Trump fala de uma guerra contra “um inimigo invisível”, e aquele inimigo é justamente o vírus da ignorância e do desconhecimento que ele e seu amigão Bolsonaro estão propagando, escreve o jornalista norte americano em artigo publicado em 24/4 no site da revista Época. Abaixo, na íntegra.
Pela primeira vez desde que irrompeu a pandemia de coronavírus, estou com medo. Muito medo. Não me preocupo tanto com minha própria segurança física, embora, como toda pessoa sensata neste momento de perigo mundial, eu esteja atuando com prudência. Mas temo, sim, pelo futuro de meu país, assolado não apenas pelo vírus, mas também por um surto de comportamento irracional e atitudes completamente sem lógica.
É inexplicável. Os Estados Unidos são o país mais rico na história. Temos um sistema educacional que é a inveja do mundo, nossa taxa de alfabetização também é uma das mais altas, e temos meios de comunicação que permeiam nosso cotidiano com informações precisas sobre medicina e ciência. Não somos um país subdesenvolvido, movido a base da superstição ou crenças primitivas. Mesmo assim, milhões de americanos foram infectados por wishful thinking — um conceito, acabo de me lembrar, que a gente inventou.
Para mim, o caso mais emblemático é do dono de uma casa noturna em Nova York, no mesmo bairro da classe trabalhadora onde foi filmado Os embalos de sábado à noite. Na primeira semana de março, ele e sua mulher decidiram embarcar num cruzeiro marítimo de duas semanas, com paradas na Espanha. Os filhos do casal aconselharam a cancelar a viagem e ficar em casa, mas o patriarca, seguidor de Donald Trump, desprezou todos os avisos de especialistas e simplesmente ignorou a notícia de outros cruzeiros isolados em alto-mar com centenas de passageiros doentes a bordo. “É tudo fake news,” ele retrucou aos filhos.
Quando o casal voltou para casa, ele adoeceu e foi para o hospital, onde faleceu. A mulher não contraiu a Covid-19, mas ele conseguiu transmitir o vírus para o principal barman da boate, que também faleceu. A família está de luto agora e o bairro todo também, porque o dono do bar era uma figura popular, conhecida por sua generosidade. Eu lamento a morte de todo filho de Deus, mas, ao mesmo tempo, acho importante perguntar: como é que alguém pode fazer uma coisa dessas com uma pandemia mortal se alastrando?
Abundam outros exemplos. A Flórida reabriu suas praias no mesmo dia em que a cifra diária de mortos no estado chegou a um recorde; apesar disso, a afluência de pessoas à orla foi tão maciça que inspirou a hashtag #FloridaMorons (idiotas da Flórida). Para não ficar para trás, a Carolina do Sul seguiu o exemplo, e a Geórgia foi além: não apenas abriu as praias, mas também autorizou restaurantes, teatros, cabeleireiros, academias e até pistas de boliche a reabrirem. Não por acaso, os três são lugares onde uma parcela da população ainda nega o fenômeno do aquecimento global — apesar da erosão rápida da costa e de furacões e inundações cada vez mais fortes — e discorda do ensino da evolução nas escolas.
Admito que o americano tende a menosprezar os estados do Sul, do mesmo jeito que alguns brasileiros do Centro-Sul olham para o Nordeste com desdém. Mas, em vários outros estados, supostamente mais “esclarecidos”, estamos presenciando passeatas que exigem a reabertura imediata de escolas, comércio e lazer. Alguns andam fortemente armados e todos estão burlando medidas de quarentena, orgulhando-se de aparecer sem máscara ou luvas e portando cartazes com frases de efeito como “Distanciamento Social = Comunismo”.
Claro que nosso presidente — um homem que durante o eclipse solar de 2017 olhou diretamente para o Sol, dispensando o uso de óculos escuros e contrariando a mais fundamental regra de segurança — não ajuda a corrigir a situação. Ao contrário, ele está fomentando o comportamento ilegal e ilógico e minando as mesmas medidas que sua própria força-tarefa promulga. “Libertem Minnesota!” e “Libertem Michigan!”, tuitou ele na semana passada, como se fosse um insurrecto e não o chefe do governo.
No ano passado, fazendo pesquisas para meu próximo livro, passei o inverno brasileiro no Recife, onde diariamente passava pela Universidade Federal de Pernambuco. Lá, numa parede, vi um grafite que proclamava: “Ciência versus Obscurantismo”. Inicialmente, pensei que a frase fosse dirigida a Jair Bolsonaro. Mas agora entendo que ela tem uma relevância muito mais abrangente. Na verdade, é uma maneira de sintetizar não apenas a batalha que estamos travando agora, mas também a grande luta de nossos tempos.
Trump fala de uma guerra contra “um inimigo invisível”, e aquele inimigo é justamente o vírus da ignorância e do desconhecimento que ele e seu amigão Bolsonaro estão propagando. Porque a burrice também está contagiosa. Já chega. Precisamos mudar de canal.
Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”
Pela primeira vez desde que irrompeu a pandemia de coronavírus, estou com medo. Muito medo. Não me preocupo tanto com minha própria segurança física, embora, como toda pessoa sensata neste momento de perigo mundial, eu esteja atuando com prudência. Mas temo, sim, pelo futuro de meu país, assolado não apenas pelo vírus, mas também por um surto de comportamento irracional e atitudes completamente sem lógica.
É inexplicável. Os Estados Unidos são o país mais rico na história. Temos um sistema educacional que é a inveja do mundo, nossa taxa de alfabetização também é uma das mais altas, e temos meios de comunicação que permeiam nosso cotidiano com informações precisas sobre medicina e ciência. Não somos um país subdesenvolvido, movido a base da superstição ou crenças primitivas. Mesmo assim, milhões de americanos foram infectados por wishful thinking — um conceito, acabo de me lembrar, que a gente inventou.
Para mim, o caso mais emblemático é do dono de uma casa noturna em Nova York, no mesmo bairro da classe trabalhadora onde foi filmado Os embalos de sábado à noite. Na primeira semana de março, ele e sua mulher decidiram embarcar num cruzeiro marítimo de duas semanas, com paradas na Espanha. Os filhos do casal aconselharam a cancelar a viagem e ficar em casa, mas o patriarca, seguidor de Donald Trump, desprezou todos os avisos de especialistas e simplesmente ignorou a notícia de outros cruzeiros isolados em alto-mar com centenas de passageiros doentes a bordo. “É tudo fake news,” ele retrucou aos filhos.
Quando o casal voltou para casa, ele adoeceu e foi para o hospital, onde faleceu. A mulher não contraiu a Covid-19, mas ele conseguiu transmitir o vírus para o principal barman da boate, que também faleceu. A família está de luto agora e o bairro todo também, porque o dono do bar era uma figura popular, conhecida por sua generosidade. Eu lamento a morte de todo filho de Deus, mas, ao mesmo tempo, acho importante perguntar: como é que alguém pode fazer uma coisa dessas com uma pandemia mortal se alastrando?
Abundam outros exemplos. A Flórida reabriu suas praias no mesmo dia em que a cifra diária de mortos no estado chegou a um recorde; apesar disso, a afluência de pessoas à orla foi tão maciça que inspirou a hashtag #FloridaMorons (idiotas da Flórida). Para não ficar para trás, a Carolina do Sul seguiu o exemplo, e a Geórgia foi além: não apenas abriu as praias, mas também autorizou restaurantes, teatros, cabeleireiros, academias e até pistas de boliche a reabrirem. Não por acaso, os três são lugares onde uma parcela da população ainda nega o fenômeno do aquecimento global — apesar da erosão rápida da costa e de furacões e inundações cada vez mais fortes — e discorda do ensino da evolução nas escolas.
Admito que o americano tende a menosprezar os estados do Sul, do mesmo jeito que alguns brasileiros do Centro-Sul olham para o Nordeste com desdém. Mas, em vários outros estados, supostamente mais “esclarecidos”, estamos presenciando passeatas que exigem a reabertura imediata de escolas, comércio e lazer. Alguns andam fortemente armados e todos estão burlando medidas de quarentena, orgulhando-se de aparecer sem máscara ou luvas e portando cartazes com frases de efeito como “Distanciamento Social = Comunismo”.
Claro que nosso presidente — um homem que durante o eclipse solar de 2017 olhou diretamente para o Sol, dispensando o uso de óculos escuros e contrariando a mais fundamental regra de segurança — não ajuda a corrigir a situação. Ao contrário, ele está fomentando o comportamento ilegal e ilógico e minando as mesmas medidas que sua própria força-tarefa promulga. “Libertem Minnesota!” e “Libertem Michigan!”, tuitou ele na semana passada, como se fosse um insurrecto e não o chefe do governo.
No ano passado, fazendo pesquisas para meu próximo livro, passei o inverno brasileiro no Recife, onde diariamente passava pela Universidade Federal de Pernambuco. Lá, numa parede, vi um grafite que proclamava: “Ciência versus Obscurantismo”. Inicialmente, pensei que a frase fosse dirigida a Jair Bolsonaro. Mas agora entendo que ela tem uma relevância muito mais abrangente. Na verdade, é uma maneira de sintetizar não apenas a batalha que estamos travando agora, mas também a grande luta de nossos tempos.
Trump fala de uma guerra contra “um inimigo invisível”, e aquele inimigo é justamente o vírus da ignorância e do desconhecimento que ele e seu amigão Bolsonaro estão propagando. Porque a burrice também está contagiosa. Já chega. Precisamos mudar de canal.
Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”
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