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Jean Tirole, Prêmio Nobel de Economia, aponta saídas para a crise

O jornalista Diego Viana entrevistou Jean Tirole, da Escola de Economia de Toulouse, para quem há sinais de mais cooperação e multilateralismo e ao mesmo tempo mais sinais de nacionalismo e fechamento. O resultado da conversa está na reportagem abaixo, publicada no Valor na edição desta sexta, 17/3. Leitura imprescindível.

Passado o impacto da pandemia do novo coronavírus e do confinamento social, o economista francês Jean Tirole diz esperar “que a razão volte”. Prêmio Nobel de Economia de 2014 por suas contribuições sobre concorrência e concentração de poder de mercado, ele afirma estar assustado com a ascensão de políticos populistas e a rejeição à ciência e aos especialistas em geral. Cita o economista turco Daron Acemoglu, do MIT, para afirmar que a humanidade se encontra diante de uma bifurcação: pode escolher o recrudescimento do nacionalismo e da xenofobia, mas também pode optar por dar valor à ciência e ao multilateralismo.
Quando recebeu o Nobel, o professor da Escola de Economia de Toulouse, no Sul da França, decidiu que era hora de se dirigir ao público amplo, cumprindo o que considera um dever democrático dos pesquisadores e especialistas. O resultado é “Economia do Bem Comum” (Zahar), em que recorre à filosofia do americano John Rawls e a 40 anos de seus próprios trabalhos para mostrar como a economia de mercado e regulamentação estatal se combinam para promover a prosperidade e o bem-estar.
“As pessoas pensam que o mercado e a globalização são a mesma coisa que ‘laissez-faire’. Mas não são. São uma liberdade combinada com intervenção pública, sempre que há falha de mercado”, afirma o economista. Trabalhando sobre externalidades negativas e concentração de poder de mercado, o economista desenvolveu propostas de legislação e regulamentação, algumas das quais foram adotadas pela Comissão Europeia e pelo governo francês.
 
As democracias contemporâneas falham, diz Tirole, ao se concentrar em políticas de curto prazo, neste momento em que os maiores desafios são de longo prazo, como a mudança climática e as políticas de saúde. Sua maior preocupação atual, afirma, é que a recessão causada pela pandemia possa arrefecer os esforços para lidar com esses temas mais amplos. A solução para reintroduzir o longo prazo nas democracias passaria por agências independentes e internacionais, funcionando como o Comitê de Supervisão Bancária de Basileia.
Aos 66 anos, Tirole defendeu seu doutorado no MIT sob orientação de outra estrela acadêmica, o Prêmio Nobel Eric Maskin. O economista concedeu a seguinte entrevista:
Valor: Em artigo sobre as consequências da pandemia, o senhor faz uma comparação com o pós-Guerra, depois de 1945. Esse foi o período em que surgiram as instituições de Bretton Woods, o Plano Marshall e a ONU. Estamos chegando a algo igualmente transformador?
Jean Tirole: Esperamos que sim. Estamos, sim, numa guerra, mas não tem nada a ver com as guerras precedentes. Ou mesmo uma crise como a de 1929. Em 1945, o sistema produtivo estava destruído. Hoje, se guardarmos os assalariados nas empresas e mantivermos as empresas vivas por meio de subvenções, o sistema produtivo estará intacto. A economia pode dar a partida novamente, ao menos em parte, assim que terminar o confinamento. Em 1945, a infraestrutura estava destruída. As fábricas também. Naquele momento, na Europa, nossos ancestrais fizeram algo notável. Disseram: “Chega disso”. Vamos tentar viver todos juntos. E criaram a Comunidade Europeia. As gerações que não viveram esse momento parecem ter esquecido o que isso significa e se tornaram antieuropeias. Querem a Europa, sim, mas com a condição de que a Europa não lhes imponha nada.
Valor: A pressão da crise vai levar a mudanças?
Tirole: Depois de uma guerra, as pessoas se dão conta, um pouco, de que há problemas. Mas agora está se passando algo confuso. Veja, por exemplo, o caso das disputas em torno de equipamentos sanitários: máscaras, respiradores, ventiladores. Falta coordenação em saúde. Donald Trump e outros falam em “doença chinesa”. As pessoas não estão muito razoáveis. Seria necessário caminhar para o multilateralismo. Precisamos de instituições multilaterais. Mas essas instituições vêm sofrendo golpes há anos, com a ascensão do populismo. A situação pode continuar se degradando. Trump chegou a falar em parar as contribuições para a OMS! [Nesta semana, o presidente determinou a suspensão] A situação é tal que se generalizou o cada um por si. E agora estão falando em protecionismo e relocalização dos empregos, o “reshoring”. Em parte, vai ser necessário voltar a produzir localmente alguns bens essenciais em tempos de crise, como a proteção sanitária. Mas não é o caso da maior parte dos bens.
Para Tirole, economia de mercado não é “laissez-faire”: o mercado tem falhas e a regulamentação do Estado tem que ser forte
Valor: Como o senhor analisa as projeções para o pós-pandemia?
Tirole: Há pelo menos quatro hipóteses de saída da crise e provavelmente o que vai ocorrer é uma combinação delas. A primeira é que os países simplesmente reembolsem as dívidas, consumindo menos e gerando superávits primários. Isso exigiria grandes esforços. A segunda possibilidade seria simplesmente deixar de pagar a dívida. Nesse caso, a confiança no país em questão seria erodida. E também significaria que o país teria de equilibrar imediatamente seu orçamento. Mas nos próximos anos vai ser muito difícil equilibrar o orçamento, porque vai ser preciso pagar as despesas correntes, honrar as garantias que foram dadas, consertar os hospitais e assim por diante.
Valor: Uma alternativa muito discutida é criar impostos temporários.
Tirole: Criar impostos excepcionais é a terceira possibilidade. Poderiam ser sobre os indivíduos ou os bancos. No Brasil, talvez não, mas na Europa seria difícil subir a taxação dos bancos, que já estão frágeis. Além disso, os métodos tradicionais de taxar os bancos, que chamamos de repressão financeira, implicam um aumento de risco para os bancos. Os impostos excepcionais sobre os indivíduos certamente teremos, a questão é a que nível. As pessoas mais ricas certamente vão pagar impostos excepcionais, mas isso não traz tanto dinheiro assim. Seria preciso taxar as classes médias, mas isso seria menos popular. Nos EUA é diferente. Eles cobram muito menos impostos, sobretudo dos mais ricos.
Valor: E a quarta possibilidade?
Tirole: Seria usar o Banco Central para comprar a dívida. Isso poderia gerar inflação, como depois da Segunda Guerra. Mas não é certo que essa inflação aconteça, como vimos em 2008, quando os bancos centrais compraram títulos do Tesouro, por exemplo na zona do euro. O afrouxamento monetário não criou inflação, porque os agentes econômicos não usaram esse dinheiro para consumir. E o que acontecerá desta vez? Não sei.
Valor: Seria o caso dos “coronabonds” da Europa?
Tirole: Os “coronabonds” são uma quinta possibilidade, específica da Europa. Os eurotítulos seriam emitidos em conjunto pelos diferentes Estados, o que é outra forma de solidariedade. Não creio muito nessa saída. Pode haver um pouco, mas não com muita amplitude.
Valor: A recusa em implementar esses títulos é interpretada como sintoma da falta de integração europeia. O continente está falhando novamente?
Tirole: Vale lembrar que não é culpa da Itália e da Espanha terem sido atingidas pelo coronavírus. É o tipo de coisa contra a qual deveria haver proteção. Isso justifica a solidariedade. O problema é que os países da Europa do Sul estão muito endividados, enquanto os do Norte têm menos dívidas. De fato, o endividamento público vai aumentar muito. É normal. Mas isso vai nos levar a um estado em que um ataque especulativo causaria perigo. Sem solidariedade, havendo um ataque à Itália, ela vai estar em grande dificuldade. Com solidariedade, não haveria um ataque à Itália em particular, mas poderia haver um ataque à zona do euro em geral. A Alemanha, apesar de seu endividamento líquido baixo, também seria atacada. Se a Itália entrar em default, a Alemanha deverá fechar esse buraco, com a França e os outros países. É preciso proteger a Itália, mas isso também tem inconvenientes, porque abre o flanco para um ataque à zona do euro como um todo. E é por isso que os alemães não querem os “coronabonds”, que seriam bons para o Sul, mas o Norte resiste.
Valor: Então a crise amplifica e explicita os problemas que já conhecíamos desde a última crise.
Tirole: Sem dúvida. Exceto que esta crise é maior do que a financeira. E os Estados estão mais endividados do que em 2008. Não temos Europa suficiente. A Europa deveria ter um orçamento comum e instituições comuns. Mas os europeus não são nem capazes de entrar em acordo sobre como será o fim do confinamento. Falta Europa. É uma pena. Além disso, formou-se uma divergência forte entre o Norte e o Sul. Precisaríamos ter solidariedade total, mas o risco é que toda solidariedade esteja comprometida. Dito isso, acredito que a solidariedade vai passar muito pelo BCE.
Valor: Seria o caso de ter mecanismos que se ativariam automaticamente no caso de eventos extremos como o atual, já que é esperado que outros venham, sobretudo na área do clima?
Tirole: Não sei dizer, mas certamente precisamos de mecanismos multilaterais mais desenvolvidos, que permitissem reagir quase automaticamente. No entanto, veja o caso da mudança climática, em que o Brasil e os Estados Unidos não têm sido exemplares no tema e a Europa tarda a impor a tarifa do carbono. Tenho dito há 25 anos que não estamos fazendo nada pelo clima e teríamos de agir. Mas cada país diz: não sou eu que vou pagar. É uma catástrofe. O multilateralismo não está funcionando muito bem. Mesmo a COP 21, em Paris [2015], não foi um sucesso, porque não houve nenhum engajamento obrigatório, nada de concreto. Foram promessas vagas. Precisamos de mais multilateralismo e cooperação entre os países, na saúde, no clima, em finanças, em muitos outros campos. E não está acontecendo. Ao contrário.
Valor: A pandemia suscitou um debate sobre o papel do privado e do Estado na saúde. Os Estados Unidos são considerados problemáticos porque o privado tem um papel grande demais, mas em outros o papel do público é maior, mas houve cortes. O que a crise nos ensina?
Tirole: Há um lado da questão que é doméstico, com a organização da saúde. É incrível que nos Estados Unidos exista esse debate sobre o acesso universal à saúde. É um dos direitos de base dos cidadãos ter acesso universal à saúde, assim como o acesso à educação. No livro, uso o conceito de véu da ignorância, ou seja, como iríamos querer que a sociedade fosse, se não soubéssemos o lugar que teríamos nela. Claramente, queremos alguma segurança para o caso de termos câncer ou o coronavírus. Queremos também ter acesso à educação, especialmente se nascemos num meio desfavorecido. Há direitos fundamentais que são, para resumir, políticas de segurança contra as vicissitudes da vida, sobretudo aquelas pelas quais não somos responsáveis. Na Europa isso é razoavelmente entendido. Há sistemas universais, o que não quer dizer que sejam igualitários. Nos Estados Unidos, a ideia de que a saúde seja para todos ainda não é bem assentada. Trump buscou desmontar o sistema estabelecido por [Barack] Obama, por exemplo. É catastrófico.
Valor: E o lado internacional?
Tirole: Vejamos a Organização Mundial da Saúde, por exemplo. É uma organização excessivamente política e ao mesmo tempo não tem muito poder. Dão conselhos, estabelecem as melhores práticas, e isso é muito útil. Mas não têm muito poder em relação às políticas que os Estados seguem. Com o coronavírus, praticamente não houve coordenação entre os Estados. Deveríamos caminhar para um sistema parecido com o comitê de Basileia para os bancos. Ele decide sobre algumas exigências mínimas, difunde as boas práticas de supervisão e examina o que é feito nos países para apontar quem está fazendo compliance e quem não está. Como na questão da democracia. Para que ela funcione, é preciso que os cidadãos estejam informados. Se seus bancos são muito frágeis e correm o risco da falência, e também se o Estado está preparado para uma epidemia. Mas nenhum cidadão no mundo, praticamente, tinha informação sobre a preparação para uma epidemia.
Valor: E agora os Estados precisam tomar medidas às pressas.
Tirole: Sim, seja em relação a máscaras e respiradores, seja em relação a isso que estamos debatendo muito agora: a capacidade de traçar o percurso do vírus. O “tracking” é a melhor e a pior das coisas. Muito útil para manter a epidemia sob controle, mas pode ser liberticida também. É preciso debater sobre isso. É preciso ter instituições à altura. De repente, a Europa está descobrindo esse tipo de vigilância. Não tivemos nenhum debate democrático sobre isso. Esse é um problema comum nas democracias: a fixação no curto prazo. A preparação para crises sanitárias, o aquecimento global, a educação e a desigualdade são problemas de longo prazo. Podemos continuar um pouquinho mais, e isso não vai mudar muito. Mas, se a gente continua um pouquinho mais, depois é mais um pouquinho. De repente, estamos frente a frente com a mudança climática, com uma educação lamentável, dívidas públicas enormes. Todos os problemas de longo prazo são mal administrados pelas democracias, infelizmente.
Valor: Como introduzir o longo prazo na democracia?
Tirole: A única maneira de conseguir uma boa administração dos problemas de longo prazo é por meio de agências independentes, que avaliem o desempenho dos Estados nesses campos e difundam de maneira suficientemente ampla nas populações as informações: veja, seu Estado está cometendo erros; seu Estado está fornecendo informações catastróficas em comparação ao país vizinho etc. A população precisa ter informação para que a democracia funcione, porque ela deve ser ativa e se apropriar do debate público. Caso contrário, os governos começam a se desviar, e isso resulta em uma desconfiança da população em relação a seus governos. Hoje essa desconfiança é muito forte, e ela cresce muito com a crise. Um dos maiores prejuízos da crise financeira foi a perda de confiança no sistema, nos Estados, nas políticas. Isso levou aos movimentos populistas. De um lado, há interesses dos cidadãos pela coisa pública, mas perdeu-se interesse pelo debate. Isso, combinado com a desconfiança das políticas e do Estado, é devastador. Acabamos nas mãos de homens providenciais, que vendem sonhos.
Valor: O senhor começa o livro dizendo que o triunfo da economia de mercado foi recebido com fatalismo. Em que consiste?
Tirole: É um fatalismo pela ausência, por assim dizer. Quando as outras propostas, que muita gente via como alternativa à economia de mercado, resultaram em totalitarismo em maior ou menor grau, tiveram um fracasso tão previsível e tão forte, faltou educar as pessoas. Faltou explicar que uma economia de mercado traz uma série de benefícios, mas também tem inconvenientes. Ela permite o conforto material, crescimento, uma certa democracia - embora não necessariamente, já que existem economias de mercado que funcionam sem democracia, como a China. O mercado tem muitas falhas. O erro foi passar a impressão de que a economia de mercado seria uma panaceia. Disseram aos alemães do Leste que, com o mercado, de repente o mundo seria maravilhoso. É verdade que a vida melhorou, mas não os preparamos para entender que é preciso lidar com as falhas de mercado. Parte do meu livro é justamente explicar quais são essas falhas e como lidar com elas.
Valor: Esse fatalismo persiste até hoje?
Tirole: Ouço muita gente dizendo que é preciso mudar completamente de sociedade. Então perguntamos que tipo de sociedade querem, e não é muito claro. Falam em parar a globalização. Isso significa que os trabalhadores das empresas exportadoras vão ficar desempregados. Significa que as coisas compradas da China vão custar mais caro. Justamente no momento em que há uma recessão, seria uma segunda recessão resultante do aumento dos preços dos bens de consumo. A questão não é globalização ou não, nem mercado ou não. A solução é por meio da globalização e do mercado. Mas ambos têm efeitos perversos que precisam ser combatidos. As pessoas pensam que o mercado e a globalização são a mesma coisa que “laissez-faire”. Mas não são. São uma liberdade combinada com intervenção pública, sempre que há falha de mercado.
Valor: Como se chega a esse meio-termo?
Tirole: A questão é examinar as falhas de mercado para compensá-las. São as externalidades, o meio ambiente, as pandemias, a falta de vacinação. É a concentração de mercado. Trabalho muito com direito de concorrência e regulamentação, motivado pelo poder de monopólio. Desigualdade, acesso à saúde. Se não regulamentarmos, não teremos acesso à saúde. A globalização tem muitos bons aspectos, mas outros maus. Se não cuidarmos desses maus aspectos, tem uma reação da população contra a globalização. As pessoas que perderam seus trabalhos no Meio Oeste americano estão sem sustento financeiro e não podem mudar de setor. É um exemplo entre outros. Cabe ao Estado resolver esses problemas. O Estado deve ser um árbitro, um regulador, mas não um ator. Esta é outra coisa que as pessoas não entendem.
Valor: Na mesma época do triunfo do mercado, não só a alternativa soviética fracassou, mas a social-democracia perdeu espaço. O que o senhor está propondo é uma versão atualizada desse sistema?
Tirole: Sim, uma versão atualizada da social-democracia. Temos necessidade da rede de proteção para as pessoas: trabalho, saúde, educação etc. Uma certa redistribuição também. Por outro lado, o papel do Estado mudou. Ele é mais regulador, menos produtor. Há boas razões para isso. Na era da social-democrata, os “30 anos gloriosos”, o Estado se tornou responsável por muito da produção, mas era algo relativamente simples. Era um período de reconstrução depois da guerra. Para as empresas, era um tempo de alcançar os Estados Unidos, onde o setor privado estava muito à frente. Nesse cenário, uma economia um pouco planejada até que não vai mal. Numa economia moderna, em que é preciso inovar, no sentido amplo, não só tecnologias de ponta, mas também inovações comerciais, modelos de negócios, o Estado não é muito bom. Ele é bom para seguir um roteiro claramente definido, não para se ajustar a novos ambientes. Por isso, o crescimento foi rápido na Europa nos 30 anos pós-Guerra e se tornou lento depois. Atingimos os limites do Estado planejador. Precisamos passar a uma etapa em que o Estado seja um regulador forte.
Valor: Passar de uma escrita para especialistas a uma escrita para o público amplo não é uma tarefa trivial. A linguagem e o tom são outros. Como foi esse processo para o senhor?
Tirole: De fato, não é uma tarefa trivial. O grande público é perfeitamente capaz de entender um livro de economia, mas a maneira de explicar tem que ser diferente. É preciso preencher lacunas que podem ficar abertas ao escrever para especialistas. Também é preciso fugir do jargão que usamos entre nós. Mas hoje esse esforço é indispensável. A democracia não funciona se os especialistas não se comunicam e não são ouvidos. Temos uma onda de populismo ao redor do mundo, e não é por acaso que todos esses populistas são contra a ciência. Eles só podem ter o apoio de uma maioria se a população não tem consciência do que está em jogo. Nós, especialistas de qualquer disciplina, temos de comunicar melhor nossos saberes para podermos ter uma democracia mais viva.
Valor: Houve uma boa recepção do livro?
Tirole: Minha impressão é que existia uma demanda reprimida por livros como este. Quando saiu na França, fiquei surpreso de ver que se tornou um best-seller. Eu esperava vender poucas cópias. Isso mostra que havia um desejo de entender coisas que, a princípio, são consideradas estranhas. As pessoas parecem pensar que a economia é enfadonha. Mas muitas pessoas têm sede de saber, estão dispostas a aprender em muitos campos, incluindo a economia.
Valor: No tema da concorrência, o senhor analisa a dificuldade que haveria para dividir as grandes empresas de tecnologia, a exemplo do que foi feito no início do século XX. Dividi-las seria desejável?
Tirole: Desde que publiquei o livro, refinei um pouco meu ponto de vista. De fato, não podemos regulamentar esse setor como foi feito com empresas de eletricidade e ferrovias. Os produtos e a tecnologia mudam muito rápido. Além disso, as empresas são globais. As ferrovias, telecomunicações, eletricidade, eram nacionais. Como regulamentar uma empresa internacional? Poderíamos desmembrá-las, mas isso também é difícil, embora mais interessante. Como a tecnologia evolui rápido, teríamos que identificar os insumos essenciais, o que não se pode duplicar. Seria um desafio. O mais verossímil seria usar o direito da concorrência, mas modificado.
Valor: Em que sentido?
Tirole: Não seria o caso de mudar as leis, mas a maneira de aplicá-las. A ideia seria, para o setor da tecnologia, ter algo intermediário entre um regulador e o direito da concorrência. A agência de concorrência coletaria continuamente dados sobre as empresas de tecnologia, para poder agir rápido. Ela teria mais poder de impor medidas que impeçam, por exemplo, uma empresa de tecnologia de fazer predação sobre um rival. O essencial seria intervir cedo no processo, para impedir certos comportamentos. Isso poderia evitar que as grandes empresas de tecnologia comprassem seus futuros competidores. O que proponho é inverter o ônus da prova: dizer que se o Google e o Facebook compram startups, cabe a elas mostrar que é pró-competição e não anticoncorrencial. Hoje, quem tem de provar é o responsável pela concorrência.
Valor: O senhor mencionou a defasagem entre a jurisdição das autoridades de concorrência e a atuação global das empresas. É um problema não só na concorrência: também na taxação, na finança e outros.
Tirole: De fato. No caso da finança, há um certo grau de cooperação internacional, embora Donald Trump esteja tentando quebrá-la. O comitê de Basileia faz um trabalho útil. Não é o suficiente, mas é bom. Sobre os impostos e paraísos fiscais, tem sido um problema mesmo no interior da Europa. Quando digo que não temos Europa suficiente, esse é um exemplo. Mesmo aqui, não conseguimos entrar em acordo sobre os paraísos fiscais. No direito da concorrência, precisamos retirar seu caráter político. Em casos que envolvem empresas europeias e americanas, por exemplo, as autoridades muitas vezes tentam colaborar, compartilhando informações. Mas o caso chega na esfera política, e uma ligação telefônica entre Trump e os líderes europeus interrompe tudo. Acaba a colaboração internacional.
Valor: O senhor comenta que a pandemia pode dar impulso às medidas contra a mudança climática. De onde vem esse impulso?
Tirole: As políticas antiaquecimento são difíceis de colocar em prática quando a população não está de acordo. Tivemos a experiência, na França, da taxa de carbono, que era boa, embora tivesse muitos furos, como um queijo suíço. Agricultores, companhias aéreas, táxis e motoristas de caminhão não pagariam. Com os coletes amarelos, vimos que a população se opunha. É preciso que a população se aproprie desse tema. Meu medo é que, ao sairmos desta crise sanitária com uma enorme recessão e o poder de compra diminuído, será o momento de dizer às pessoas, como temos mesmo de dizer, que vamos combater o aquecimento global. Elas podem responder que só se interessam pelo curto prazo. É preciso fazê-las entender que não temos mais tempo de atrasar o combate à mudança climática. Se não fizermos agora, vai ser uma catástrofe. Exigir esforços de pessoas que já estão fazendo esforços é difícil. Espero, pelo menos, que possamos aproveitar a crise para mudar as mentalidades. Tomar o coronavírus como um exemplo em que não preparamos o futuro. Estávamos despreparados para esta crise sanitária. É claro que não podemos nos preparar para todos os vírus, mas podemos fazer melhor do que fizemos. É preciso parar de viver no curto prazo.
Valor: No livro, o senhor afirma que o direito do trabalho deve estar focalizado em proteger o trabalhador, não o emprego. Como é essa proteção no século XXI, tempo de relações trabalhistas mais flexíveis?
Tirole: O Estado não tem informação, não é competente para saber quais empregos se justificam. É melhor proteger os trabalhadores, que não necessariamente são responsáveis por sofrerem demissão, em vez de proteger o emprego, o que custaria caro à sociedade. A excessiva flexibilização, porém, é má compreensão da economia de mercado, como se ela fosse “laissez-faire” completo. Como nos Estados Unidos, na Inglaterra e em alguns países emergentes, que não protegem os assalariados e os empregadores podem fazer o que quiser. Até recentemente, ao contrário, na França e outros países, o Estado estava por todo lado, decidindo se a empresa podia demitir ou deixar de demitir um empregado. Mesmo se não houvesse demanda pelo produto que ele fabricava, era visto como anormal mandá-lo embora. Mesmo se fosse incompetente ou não tivesse mais trabalho na empresa, um juiz intervinha para impedir a demissão, o que não faz o menor sentido. Há uma alternativa intermediária, nem o “laissez-faire”, muito ruim para o assalariado, nem o intervencionismo absoluto.
Valor: De que se trata?
Tirole: [O economista] Olivier Blanchard e eu propusemos, há 20 anos, um sistema “bonus/malus”, parecido com o princípio do poluidor pagador, que consiste em responsabilizar a empresa pelas consequências da demissão. Isso é importante em um país como a França, onde as empresas são muito pouco responsabilizadas. Emmanuel Macron adotou o “bonus/malus” na França, e penso que pode ser adotado em todos os países. Responsabilizando a empresa, ela é forçada a pensar duas vezes antes de mandar alguém embora, mas ao mesmo tempo tem uma certa flexibilidade. Quando é indispensável, pode-se dispensar o empregado. Caso contrário, o emprego é mantido.



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