O dogmatismo fiscal não ameaça só a economia: é hora de parar de repetir chavões anacrônicos e de repensar, senão quem pagará é a democracia, diz o economista em artigo publicado sexta, 24/4, no jornal Valor Econômico e reproduzido abaixo, na íntegra. Uma excelente reflexão, vale a leitura.
Até os mais empedernidos defensores do equilíbrio fiscal - e no Brasil de hoje eles dão as cartas - reconhecem que diante da crise é preciso que o Estado gaste para evitar uma verdadeira catástrofe humanitária. Mas como foram pegos no contrapé, no meio de uma cruzada para equilibrar as contas públicas, para salvar o Tesouro do cerco dos infiéis, perderam o rumo. Não apenas a agenda do ministro Paulo Guedes, mas também o discurso da esmagadora maioria dos analistas, tinha se transformado em samba de uma nota só: eliminar o déficit.
Tudo mais seria irrelevante ou viria como consequência. Investimentos em saneamento, segurança, saúde, educação e infraestrutura? Impossível, não há como financiá-los. Um programa de metas para sair da armadilha da estagnação? Desnecessário, bastaria aprovar as reformas que o investimento externo e a confiança garantiriam o novo milagre brasileiro. Não foi o que se viu. Aprovada a reforma da Previdência, aquela que seria a mãe de todas as reformas “estruturantes” segundo seus preconizadores, a economia continuou anêmica e o desemprego, aberto. É claro que tanto o ministro como o seu coro na mídia agora sustentam o contrário, que a economia estava pronta para decolar, quando foi “atingida por um meteoro”.
A crise provocada pelo coronavírus é de fato inusitada. A parada da economia, tanto pelo lado da demanda como da oferta, não tem precedentes. Ainda por cima é uma crise sincronizada, que atinge praticamente todas as economias no mundo. Nunca se viu nada parecido. Para amenizar o drama humano e evitar uma depressão profunda, o Estado precisa prover um auxílio de emergência. O Banco Central deve emitir para injetar liquidez no sistema bancário e evitar que a parada da economia se transforme também numa crise financeira.
Como o sistema bancário está, compreensivelmente, assustado com a possibilidade de uma onda de quebras e inadimplência, a injeção de liquidez não será repassada para a economia real. É preciso fazer o auxílio chegar diretamente às empresas e às pessoas necessitadas. Nesse momento, o aumento dos gastos públicos é essencialmente uma ajuda de emergência, para aliviar o sofrimento e impedir quebras generalizadas, mas os investimentos contracíclicos serão necessários, uma vez superada a epidemia. É preciso agir com urgência, fazer chegar o auxílio assistencial diretamente aos necessitados, com o mínimo de formalidades burocráticas.
É aqui que a prisão conceitual do ministro da Economia e de sua equipe se torna um obstáculo insuperável. Mal concedem a necessidade imperiosa de expandir a liquidez e de aumentar os gastos, tomados de dissonância cognitiva, entram em pânico. Quem irá pagar essa conta? Por toda parte, em artigos na imprensa, nas videoconferências, a pergunta mais feita no Brasil de hoje é quem irá pagar a conta. Na Europa, o BCE já sancionou uma expansão monetária superior a 6% do PIB, mas a longa tradição de conservadorismo fiscal da Alemanha ainda resiste à criação de um título de dívida europeu que poderia ajudar aos países periféricos da região.
A França, assim como a Inglaterra pós-Brexit, já entendeu que neste momento a preocupação com a expansão de moeda e dívida não faz sentido. A França aprovou gastos de emergência que chegam a mais de 15% do PIB. O presidente Macron em vídeo-entrevista ao “Financial Times”, sem se referir uma única vez ao “custo fiscal”, disse que se trata de “dinheiro de helicóptero”, uma analogia, criada originalmente por Milton Friedman, para designar a ajuda direta e indiscriminada do Estado através da emissão de moeda.
Numa crise como esta, a perda de renda e da redução do poder aquisitivo pode e deve ser compensada pela transferência de recursos do Estado. As guerras sempre exigiram enormes gastos do Estado, justamente quando a economia sofre com o conflito. A história está cheia de exemplos. Entre 1942 e 1945, anos em que os EUA estiveram envolvidos na Segunda Guerra Mundial, o déficit público foi sempre superior a 15% do PIB, chegando a um pico de 30% em 1943. A dívida pública passou de 40% para mais de 120% do PIB. Embora os EUA, desde então, raramente tenham tido superávit fiscal, a relação dívida-PIB se reduziu até a crise financeira de 2008. A razão é simples: a renda cresceu mais do que a dívida. Dívidas públicas internas não são pagas. São renovadas e se tornam irrelevantes com o crescimento da economia.
À medida que a economia se recupera, mesmo uma dívida aparentemente alta se torna perfeitamente administrável. Trata-se de pura aritmética. Se o crescimento da renda é maior do que o serviço da dívida, a relação dívida-PIB não terá uma trajetória explosiva. A mesma aritmética serve para demonstrar que se a economia encolher, independentemente do equilíbrio fiscal, a relação dívida-PIB irá aumentar. A dívida interna brasileira, antes da crise, era da ordem de 75% do PIB. Ainda que com superávit primário, algo praticamente impossível dada a queda inexorável da receita, se a economia vier a encolher 20% nos próximos anos, o que infelizmente não é tão improvável, sobretudo se o Estado tiver as mãos atadas pelo dogmatismo fiscal, a dívida iria para mais de 90% do PIB.
O endividamento público vai crescer e muito nos próximos anos. Trata-se de uma realidade irreversível. O que não tem remédio, remediado está, já dizia minha avó, mas nesse caso existe remédio. Basta impedir que a economia se desarticule numa crise humanitária sobreposta a uma depressão profunda. Basta que, superada a epidemia, o setor privado não tenha se desarticulado e o Estado possa voltar a investir. Com um programa de investimentos públicos e privados inteligente, com um Estado eficiente, a favor do cidadão e indutor da produtividade, a economia sairá da crise e a dívida interna perderá importância.
Mas a obsessão fiscalista agora ameaça, além da economia, provocar uma crise na federação. Os Estados e os municípios, como não emitem moeda própria, estão obrigados a gastar apenas o que arrecadam. Com a queda da receita provocada pela parada da economia, sem ajuda da União, em poucos meses ficarão impossibilitados de prestar serviços básicos.
A aprovação na Câmara de que as transferências da União tenham como base a arrecadação do ano passado, mais do que razoável nessas circunstâncias, foi taxada de “pauta bomba” pelos cruzados do fiscalismo. Em disputa com os governadores, o presidente da República, provavelmente insuflado pela sua equipe econômica, entendeu a iniciativa do Legislativo como uma provocação. Partiu para o ataque ao Congresso e às instituições democráticas. Numa crise dessa magnitude, com um presidente desequilibrado, o dogmatismo fiscal já não ameaça apenas a economia. É hora de parar de repetir chavões anacrônicos e de repensar, caso contrário quem vai acabar pagando a conta é a democracia.
André Lara Resende é economista
Até os mais empedernidos defensores do equilíbrio fiscal - e no Brasil de hoje eles dão as cartas - reconhecem que diante da crise é preciso que o Estado gaste para evitar uma verdadeira catástrofe humanitária. Mas como foram pegos no contrapé, no meio de uma cruzada para equilibrar as contas públicas, para salvar o Tesouro do cerco dos infiéis, perderam o rumo. Não apenas a agenda do ministro Paulo Guedes, mas também o discurso da esmagadora maioria dos analistas, tinha se transformado em samba de uma nota só: eliminar o déficit.
Tudo mais seria irrelevante ou viria como consequência. Investimentos em saneamento, segurança, saúde, educação e infraestrutura? Impossível, não há como financiá-los. Um programa de metas para sair da armadilha da estagnação? Desnecessário, bastaria aprovar as reformas que o investimento externo e a confiança garantiriam o novo milagre brasileiro. Não foi o que se viu. Aprovada a reforma da Previdência, aquela que seria a mãe de todas as reformas “estruturantes” segundo seus preconizadores, a economia continuou anêmica e o desemprego, aberto. É claro que tanto o ministro como o seu coro na mídia agora sustentam o contrário, que a economia estava pronta para decolar, quando foi “atingida por um meteoro”.
A crise provocada pelo coronavírus é de fato inusitada. A parada da economia, tanto pelo lado da demanda como da oferta, não tem precedentes. Ainda por cima é uma crise sincronizada, que atinge praticamente todas as economias no mundo. Nunca se viu nada parecido. Para amenizar o drama humano e evitar uma depressão profunda, o Estado precisa prover um auxílio de emergência. O Banco Central deve emitir para injetar liquidez no sistema bancário e evitar que a parada da economia se transforme também numa crise financeira.
Como o sistema bancário está, compreensivelmente, assustado com a possibilidade de uma onda de quebras e inadimplência, a injeção de liquidez não será repassada para a economia real. É preciso fazer o auxílio chegar diretamente às empresas e às pessoas necessitadas. Nesse momento, o aumento dos gastos públicos é essencialmente uma ajuda de emergência, para aliviar o sofrimento e impedir quebras generalizadas, mas os investimentos contracíclicos serão necessários, uma vez superada a epidemia. É preciso agir com urgência, fazer chegar o auxílio assistencial diretamente aos necessitados, com o mínimo de formalidades burocráticas.
É aqui que a prisão conceitual do ministro da Economia e de sua equipe se torna um obstáculo insuperável. Mal concedem a necessidade imperiosa de expandir a liquidez e de aumentar os gastos, tomados de dissonância cognitiva, entram em pânico. Quem irá pagar essa conta? Por toda parte, em artigos na imprensa, nas videoconferências, a pergunta mais feita no Brasil de hoje é quem irá pagar a conta. Na Europa, o BCE já sancionou uma expansão monetária superior a 6% do PIB, mas a longa tradição de conservadorismo fiscal da Alemanha ainda resiste à criação de um título de dívida europeu que poderia ajudar aos países periféricos da região.
A França, assim como a Inglaterra pós-Brexit, já entendeu que neste momento a preocupação com a expansão de moeda e dívida não faz sentido. A França aprovou gastos de emergência que chegam a mais de 15% do PIB. O presidente Macron em vídeo-entrevista ao “Financial Times”, sem se referir uma única vez ao “custo fiscal”, disse que se trata de “dinheiro de helicóptero”, uma analogia, criada originalmente por Milton Friedman, para designar a ajuda direta e indiscriminada do Estado através da emissão de moeda.
Numa crise como esta, a perda de renda e da redução do poder aquisitivo pode e deve ser compensada pela transferência de recursos do Estado. As guerras sempre exigiram enormes gastos do Estado, justamente quando a economia sofre com o conflito. A história está cheia de exemplos. Entre 1942 e 1945, anos em que os EUA estiveram envolvidos na Segunda Guerra Mundial, o déficit público foi sempre superior a 15% do PIB, chegando a um pico de 30% em 1943. A dívida pública passou de 40% para mais de 120% do PIB. Embora os EUA, desde então, raramente tenham tido superávit fiscal, a relação dívida-PIB se reduziu até a crise financeira de 2008. A razão é simples: a renda cresceu mais do que a dívida. Dívidas públicas internas não são pagas. São renovadas e se tornam irrelevantes com o crescimento da economia.
À medida que a economia se recupera, mesmo uma dívida aparentemente alta se torna perfeitamente administrável. Trata-se de pura aritmética. Se o crescimento da renda é maior do que o serviço da dívida, a relação dívida-PIB não terá uma trajetória explosiva. A mesma aritmética serve para demonstrar que se a economia encolher, independentemente do equilíbrio fiscal, a relação dívida-PIB irá aumentar. A dívida interna brasileira, antes da crise, era da ordem de 75% do PIB. Ainda que com superávit primário, algo praticamente impossível dada a queda inexorável da receita, se a economia vier a encolher 20% nos próximos anos, o que infelizmente não é tão improvável, sobretudo se o Estado tiver as mãos atadas pelo dogmatismo fiscal, a dívida iria para mais de 90% do PIB.
O endividamento público vai crescer e muito nos próximos anos. Trata-se de uma realidade irreversível. O que não tem remédio, remediado está, já dizia minha avó, mas nesse caso existe remédio. Basta impedir que a economia se desarticule numa crise humanitária sobreposta a uma depressão profunda. Basta que, superada a epidemia, o setor privado não tenha se desarticulado e o Estado possa voltar a investir. Com um programa de investimentos públicos e privados inteligente, com um Estado eficiente, a favor do cidadão e indutor da produtividade, a economia sairá da crise e a dívida interna perderá importância.
Mas a obsessão fiscalista agora ameaça, além da economia, provocar uma crise na federação. Os Estados e os municípios, como não emitem moeda própria, estão obrigados a gastar apenas o que arrecadam. Com a queda da receita provocada pela parada da economia, sem ajuda da União, em poucos meses ficarão impossibilitados de prestar serviços básicos.
A aprovação na Câmara de que as transferências da União tenham como base a arrecadação do ano passado, mais do que razoável nessas circunstâncias, foi taxada de “pauta bomba” pelos cruzados do fiscalismo. Em disputa com os governadores, o presidente da República, provavelmente insuflado pela sua equipe econômica, entendeu a iniciativa do Legislativo como uma provocação. Partiu para o ataque ao Congresso e às instituições democráticas. Numa crise dessa magnitude, com um presidente desequilibrado, o dogmatismo fiscal já não ameaça apenas a economia. É hora de parar de repetir chavões anacrônicos e de repensar, caso contrário quem vai acabar pagando a conta é a democracia.
André Lara Resende é economista
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