Tatiana Salem Levy escreve no Valor uma interessante matéria sobre os tempos pós-pandemia. Saiu na sexta, 24/4, e vale a leitura. Na íntegra, abaixo.
As semanas passam e continuamos com a terrível sensação de medo. Queremos acreditar que há uma luz no fim do túnel - e deve haver -, mas o tempo suspenso, a vida interrompida dificultam uma visão de futuro. Há quem diga que o mundo mudará para melhor após essa experiência, que será impossível retomarmos a vida como antes, com o mesmo consumo de petróleo, com o mesmo desrespeito à natureza. Há quem diga, ao contrário, que, esquecida a tragédia, voltaremos ao capitalismo predatório, talvez ainda pior. Por ora, tudo é especulação.
Faz parte da estratégia de sobrevivência do homem imaginar o que virá a seguir. Sem uma ideia de mundo melhor, nos tornamos apáticos. E, de fato, há muita apatia por aí. Inevitável. Mas há também vários pensadores que, mal a pandemia começou, se puseram a planejar futuros possíveis. Faço aqui uma pequena seleção desses textos.
O medo. O filósofo português José Gil abre seu artigo com as seguintes frases: “O que vem aí, ninguém sabe. Adivinha-se, teme-se que seja devastador. Em número de mortes, em sofrimento, em destruição. Mas, como não temos uma ideia clara do que poderá ser uma tal catástrofe, a ignorância e a confusão amplificam o nosso medo”.
É claro que, por sabermos que a morte é o fim absoluto, o temor dela faz parte da humanidade. Mas o medo provocado pelo coronavírus não é apenas o medo da morte. É, sim, a angústia da “morte absurda, imprevista, brutal e sem razão, violenta e injusta”. Como se, de repente, a vida, por poder se esvair dessa forma, perdesse o sentido.
Por trás do medo, esconde-se a descoberta de que as sociedades que inventamos falharam. O Estado não tem como nos garantir tranquilidade. Os sistemas de saúde do mundo todo estão ruindo; a solidariedade global não se faz ver. Nem mesmo a Europa conseguiu ser solidária com a Itália. E, pior, o vírus nos parece apenas uma amostra das catástrofes que as alterações climáticas vão desencadear.
Se Gil sabe que há, hoje, uma tendência a sermos capturados pelo medo, ele escreve para afastar esse sentimento que “encolhe o espaço, suspende o tempo, paralisa o corpo”.
Coronavírus mostrou que todos sentimos medo e morremos igual. A polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do último Nobel de Literatura, acha que o mundo estava acelerado demais e que o vírus nos transporta para um ritmo normal da vida - enquanto o ritmo anterior ao vírus era, ele sim, anormal. “Para mim, já havia um bom tempo, o mundo estava em demasia. Por demais, rápido demais, barulhento demais”, diz a escritora.
O vírus nos lembra nosso principal temor: a morte. “Todos, igualmente, contraímos doenças, sentimos o mesmo medo e morremos do mesmo jeito.” No entanto, a epidemia também serviu para nos relembrar que as fronteiras continuam existindo e estão bem, e o quanto nossas sociedades são desiguais. Em nossas quarentenas, “nos preparamos para uma grande batalha pela nova realidade que nem sequer conseguimos imaginar, percebendo, aos poucos, que nada será como antes”.
O capitalismo tem seus limites. Neste texto, a feminista americana Judith Butler destaca o caráter contraditório da epidemia: por um lado, temos um vírus que transporta as fronteiras - nacionais e sociais -, reafirmando a interdependência global. Por outro lado, exige que nos tranquemos em casa. A atitude individual e local é o que de melhor podemos fazer pela saúde coletiva.
No entanto, se o vírus não discrimina, o capitalismo o faz. A desigualdade radical, alerta Butler, incluindo nela “nacionalismo, supremacia branca, violência contra as mulheres e contra as populações queer e trans”, encontra formas de “reproduzir e fortalecer seus poderes no interior das zonas de pandemia”.
Butler analisa o caso extremo dos EUA, que, depois de ignorarem os alertas da OMS, mostraram sua face capitalista selvagem. Trump tentou negociar com uma farmacêutica alemã a compra exclusiva de uma possível vacina, afirmando o pensamento, tão corriqueiro nos EUA, de que a saúde deles vale mais do que a do resto do mundo. A Alemanha esperneou. Um de seus políticos, Karl Lauterbach afirmou: “Capitalismo tem limites.”
Infelizmente, é o egoísmo - que, entre outras coisas, nega a importância de uma saúde pública para todos e exalta o sistema de planos de saúde - que vem liderando a campanha eleitoral que deixará Bernie Sanders de fora. No fim, ela questiona: “por que nós, como um povo, ainda nos opomos à ideia de tratar todas as vidas como se elas tivessem o mesmo valor?”.
Covid-19: O século XXI começa agora. Ao lembrar que o ano de 1914 ficou estabelecido como o ano inaugural do século XX, o historiador francês Jérôme Baschet afirma que, no futuro, 2020 será interpretado como o início do século XXI. O coronavírus é o anúncio do que nos aguarda nas próximas décadas, caso não mudemos nossa forma de vida: um mundo convulsionado, repleto de catástrofes, como consequência do aquecimento global.
O vírus que hoje paralisa o planeta veio cobrar a conta do chamado Antropoceno - “este novo período geológico no qual a espécie humana se tornou uma força capaz de modificar a biosfera em escala global”. Ele nos mostra o colapso e a desorganização do sistema vivo, mas também a total falta de credibilidade dos governantes e do sistema político de forma geral. Contudo, hoje ainda temos duas opções: “vamos frear o trem louco de uma civilização que corria em direção à destruição em massa da vida” ou vamos levar adiante o fanatismo da mercadoria e o produtivismo compulsivo?
Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Um ser invisível e silencioso conseguiu o que até há pouco tempo considerávamos impossível: suspendeu o sistema econômico, parou a produção globalizada.
Embora possa parecer indecoroso projetar pela imaginação o período pós-crise enquanto médicos estão na linha de frente, milhões estão desempregados e famílias não podem se despedir de seus mortos, o antropólogo francês Bruno Latour ressalta a importância de lutar agora para, depois da epidemia, não retomarmos a mesma economia, “o mesmo velho regime climático que temos tentado combater, até hoje em vão”.
Se, por um lado, esta é uma oportunidade que serve para os adeptos da globalização conservarem seus guetos e retomarem a velha economia, por outro lado, também é uma oportunidade para quem quer questionar os danos causados pelo Antropoceno. Afinal, “se tudo para, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado”.
Se o vírus consegue suspender a economia mundial, então nossos pequenos gestos também podem frear o sistema produtivo e desacelerar as alterações climáticas. À exigência de se retomar a produção o mais rápido possível, “temos de responder com um grito: ‘De jeito nenhum!’”.
Voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Este não é um título de texto, mas de uma entrevista publicada n’“O Globo” com um dos nossos pensadores mais importantes hoje, Ailton Krenak, que diz acreditar que o coronavírus “é uma resposta do planeta à forma como a sociedade vem consumindo a Terra”. Enquanto nós, seres humanos, estamos parados e trancados em casa, pássaros estão voltando a locais de onde tinham desaparecido, e a água suja está se limpando.
Para ele, como para Latour, esta é a chance de não voltar ao antigo normal. “Só o que parou foi o mundo artificial dos humanos. Não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário.” O futuro é aqui e agora, diz ele, que insiste que a interrupção da vida que levávamos pode ser também a saída para percebermos que não podemos voltar ao mesmo ponto. “Espero que as pessoas que abriram os olhos agora não os fechem depois.”
Tatiana Salem Levy, escritora e pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa, escreve neste espaço quinzenalmente
As semanas passam e continuamos com a terrível sensação de medo. Queremos acreditar que há uma luz no fim do túnel - e deve haver -, mas o tempo suspenso, a vida interrompida dificultam uma visão de futuro. Há quem diga que o mundo mudará para melhor após essa experiência, que será impossível retomarmos a vida como antes, com o mesmo consumo de petróleo, com o mesmo desrespeito à natureza. Há quem diga, ao contrário, que, esquecida a tragédia, voltaremos ao capitalismo predatório, talvez ainda pior. Por ora, tudo é especulação.
Faz parte da estratégia de sobrevivência do homem imaginar o que virá a seguir. Sem uma ideia de mundo melhor, nos tornamos apáticos. E, de fato, há muita apatia por aí. Inevitável. Mas há também vários pensadores que, mal a pandemia começou, se puseram a planejar futuros possíveis. Faço aqui uma pequena seleção desses textos.
O medo. O filósofo português José Gil abre seu artigo com as seguintes frases: “O que vem aí, ninguém sabe. Adivinha-se, teme-se que seja devastador. Em número de mortes, em sofrimento, em destruição. Mas, como não temos uma ideia clara do que poderá ser uma tal catástrofe, a ignorância e a confusão amplificam o nosso medo”.
É claro que, por sabermos que a morte é o fim absoluto, o temor dela faz parte da humanidade. Mas o medo provocado pelo coronavírus não é apenas o medo da morte. É, sim, a angústia da “morte absurda, imprevista, brutal e sem razão, violenta e injusta”. Como se, de repente, a vida, por poder se esvair dessa forma, perdesse o sentido.
Por trás do medo, esconde-se a descoberta de que as sociedades que inventamos falharam. O Estado não tem como nos garantir tranquilidade. Os sistemas de saúde do mundo todo estão ruindo; a solidariedade global não se faz ver. Nem mesmo a Europa conseguiu ser solidária com a Itália. E, pior, o vírus nos parece apenas uma amostra das catástrofes que as alterações climáticas vão desencadear.
Se Gil sabe que há, hoje, uma tendência a sermos capturados pelo medo, ele escreve para afastar esse sentimento que “encolhe o espaço, suspende o tempo, paralisa o corpo”.
Coronavírus mostrou que todos sentimos medo e morremos igual. A polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do último Nobel de Literatura, acha que o mundo estava acelerado demais e que o vírus nos transporta para um ritmo normal da vida - enquanto o ritmo anterior ao vírus era, ele sim, anormal. “Para mim, já havia um bom tempo, o mundo estava em demasia. Por demais, rápido demais, barulhento demais”, diz a escritora.
O vírus nos lembra nosso principal temor: a morte. “Todos, igualmente, contraímos doenças, sentimos o mesmo medo e morremos do mesmo jeito.” No entanto, a epidemia também serviu para nos relembrar que as fronteiras continuam existindo e estão bem, e o quanto nossas sociedades são desiguais. Em nossas quarentenas, “nos preparamos para uma grande batalha pela nova realidade que nem sequer conseguimos imaginar, percebendo, aos poucos, que nada será como antes”.
O capitalismo tem seus limites. Neste texto, a feminista americana Judith Butler destaca o caráter contraditório da epidemia: por um lado, temos um vírus que transporta as fronteiras - nacionais e sociais -, reafirmando a interdependência global. Por outro lado, exige que nos tranquemos em casa. A atitude individual e local é o que de melhor podemos fazer pela saúde coletiva.
No entanto, se o vírus não discrimina, o capitalismo o faz. A desigualdade radical, alerta Butler, incluindo nela “nacionalismo, supremacia branca, violência contra as mulheres e contra as populações queer e trans”, encontra formas de “reproduzir e fortalecer seus poderes no interior das zonas de pandemia”.
Butler analisa o caso extremo dos EUA, que, depois de ignorarem os alertas da OMS, mostraram sua face capitalista selvagem. Trump tentou negociar com uma farmacêutica alemã a compra exclusiva de uma possível vacina, afirmando o pensamento, tão corriqueiro nos EUA, de que a saúde deles vale mais do que a do resto do mundo. A Alemanha esperneou. Um de seus políticos, Karl Lauterbach afirmou: “Capitalismo tem limites.”
Infelizmente, é o egoísmo - que, entre outras coisas, nega a importância de uma saúde pública para todos e exalta o sistema de planos de saúde - que vem liderando a campanha eleitoral que deixará Bernie Sanders de fora. No fim, ela questiona: “por que nós, como um povo, ainda nos opomos à ideia de tratar todas as vidas como se elas tivessem o mesmo valor?”.
Covid-19: O século XXI começa agora. Ao lembrar que o ano de 1914 ficou estabelecido como o ano inaugural do século XX, o historiador francês Jérôme Baschet afirma que, no futuro, 2020 será interpretado como o início do século XXI. O coronavírus é o anúncio do que nos aguarda nas próximas décadas, caso não mudemos nossa forma de vida: um mundo convulsionado, repleto de catástrofes, como consequência do aquecimento global.
O vírus que hoje paralisa o planeta veio cobrar a conta do chamado Antropoceno - “este novo período geológico no qual a espécie humana se tornou uma força capaz de modificar a biosfera em escala global”. Ele nos mostra o colapso e a desorganização do sistema vivo, mas também a total falta de credibilidade dos governantes e do sistema político de forma geral. Contudo, hoje ainda temos duas opções: “vamos frear o trem louco de uma civilização que corria em direção à destruição em massa da vida” ou vamos levar adiante o fanatismo da mercadoria e o produtivismo compulsivo?
Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Um ser invisível e silencioso conseguiu o que até há pouco tempo considerávamos impossível: suspendeu o sistema econômico, parou a produção globalizada.
Embora possa parecer indecoroso projetar pela imaginação o período pós-crise enquanto médicos estão na linha de frente, milhões estão desempregados e famílias não podem se despedir de seus mortos, o antropólogo francês Bruno Latour ressalta a importância de lutar agora para, depois da epidemia, não retomarmos a mesma economia, “o mesmo velho regime climático que temos tentado combater, até hoje em vão”.
Se, por um lado, esta é uma oportunidade que serve para os adeptos da globalização conservarem seus guetos e retomarem a velha economia, por outro lado, também é uma oportunidade para quem quer questionar os danos causados pelo Antropoceno. Afinal, “se tudo para, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado”.
Se o vírus consegue suspender a economia mundial, então nossos pequenos gestos também podem frear o sistema produtivo e desacelerar as alterações climáticas. À exigência de se retomar a produção o mais rápido possível, “temos de responder com um grito: ‘De jeito nenhum!’”.
Voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Este não é um título de texto, mas de uma entrevista publicada n’“O Globo” com um dos nossos pensadores mais importantes hoje, Ailton Krenak, que diz acreditar que o coronavírus “é uma resposta do planeta à forma como a sociedade vem consumindo a Terra”. Enquanto nós, seres humanos, estamos parados e trancados em casa, pássaros estão voltando a locais de onde tinham desaparecido, e a água suja está se limpando.
Para ele, como para Latour, esta é a chance de não voltar ao antigo normal. “Só o que parou foi o mundo artificial dos humanos. Não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário.” O futuro é aqui e agora, diz ele, que insiste que a interrupção da vida que levávamos pode ser também a saída para percebermos que não podemos voltar ao mesmo ponto. “Espero que as pessoas que abriram os olhos agora não os fechem depois.”
Tatiana Salem Levy, escritora e pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa, escreve neste espaço quinzenalmente
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.