de relações internacionais Maria Elisa Monnerat, de 19 anos, em isolamento desde 16 de março, quando regressou à casa da mãe, em Bom Jardim, Região Serrana do Rio de Janeiro. “Eu me cobro muito. Estou dando um peso excessivo, muito maior, para a faculdade enquanto estou em casa. Passo a maior parte do tempo estudando”, contou. “Comecei a ficar muito cansada, perdi muito peso. Na hora das aulas (on-line) eu chorava porque não queria assistir. Cheguei a trancar três matérias. Quando eu estava na PUC (no Rio de Janeiro), era mais leve. Agora, com essa coisa on-line, eles medem o tempo de tudo”, reclamou. Diagnosticada com depressão e ansiedade há três anos, Maria Elisa é medicada e conta que estava bem até o início do isolamento, quando os sintomas começaram a voltar.
Também tem sofrido recaídas a estudante universitária Julia (nome fictício), de 23 anos, moradora da Tijuca, na Zona Norte do Rio, que tem bulimia. “A possibilidade de escapar de mim mesma e de meus problemas diminuiu. E os sintomas do que eu já sentia pioraram bastante. Sem a quarentena, eu tinha muito mais formas de escapar: fora de casa, na rua ou na casa de um amigo. Agora, não. Estou 24 horas por dia com todos os meus problemas, o tempo todo. Há um lado bom, porque estou sendo obrigada a olhar para dentro de mim. Mas a parte ruim é que estou comigo o tempo todo”, contou.
O psicanalista Christian Dunker aponta para outros problemas decorrentes do isolamento e que podem surgir à medida que a quarentena, que já dura um mês, se prolongue. Trata-se justamente dos que se engajaram de maneira excessiva em qualquer tipo de atividade — até mesmo no próprio trabalho — durante a pandemia e começarão a sentir a estafa mental. “Muita gente largou nessa corrida a 100 por hora. Provavelmente a gente vai ter (dentro de algum tempo) pessoas exaustas, em crise de saturação de engajamento e outras pessoas em crise com o vazio, com a falta”. O maior desafio, ele afirmou, é transformar o vazio em algo produtivo, para que não se torne uma doença e, em última instância, um perigo à vida. Na Itália, pelo menos dois profissionais da saúde que trabalharam ativamente nos cuidados com pacientes infectados pela Covid-19 desde o início da pandemia cometeram suicídio. Na Alemanha, o secretário de Finanças do estado de Hesse, Thomas Schäfer, também tirou a própria vida em meio ao colapso. Ainda que seu país tenha melhores condições para lidar com o novo coronavírus, pessoas próximas disseram à imprensa local que ele estava muito preocupado com o impacto econômico da pandemia.
Uma preocupação extra para quem já sofre de ansiedade e também para os que nutrem boa saúde mental é a crise que decorrerá da paralisação econômica. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), projeta-se no caminho a maior recessão mundial desde 1929, com queda de 5,6% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil neste ano. A crise mal começou e muitos já sentem os efeitos, com a perda da renda e do emprego. O editor Otávio Campos, de 28 anos, mora em Juiz de Fora, Minas Gerais, onde fundou a Edições Macondo, editora que publica poesia de autores vivos de língua portuguesa, lançando, em média, 12 livros por ano. Campos começara a se estabilizar financeiramente no novo negócio havia pouco tempo quando veio o isolamento e as livrarias fecharam as portas sem saber quando, e se, voltarão a abrir. O novo cenário — em que livrarias reportam perdas superiores a 90% — o obriga a tentar novas soluções para seu negócio, mas a ansiedade trazida pelo momento o freia. “A principal característica dela (ansiedade) é essa paralisia. Não consigo fazer nada além de ficar fumando na frente do computador. A situação é eu comigo mesmo, sozinho em meu apartamento. Isso tende a aumentar o sentimento de estar perdido. Não só por estar dentro de casa, mas por esse sentimento de impotência. É desesperador sentar em minha cadeira”, relatou.
O impacto da crise econômica nas famílias também preocupa a juíza e escritora Andréa Pachá, que prevê reflexos no aprofundamento de conflitos familiares e domésticos, já esgarçados em razão do confinamento. Numa situação-limite para os casais, a questão econômica — somada ao isolamento e ao consumo de bebidas alcoólicas em casa — pode levar à violência. “Os números já mostram que está aumentando. Já está acontecendo”, disse Pachá. Na capital fluminense, a subida de casos reportados foi de 50% logo no início do confinamento. O Ministério Público de São Paulo divulgou no dia 14 de abril que as prisões em flagrante por violência contra a mulher cresceram também 50% em março. Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, na primeira semana de abril houve alta de 9% nas ligações recebidas pela pasta por meio do número 180, responsável por centralizar notificações de agressões — numa crescente já notada desde o final de março, quando as medidas de restrição de circulação entraram em vigor. Antes da quarentena, entre 1º e 16 de março, a média de denúncias foi de 829. Esse patamar subiu para 978 registros entre os dias 17 e 25 do mesmo mês, depois do início do confinamento — alta de 15%. “Os conflitos que têm aparecido são inéditos, como são inéditos os tempos que a gente tem vivido. A gente precisa pensar em outras abordagens. Está todo mundo tendo de aprender”, disse a juíza, que tem se reunido com seus pares da Escola Nacional de Magistratura para buscar novas soluções.
Em países onde o novo coronavírus chegou antes, também houve escalada na violência doméstica — e as medidas de isolamento, mais rígidas que no Brasil, dificultaram ainda mais o resgate de mulheres de situações de abuso. Na Espanha, nas primeiras duas semanas de lockdown, as ligações para o número de emergência para casos de violência aumentaram 18%. Na França, a polícia reportou subida de 30%. Na China, o caso de uma moradora de Anhui investigado pelo The New York Times mostrava o cenário extremo: espancada pelo companheiro diante da própria filha, criança, a vítima prestou queixa, mas não conseguiu fazer nada além disso. Não obteve ajuda do Estado para alugar um local para ficar até o fim da quarentena e tampouco o sistema judiciário permitiu que entrasse com os papéis do divórcio. Ela teve, portanto, de viver por semanas com o agressor até que o isolamento fosse flexibilizado, em março.
Se a violência doméstica se mostra indissolúvel apenas com diálogo, requerendo esforço policial e acolhimento da vítima, é possível tentar amenizar outros males do confinamento com ajuda profissional. Para quem viu a saúde mental se deteriorar, as consultas com psicólogos, psicanalistas e psiquiatras on-line se tornaram corriqueiras, resultando num aumento de 120% nas buscas por esse tipo de serviço virtual, segundo o Google Trends. E há iniciativas criadas justamente para ajudar quem perdeu renda em razão da pandemia. Em São Paulo, as rodas de conversa do Grupo Escuta Sedes, vinculado ao Instituto Sedes Sapientiae, transferiu seus encontros semanais — gratuitos — para a internet. Inicialmente com 12 vagas, a turma poderá crescer conforme a demanda. “Tem toda uma revolta misturada com a angústia da perda da mobilidade, da perda da vida. As pessoas com menos condições têm mais questionamentos. Como ficar em casa? Como conviver?”, explicou Maria Silvia Borghese, psicanalista do grupo. No Rio de Janeiro, a Praça Terapia também mudou-se da Praça São Salvador para a internet, mantendo a gratuidade dos atendimentos.
Para quem ainda não começou a sentir sintomas de que algo não vai bem e quer se precaver, o ex-astronauta Scott Kelly, que já passou um ano confinado em uma estação espacial, fez algumas recomendações em um artigo de sua autoria publicado no The New York Times. Ter uma rotina e tentar escrever um diário — não necessariamente relatando fatos da quarentena, mas sim o que vem à cabeça nesse período, inclusive sonhos — ajuda a manter a sanidade. Ficar confinado numa pequena cápsula também acaba criando uma certa ânsia por espaço. Portanto, eventualmente sair para dar uma volta ao ar livre pode operar milagres em uma mente aflita.
A psicóloga Marcia Matos, de 41 anos, mãe de duas filhas — de 8 e 6 anos —, conseguiu resolver suas angústias com uma tática mais simples: um cochilo de uma hora durante o dia. Até o início do isolamento, ela trabalhava fora — em consultório e ministrando palestras — e estava prestes a iniciar um trabalho fixo, suspenso em razão da pandemia. Divorciada, viu os eventos ser cancelados, metade dos clientes deixar o consultório e a pensão alimentícia cair em 2/3. “No começo, ia me dando uma irritação enorme, uma vontade de chorar. ‘Nossa, eu estou cansada’, pensava. Quando percebi que com o sono eu conseguia me recompor, vi que era a solução. Eu me fecho no quarto e durmo para conseguir continuar a dar conta”, disse. Como especialistas já começam a apostar em cenários para o futuro em que o confinamento alternado se torne rotina no mundo, criar o hábito do cochilo pode ser uma boa herança destes tempos inóspitos.



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