Pular para o conteúdo principal

André Lara Resende: Quem vai pagar essa conta?

O dogmatismo fiscal não ameaça só a economia: é hora de parar de repetir chavões anacrônicos e de repensar, senão quem pagará é a democracia, diz o economista em artigo publicado sexta, 24/4, no jornal Valor Econômico e reproduzido abaixo, na íntegra. Uma excelente reflexão, vale a leitura.

Até os mais empedernidos defensores do equilíbrio fiscal - e no Brasil de hoje eles dão as cartas - reconhecem que diante da crise é preciso que o Estado gaste para evitar uma verdadeira catástrofe humanitária. Mas como foram pegos no contrapé, no meio de uma cruzada para equilibrar as contas públicas, para salvar o Tesouro do cerco dos infiéis, perderam o rumo. Não apenas a agenda do ministro Paulo Guedes, mas também o discurso da esmagadora maioria dos analistas, tinha se transformado em samba de uma nota só: eliminar o déficit.
Tudo mais seria irrelevante ou viria como consequência. Investimentos em saneamento, segurança, saúde, educação e infraestrutura? Impossível, não há como financiá-los. Um programa de metas para sair da armadilha da estagnação? Desnecessário, bastaria aprovar as reformas que o investimento externo e a confiança garantiriam o novo milagre brasileiro. Não foi o que se viu. Aprovada a reforma da Previdência, aquela que seria a mãe de todas as reformas “estruturantes” segundo seus preconizadores, a economia continuou anêmica e o desemprego, aberto. É claro que tanto o ministro como o seu coro na mídia agora sustentam o contrário, que a economia estava pronta para decolar, quando foi “atingida por um meteoro”.
A crise provocada pelo coronavírus é de fato inusitada. A parada da economia, tanto pelo lado da demanda como da oferta, não tem precedentes. Ainda por cima é uma crise sincronizada, que atinge praticamente todas as economias no mundo. Nunca se viu nada parecido. Para amenizar o drama humano e evitar uma depressão profunda, o Estado precisa prover um auxílio de emergência. O Banco Central deve emitir para injetar liquidez no sistema bancário e evitar que a parada da economia se transforme também numa crise financeira.
Como o sistema bancário está, compreensivelmente, assustado com a possibilidade de uma onda de quebras e inadimplência, a injeção de liquidez não será repassada para a economia real. É preciso fazer o auxílio chegar diretamente às empresas e às pessoas necessitadas. Nesse momento, o aumento dos gastos públicos é essencialmente uma ajuda de emergência, para aliviar o sofrimento e impedir quebras generalizadas, mas os investimentos contracíclicos serão necessários, uma vez superada a epidemia. É preciso agir com urgência, fazer chegar o auxílio assistencial diretamente aos necessitados, com o mínimo de formalidades burocráticas.
É aqui que a prisão conceitual do ministro da Economia e de sua equipe se torna um obstáculo insuperável. Mal concedem a necessidade imperiosa de expandir a liquidez e de aumentar os gastos, tomados de dissonância cognitiva, entram em pânico. Quem irá pagar essa conta? Por toda parte, em artigos na imprensa, nas videoconferências, a pergunta mais feita no Brasil de hoje é quem irá pagar a conta. Na Europa, o BCE já sancionou uma expansão monetária superior a 6% do PIB, mas a longa tradição de conservadorismo fiscal da Alemanha ainda resiste à criação de um título de dívida europeu que poderia ajudar aos países periféricos da região.
A França, assim como a Inglaterra pós-Brexit, já entendeu que neste momento a preocupação com a expansão de moeda e dívida não faz sentido. A França aprovou gastos de emergência que chegam a mais de 15% do PIB. O presidente Macron em vídeo-entrevista ao “Financial Times”, sem se referir uma única vez ao “custo fiscal”, disse que se trata de “dinheiro de helicóptero”, uma analogia, criada originalmente por Milton Friedman, para designar a ajuda direta e indiscriminada do Estado através da emissão de moeda.
Numa crise como esta, a perda de renda e da redução do poder aquisitivo pode e deve ser compensada pela transferência de recursos do Estado. As guerras sempre exigiram enormes gastos do Estado, justamente quando a economia sofre com o conflito. A história está cheia de exemplos. Entre 1942 e 1945, anos em que os EUA estiveram envolvidos na Segunda Guerra Mundial, o déficit público foi sempre superior a 15% do PIB, chegando a um pico de 30% em 1943. A dívida pública passou de 40% para mais de 120% do PIB. Embora os EUA, desde então, raramente tenham tido superávit fiscal, a relação dívida-PIB se reduziu até a crise financeira de 2008. A razão é simples: a renda cresceu mais do que a dívida. Dívidas públicas internas não são pagas. São renovadas e se tornam irrelevantes com o crescimento da economia.
À medida que a economia se recupera, mesmo uma dívida aparentemente alta se torna perfeitamente administrável. Trata-se de pura aritmética. Se o crescimento da renda é maior do que o serviço da dívida, a relação dívida-PIB não terá uma trajetória explosiva. A mesma aritmética serve para demonstrar que se a economia encolher, independentemente do equilíbrio fiscal, a relação dívida-PIB irá aumentar. A dívida interna brasileira, antes da crise, era da ordem de 75% do PIB. Ainda que com superávit primário, algo praticamente impossível dada a queda inexorável da receita, se a economia vier a encolher 20% nos próximos anos, o que infelizmente não é tão improvável, sobretudo se o Estado tiver as mãos atadas pelo dogmatismo fiscal, a dívida iria para mais de 90% do PIB.
O endividamento público vai crescer e muito nos próximos anos. Trata-se de uma realidade irreversível. O que não tem remédio, remediado está, já dizia minha avó, mas nesse caso existe remédio. Basta impedir que a economia se desarticule numa crise humanitária sobreposta a uma depressão profunda. Basta que, superada a epidemia, o setor privado não tenha se desarticulado e o Estado possa voltar a investir. Com um programa de investimentos públicos e privados inteligente, com um Estado eficiente, a favor do cidadão e indutor da produtividade, a economia sairá da crise e a dívida interna perderá importância.
Mas a obsessão fiscalista agora ameaça, além da economia, provocar uma crise na federação. Os Estados e os municípios, como não emitem moeda própria, estão obrigados a gastar apenas o que arrecadam. Com a queda da receita provocada pela parada da economia, sem ajuda da União, em poucos meses ficarão impossibilitados de prestar serviços básicos.
A aprovação na Câmara de que as transferências da União tenham como base a arrecadação do ano passado, mais do que razoável nessas circunstâncias, foi taxada de “pauta bomba” pelos cruzados do fiscalismo. Em disputa com os governadores, o presidente da República, provavelmente insuflado pela sua equipe econômica, entendeu a iniciativa do Legislativo como uma provocação. Partiu para o ataque ao Congresso e às instituições democráticas. Numa crise dessa magnitude, com um presidente desequilibrado, o dogmatismo fiscal já não ameaça apenas a economia. É hora de parar de repetir chavões anacrônicos e de repensar, caso contrário quem vai acabar pagando a conta é a democracia.
André Lara Resende é economista



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe