Mateus Baldi escreveu na Folha na quinta-feira, 15/4, um belo obituário do escritor de policiais e psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza, um dos autores preferidos do autor deste blog. Espinosa, seu detetive, é realmente especial e a obra de Garcia-Roza vale ser lida e relida. Que descanse em paz.
Internado desde o ano passado, depois de sofrer um acidente vascular-cerebral, o psicanalista e escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, um dos mais celebrados autores policiais do país, morreu nesta quinta-feira (16), no hospital Samaritano, no Rio de Janeiro. A informação foi confirmada por sua agente literária, Lúcia Riff.
Seu livro mais recente havia sido "A Última Mulher", publicado no ano passado, depois que o autor já estava no hospital. O livro também trazia o detetive Espinosa, principal personagem de suas obras.
Dono de uma voz grave, Garcia-Roza era um homem elegantemente afetuoso. Durante o tempo em que lecionou filosofia e psicanálise na Universidade Federal do Rio de Janeiro, não era incomum que suas aulas tivessem turmas lotadas, com gente aglomerada nos corredores e até mesmo nas escadas.
Quando os alunos não achavam os assuntos fáceis, não hesitava em explicar de quantas maneiras fosse preciso até que aprendessem. Seu gesto mais peculiar, quando traçava um círculo perfeito na lousa, era herança dos tempos em que foi desenhista.
O didatismo se manteve durante a carreira de autor policial. Esnobando certa tradição que deixava o detetive acima do leitor, Garcia-Roza preferia que seu público acompanhasse a história no mesmo nível, com pistas e teorias sobre o comportamento humano dispostas de forma clara ao longo das páginas.
Carioca, viveu a juventude em Copacabana —dizia que a graça do bairro nos anos 1940 era poder atravessar as ruas sem carros— e passou pelo Exército antes de chegar à universidade. Quase foi jogador de basquete. Frequentador da praia, gostava de pegar ondas com pneus de avião, que conseguia graças a contatos no aeroporto Santos Dumont.
Adquiriu o hábito da leitura em casa, com um tio. A famosa estante do delegado Espinosa, protagonista de quase todos os seus romances, na qual os livros se dispunham sem auxílio de prateleiras ou estantes, era cópia fiel daquela que seu criador teve quando jovem. Fascinado pelas jornadas de Raskólnikov e Ulysses, ao ser questionado sobre seu livro preferido, empatava “Crime e Castigo” com a “Ilíada” e a “Odisseia” –dos quais tinha edições cheias de anotações meticulosas.
No escritório com vista para a baía de Guanabara, no centro do Rio, comprado com o dinheiro que recebeu do prêmio Nestlé de 1997, misturavam-se livros de Hegel em vários idiomas, primeiras edições do delegado Espinosa ainda empacotadas e volumes de Dashiell Hammett e Bernardo Carvalho.
O tradicional restaurante Villarino, ali perto, era onde batia ponto na maioria de seus almoços —garçons até sugeriam o prato, mas, houvesse carne e ovo, estava de bom tamanho.
Garcia-Roza mais ouvia do que falava. Gostava de ficar imerso em seu mundo, refletindo sobre o que os outros conversavam para só então, certeiro, dizer algo que desmontasse por completo seus interlocutores —o que não fazia com indelicadeza. Procurava demonstrar por raciocínio lógico como determinado pensamento poderia ter se formado. Perguntas cotidianas nunca eram acompanhadas de monossílabos.
A estreia tardia na ficção, aos 60 anos, veio depois de dois anos elaborando a trama de “O Silêncio da Chuva”, considerado por muitos o seu melhor romance. Prestes a virar filme, sob a direção de Daniel Filho e com o ator Lázaro Ramos no papel de Espinosa, o livro ganhou dois dos mais prestigiados prêmios da época —o Jabuti e o Nestlé, em 1997.
Publicado pela Companhia das Letras em 1996 depois da insistência de Jorge Zahar, amigo e editor de seus livros de psicanálise, que o incentivou a procurar Luiz Schwarcz, o romance inaugura uma escola de literatura policial no Brasil ao narrar um suicídio e uma cascata de assassinatos e sequestros.
"[Ele] adorava seu novo ofício de escritor de romances policiais, para onde canalizava toda a generosidade que aprendera com os grandes filósofos. Seu olhar para os personagens era esse, cheio de humanismo, como se não se pudesse ser um grande escritor de policiais sem ter sido um mestre em filosofia", diz Schwarcz. "O Brasil perde hoje um grande professor, um escritor exemplar, e um poço de bondade."
Antes de Garcia-Roza, quem ganhava a etiqueta de autor policial no país era Rubem Fonseca, mas ainda assim alguns livros do autor de “A Grande Arte” deixavam essa classificação um pouco enevoada.
Com o aparecimento de Espinosa, todo o universo criminoso do Rio de Janeiro passou a ser contemplado na forma de crimes brutais, porém investigados com classe. Professores loucos, dentistas desaparecidos, policiais corruptos, prostitutas em profusão —na Copacabana do delegado Espinosa, tudo era possível.
Romances como “Espinosa sem Saída” e “Na Multidão” apresentavam uma aproximação perturbadora do leitor com os personagens, como se seus horrores estivessem diante dos olhos. Essa habilidade de olhar a alma humana por um viés sóbrio e próximo possibilitou que até mesmo os livros mais densos, como “Uma Janela em Copacabana” e “Céu de Origamis”, não perdessem o ar de thriller frente a investigação psicológica –o que verdadeiramente importava.
Afirmando ter “horror a herói”, Garcia-Roza fez de seu protagonista um funcionário público viciado em alimentos congelados e comida árabe, sempre disposto a proteger quem estivesse em perigo, por mais que no fim das contas essas pessoas fossem os próprios assassinos. Extremamente íntegro e incorruptível, Espinosa não é um gênio como Nero Wolfe, tampouco uma máquina institucional como Sam Spade, criações de Rex Stout e Dashiell Hammett.
É essa "ética muito particular" do personagem, diz o ator Lázaro Ramos, prestes a vivê-lo na tela grande, que o torna inspirador. "Ele é um homem que trabalha com a lei, mas também é cheio de conflitos. Quando fui fazê-lo no cinema, fiquei com medo, pois sei que é um personagem cheio de expectativas."
Um dos fundadores do programa de pós-graduação em teoria psicanalítica da UFRJ, de onde era professor emérito, Garcia-Roza transpôs para as páginas da ficção os conceitos criados por Freud —dizia que tanto a investigação policial quanto a psicanalítica partiam da suspeita.
Portanto, muito mais interessada no interior do que no exterior, sua prosa buscava dar ao leitor condições de interpretar as motivações daqueles personagens tomados por uma habitual ou momentânea loucura, o que era classificado pelo próprio autor como algo inescrutável.
Na sala do apartamento com vista para a enseada de Botafogo, onde vivia com a mulher, a também escritora Livia Garcia-Roza, cada um ocupava uma mesa em lados opostos. Só liam um ao outro quando os livros já estavam nas livrarias. Esporadicamente, Livia postava no Facebook diálogos espirituosos que ambos travavam.
Dono de um humor afiado, Garcia-Roza foi o responsável por influenciar gerações de psicanalistas e escritores.
"Nunca me esqueço que estava lançando um dos meus livros, e antes que tivesse publicado o primeiro romance, Garcia-Roza apareceu na fila de autógrafos e falou que também escrevia livros policiais", lembra o autor e músico Tony Bellotto, criador de outro investigador célebre da literatura nacional, Remo Bellini. "O Bellini e o Espinosa estão tristes hoje com a morte do Garcia-Roza."
Bellotto ainda aponta a coincidência entre as datas das mortes do autor e de Rubem Fonseca, vítima de uma parada cardíaca nesta quarta (15), dois dos "mestres absolutos" da literatura policial do país.
"Cáspite! Parece uma piada mórbida, um joguete de deuses maldosos e infantis, como deus e o diabo na parábola de Jó", fez coro, no Twitter, o roteirista Paulo Halm, que adaptou "Achados e Perdidos" para o cinema ao lado do diretor José Joffily.
Os escritores Benjamin Moser e João Paulo Cuenca também comentaram a morte de Garcia-Roza na rede social. O primeiro, autor de biografias sobre Clarice Lispector e Susan Sontag, contou que traduziu alguns títulos de Garcia-Roza para o inglês e que gostava tanto dele quanto de seu protagonista usual, o detetive Espinosa. O segundo foi mais sucinto: "Inacreditável", escreveu.
Além da mulher, Livia, Garcia-Roza deixa a família formada pelos filhos que ambos tiveram em relacionamentos anteriores, três no total, além de duas netas e um bisneto. Colaborou Clara Balbi
Internado desde o ano passado, depois de sofrer um acidente vascular-cerebral, o psicanalista e escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, um dos mais celebrados autores policiais do país, morreu nesta quinta-feira (16), no hospital Samaritano, no Rio de Janeiro. A informação foi confirmada por sua agente literária, Lúcia Riff.
Seu livro mais recente havia sido "A Última Mulher", publicado no ano passado, depois que o autor já estava no hospital. O livro também trazia o detetive Espinosa, principal personagem de suas obras.
Dono de uma voz grave, Garcia-Roza era um homem elegantemente afetuoso. Durante o tempo em que lecionou filosofia e psicanálise na Universidade Federal do Rio de Janeiro, não era incomum que suas aulas tivessem turmas lotadas, com gente aglomerada nos corredores e até mesmo nas escadas.
Quando os alunos não achavam os assuntos fáceis, não hesitava em explicar de quantas maneiras fosse preciso até que aprendessem. Seu gesto mais peculiar, quando traçava um círculo perfeito na lousa, era herança dos tempos em que foi desenhista.
O didatismo se manteve durante a carreira de autor policial. Esnobando certa tradição que deixava o detetive acima do leitor, Garcia-Roza preferia que seu público acompanhasse a história no mesmo nível, com pistas e teorias sobre o comportamento humano dispostas de forma clara ao longo das páginas.
Carioca, viveu a juventude em Copacabana —dizia que a graça do bairro nos anos 1940 era poder atravessar as ruas sem carros— e passou pelo Exército antes de chegar à universidade. Quase foi jogador de basquete. Frequentador da praia, gostava de pegar ondas com pneus de avião, que conseguia graças a contatos no aeroporto Santos Dumont.
Adquiriu o hábito da leitura em casa, com um tio. A famosa estante do delegado Espinosa, protagonista de quase todos os seus romances, na qual os livros se dispunham sem auxílio de prateleiras ou estantes, era cópia fiel daquela que seu criador teve quando jovem. Fascinado pelas jornadas de Raskólnikov e Ulysses, ao ser questionado sobre seu livro preferido, empatava “Crime e Castigo” com a “Ilíada” e a “Odisseia” –dos quais tinha edições cheias de anotações meticulosas.
No escritório com vista para a baía de Guanabara, no centro do Rio, comprado com o dinheiro que recebeu do prêmio Nestlé de 1997, misturavam-se livros de Hegel em vários idiomas, primeiras edições do delegado Espinosa ainda empacotadas e volumes de Dashiell Hammett e Bernardo Carvalho.
O tradicional restaurante Villarino, ali perto, era onde batia ponto na maioria de seus almoços —garçons até sugeriam o prato, mas, houvesse carne e ovo, estava de bom tamanho.
Garcia-Roza mais ouvia do que falava. Gostava de ficar imerso em seu mundo, refletindo sobre o que os outros conversavam para só então, certeiro, dizer algo que desmontasse por completo seus interlocutores —o que não fazia com indelicadeza. Procurava demonstrar por raciocínio lógico como determinado pensamento poderia ter se formado. Perguntas cotidianas nunca eram acompanhadas de monossílabos.
A estreia tardia na ficção, aos 60 anos, veio depois de dois anos elaborando a trama de “O Silêncio da Chuva”, considerado por muitos o seu melhor romance. Prestes a virar filme, sob a direção de Daniel Filho e com o ator Lázaro Ramos no papel de Espinosa, o livro ganhou dois dos mais prestigiados prêmios da época —o Jabuti e o Nestlé, em 1997.
Publicado pela Companhia das Letras em 1996 depois da insistência de Jorge Zahar, amigo e editor de seus livros de psicanálise, que o incentivou a procurar Luiz Schwarcz, o romance inaugura uma escola de literatura policial no Brasil ao narrar um suicídio e uma cascata de assassinatos e sequestros.
"[Ele] adorava seu novo ofício de escritor de romances policiais, para onde canalizava toda a generosidade que aprendera com os grandes filósofos. Seu olhar para os personagens era esse, cheio de humanismo, como se não se pudesse ser um grande escritor de policiais sem ter sido um mestre em filosofia", diz Schwarcz. "O Brasil perde hoje um grande professor, um escritor exemplar, e um poço de bondade."
Antes de Garcia-Roza, quem ganhava a etiqueta de autor policial no país era Rubem Fonseca, mas ainda assim alguns livros do autor de “A Grande Arte” deixavam essa classificação um pouco enevoada.
Com o aparecimento de Espinosa, todo o universo criminoso do Rio de Janeiro passou a ser contemplado na forma de crimes brutais, porém investigados com classe. Professores loucos, dentistas desaparecidos, policiais corruptos, prostitutas em profusão —na Copacabana do delegado Espinosa, tudo era possível.
Romances como “Espinosa sem Saída” e “Na Multidão” apresentavam uma aproximação perturbadora do leitor com os personagens, como se seus horrores estivessem diante dos olhos. Essa habilidade de olhar a alma humana por um viés sóbrio e próximo possibilitou que até mesmo os livros mais densos, como “Uma Janela em Copacabana” e “Céu de Origamis”, não perdessem o ar de thriller frente a investigação psicológica –o que verdadeiramente importava.
Afirmando ter “horror a herói”, Garcia-Roza fez de seu protagonista um funcionário público viciado em alimentos congelados e comida árabe, sempre disposto a proteger quem estivesse em perigo, por mais que no fim das contas essas pessoas fossem os próprios assassinos. Extremamente íntegro e incorruptível, Espinosa não é um gênio como Nero Wolfe, tampouco uma máquina institucional como Sam Spade, criações de Rex Stout e Dashiell Hammett.
É essa "ética muito particular" do personagem, diz o ator Lázaro Ramos, prestes a vivê-lo na tela grande, que o torna inspirador. "Ele é um homem que trabalha com a lei, mas também é cheio de conflitos. Quando fui fazê-lo no cinema, fiquei com medo, pois sei que é um personagem cheio de expectativas."
Um dos fundadores do programa de pós-graduação em teoria psicanalítica da UFRJ, de onde era professor emérito, Garcia-Roza transpôs para as páginas da ficção os conceitos criados por Freud —dizia que tanto a investigação policial quanto a psicanalítica partiam da suspeita.
Portanto, muito mais interessada no interior do que no exterior, sua prosa buscava dar ao leitor condições de interpretar as motivações daqueles personagens tomados por uma habitual ou momentânea loucura, o que era classificado pelo próprio autor como algo inescrutável.
Na sala do apartamento com vista para a enseada de Botafogo, onde vivia com a mulher, a também escritora Livia Garcia-Roza, cada um ocupava uma mesa em lados opostos. Só liam um ao outro quando os livros já estavam nas livrarias. Esporadicamente, Livia postava no Facebook diálogos espirituosos que ambos travavam.
Dono de um humor afiado, Garcia-Roza foi o responsável por influenciar gerações de psicanalistas e escritores.
"Nunca me esqueço que estava lançando um dos meus livros, e antes que tivesse publicado o primeiro romance, Garcia-Roza apareceu na fila de autógrafos e falou que também escrevia livros policiais", lembra o autor e músico Tony Bellotto, criador de outro investigador célebre da literatura nacional, Remo Bellini. "O Bellini e o Espinosa estão tristes hoje com a morte do Garcia-Roza."
Bellotto ainda aponta a coincidência entre as datas das mortes do autor e de Rubem Fonseca, vítima de uma parada cardíaca nesta quarta (15), dois dos "mestres absolutos" da literatura policial do país.
"Cáspite! Parece uma piada mórbida, um joguete de deuses maldosos e infantis, como deus e o diabo na parábola de Jó", fez coro, no Twitter, o roteirista Paulo Halm, que adaptou "Achados e Perdidos" para o cinema ao lado do diretor José Joffily.
Os escritores Benjamin Moser e João Paulo Cuenca também comentaram a morte de Garcia-Roza na rede social. O primeiro, autor de biografias sobre Clarice Lispector e Susan Sontag, contou que traduziu alguns títulos de Garcia-Roza para o inglês e que gostava tanto dele quanto de seu protagonista usual, o detetive Espinosa. O segundo foi mais sucinto: "Inacreditável", escreveu.
Além da mulher, Livia, Garcia-Roza deixa a família formada pelos filhos que ambos tiveram em relacionamentos anteriores, três no total, além de duas netas e um bisneto. Colaborou Clara Balbi
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