Muito interessante o texto publicado na sexta, 10/01, no Valor Econômico. Para a cientista social, junho de 2013 ajuda a decifrar crise atual, e agora é preciso dialogar e escutar, e não apenas apontar o dedo. “O discurso de extrema-direita contra organizações internacionais, contra políticos, contra a esfera cultural de uma elite são problemas existentes. Essa é uma crítica que deveria ser puxada pelo campo da esquerda, e que hoje uma esquerda golpeada, enfraquecida, não consegue fazer”, afirma Rosana. Na íntegra, abaixo:
Por Danilo Thomaz
As ascensões de Donald Trump e de Jair Bolsonaro indicaram um momento de mudanças. Aquele mundo que parecia estável - o da hegemonia das democracias liberais, após o fim da Guerra Fria, em 1991 - não era mais tão certo. E poderia ser o início de um novo mundo, onde as fronteiras entre a democracia e o Estado autoritário já não seriam tão claras. “A extrema-direita se colocou como antiestablishment, como a movimentação ‘raiz’ contra políticos”, afirma a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, autora de “Amanhã Vai Ser Maior: O que Aconteceu com o Brasil e Possíveis Rotas de Fuga para a Crise Atual” (Planeta, 192 págs., R$ 39,90).
Por outro lado, vitórias eleitorais recentes do campo progressista - na Finlândia, em Portugal e na Argentina - e a queda do governo da direita radical na Itália trouxeram nova perspectiva. A força desse polo estaria em refluxo e poderia se antever nova onda progressista em um mundo ainda abalado pela crise econômica de 2008.
“As eleições têm vitórias para ambos os lados. Vamos viver, no mínimo, duas décadas de insurgências profundas à esquerda e à direita, uma nova era de extremos”, diz Rosana, professora da pós-graduação em ciências sociais da Universidade Federal de Santa Maria. A autora, colunista do Intercept Brasil, analisa no livro o cenário de revoltas para o qual o campo da esquerda, apesar de vitórias recentes, parece não ter respostas. “O discurso de extrema-direita contra organizações internacionais, contra políticos, contra a esfera cultural de uma elite são problemas existentes. Essa é uma crítica que deveria ser puxada pelo campo da esquerda, e que hoje uma esquerda golpeada, enfraquecida, não consegue fazer.”
Sem um discurso para se contrapor à direita radical na defesa de demandas de populações aflitas com desemprego, precarização do trabalho e aumento da violência, a esquerda, diz a autora, se vê obrigada a defender o que antes criticava. É o caso das ONGs e instituições globais, por exemplo. “[Com isso] a gente acaba reforçando o discurso de antiestablishment [da extrema-direita].”
Rosana nasceu em Porto Alegre (RS) e cresceu na cidade durante os anos 1990, quando a capital era reconhecida por políticas como o orçamento participativo. Esse modelo, no entanto, ficou no passado.
Para a autora, com o crescimento da economia, a partir de 2004, e as políticas de inclusão econômica, a mobilização e o contato da esquerda com as bases se arrefeceram ao longo das últimas décadas. “Com Lula no poder, se deu por dado que aquele crescimento seria suficiente. Na primeira crise econômica [iniciada em 2014] isso tudo ruiu. As pessoas estavam endividadas e desmobilizadas. Viveram a crise sem uma esfera política para debater.”
Outro momento que, para a autora, marca o afastamento das lideranças de esquerda da população no Brasil é junho de 2013. Em meados daquele mês, houve uma série de protestos em reação ao aumento de R$ 0,20 na tarifa de ônibus, trem e metrô em São Paulo e no Rio de Janeiro. A violência policial em São Paulo, na quinta-feira, 13 de junho, fez as manifestações se capilarizarem por todo o país.
Estima-se que mais de 200 mil pessoas, em todo o Brasil, foram às ruas na segunda-feira, 17 de junho. Na quinta-feira seguinte, a avenida Paulista dividiu-se em duas. De um lado os manifestantes de esquerda com bandeiras e camisetas vermelhas. Do outro, os manifestantes sem partido, vestidos de verde e amarelo. Os dois lados se confrontaram - e passaram a se confrontar dali em diante.
A chegada do campo da direita às ruas fez a esquerda, que tinha dado início aos protestos, reagir de maneira crítica às manifestações. “Houve sentimento de quase ingratidão, de dizer: ‘Fizemos tanto por essa gente e agora eles se levantam contra nós’”, disse durante um evento, em 2014, o ex-secretário-geral da Presidência no governo Dilma Rousseff (PT), Gilberto Carvalho. No ano passado, o ex-presidente Lula disse numa entrevista que “aquilo já fazia parte da arquitetura política de derrubar o governo (do PT)”.
Para Rosana, o PT errou ao não abraçar esses “filhos rebeldes”. “Esse novo ciclo foi fomentado pela democracia brasileira. Era o ápice desse Brasil democrático. Conversei com muitos manifestantes, (presenciei) sentimentos parecidos com relatos que a gente vê de maio de 1968 (em Paris). Uma vida antes e depois das manifestações”, diz. “É um caminho sem volta para essas pessoas e para o país. Marca um processo de politização e transformação do Brasil.”
Junho de 2013 trouxe à tona, ela afirma, tanto o Brasil autoritário, racista e violento quanto um Brasil jovem, democrático e politizado, ligado a agendas como o feminismo. E uma série de novas manifestações que passaria a compor a realidade do país.
É o caso dos “rolezinhos”, em 2014, e a greve dos caminhoneiros, em 2018. Manifestações que a antropóloga caracteriza como “revoltas ambíguas”, caracterizadas pela “indefinição ideológica”. “As categorias de esquerda ou direita não dão conta desse tipo de manifestação. O que, por sua vez, (...) não significa que o antagonismo ideológico não seja mais importante (...). Ele apenas não contempla a explosão de movimentos contraditórios”, escreve.
Essa ambiguidade, segundo a autora, pode ser observada na falta de consenso entre os caminhoneiros da greve de 2018. Em meio à crise econômica e política do país, o que unia esses motoristas era a rejeição aos políticos e o apoio a uma intervenção militar ordenadora, como em 1964. No entanto, os caminhoneiros dividiam-se quanto a Bolsonaro e chegavam até mesmo a relativizar o impeachment de Dilma. “Tiraram a mulher de lá para roubar mais”, disse um caminhoneiro citado no livro.
No caso dos “rolezeiros” - jovens que marcavam encontros em shoppings e despertaram incômodo em clientes e administradores -, o que se viu foi tripartição no perfil dos jovens, dois anos depois. “Parte grande dos jovens tinha se transformado em ‘bolsominions’, mas também havia outra parte que era radicalmente contrária a essa posição, aderindo a lutas contra o fascismo, a homofobia, o racismo e o machismo”, escreve a autora no livro. “Houve também uma grande parte que seguiu indiferente à política.”
Para Rosana, por mais que o cenário político, para muitos brasileiros, seja catastrófico, é necessário abrir-se para a escuta, o diálogo e a complexidade do contexto nacional, além de atuar na coletividade e abrir espaço para as novas figuras que estão surgindo. E não “apontar o dedo” pelas redes sociais, com provocações do tipo “Eu avisei” a cada notícia ruim sobre o governo.
“Uma das partes da constituição do nosso ‘eu’ é autoritária e conservadora. Bolsonaro conseguiu acionar esse lado. Isso não quer dizer que não sejam as mesmas pessoas que votaram no Lula. Tem uma tendência ao autoritarismo, mas tem diversas indignações que são legítimas. A gente tem que mostrar outros caminhos.”
Por Danilo Thomaz
As ascensões de Donald Trump e de Jair Bolsonaro indicaram um momento de mudanças. Aquele mundo que parecia estável - o da hegemonia das democracias liberais, após o fim da Guerra Fria, em 1991 - não era mais tão certo. E poderia ser o início de um novo mundo, onde as fronteiras entre a democracia e o Estado autoritário já não seriam tão claras. “A extrema-direita se colocou como antiestablishment, como a movimentação ‘raiz’ contra políticos”, afirma a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, autora de “Amanhã Vai Ser Maior: O que Aconteceu com o Brasil e Possíveis Rotas de Fuga para a Crise Atual” (Planeta, 192 págs., R$ 39,90).
Por outro lado, vitórias eleitorais recentes do campo progressista - na Finlândia, em Portugal e na Argentina - e a queda do governo da direita radical na Itália trouxeram nova perspectiva. A força desse polo estaria em refluxo e poderia se antever nova onda progressista em um mundo ainda abalado pela crise econômica de 2008.
“As eleições têm vitórias para ambos os lados. Vamos viver, no mínimo, duas décadas de insurgências profundas à esquerda e à direita, uma nova era de extremos”, diz Rosana, professora da pós-graduação em ciências sociais da Universidade Federal de Santa Maria. A autora, colunista do Intercept Brasil, analisa no livro o cenário de revoltas para o qual o campo da esquerda, apesar de vitórias recentes, parece não ter respostas. “O discurso de extrema-direita contra organizações internacionais, contra políticos, contra a esfera cultural de uma elite são problemas existentes. Essa é uma crítica que deveria ser puxada pelo campo da esquerda, e que hoje uma esquerda golpeada, enfraquecida, não consegue fazer.”
Sem um discurso para se contrapor à direita radical na defesa de demandas de populações aflitas com desemprego, precarização do trabalho e aumento da violência, a esquerda, diz a autora, se vê obrigada a defender o que antes criticava. É o caso das ONGs e instituições globais, por exemplo. “[Com isso] a gente acaba reforçando o discurso de antiestablishment [da extrema-direita].”
Rosana nasceu em Porto Alegre (RS) e cresceu na cidade durante os anos 1990, quando a capital era reconhecida por políticas como o orçamento participativo. Esse modelo, no entanto, ficou no passado.
Para a autora, com o crescimento da economia, a partir de 2004, e as políticas de inclusão econômica, a mobilização e o contato da esquerda com as bases se arrefeceram ao longo das últimas décadas. “Com Lula no poder, se deu por dado que aquele crescimento seria suficiente. Na primeira crise econômica [iniciada em 2014] isso tudo ruiu. As pessoas estavam endividadas e desmobilizadas. Viveram a crise sem uma esfera política para debater.”
Outro momento que, para a autora, marca o afastamento das lideranças de esquerda da população no Brasil é junho de 2013. Em meados daquele mês, houve uma série de protestos em reação ao aumento de R$ 0,20 na tarifa de ônibus, trem e metrô em São Paulo e no Rio de Janeiro. A violência policial em São Paulo, na quinta-feira, 13 de junho, fez as manifestações se capilarizarem por todo o país.
Estima-se que mais de 200 mil pessoas, em todo o Brasil, foram às ruas na segunda-feira, 17 de junho. Na quinta-feira seguinte, a avenida Paulista dividiu-se em duas. De um lado os manifestantes de esquerda com bandeiras e camisetas vermelhas. Do outro, os manifestantes sem partido, vestidos de verde e amarelo. Os dois lados se confrontaram - e passaram a se confrontar dali em diante.
A chegada do campo da direita às ruas fez a esquerda, que tinha dado início aos protestos, reagir de maneira crítica às manifestações. “Houve sentimento de quase ingratidão, de dizer: ‘Fizemos tanto por essa gente e agora eles se levantam contra nós’”, disse durante um evento, em 2014, o ex-secretário-geral da Presidência no governo Dilma Rousseff (PT), Gilberto Carvalho. No ano passado, o ex-presidente Lula disse numa entrevista que “aquilo já fazia parte da arquitetura política de derrubar o governo (do PT)”.
Para Rosana, o PT errou ao não abraçar esses “filhos rebeldes”. “Esse novo ciclo foi fomentado pela democracia brasileira. Era o ápice desse Brasil democrático. Conversei com muitos manifestantes, (presenciei) sentimentos parecidos com relatos que a gente vê de maio de 1968 (em Paris). Uma vida antes e depois das manifestações”, diz. “É um caminho sem volta para essas pessoas e para o país. Marca um processo de politização e transformação do Brasil.”
Junho de 2013 trouxe à tona, ela afirma, tanto o Brasil autoritário, racista e violento quanto um Brasil jovem, democrático e politizado, ligado a agendas como o feminismo. E uma série de novas manifestações que passaria a compor a realidade do país.
É o caso dos “rolezinhos”, em 2014, e a greve dos caminhoneiros, em 2018. Manifestações que a antropóloga caracteriza como “revoltas ambíguas”, caracterizadas pela “indefinição ideológica”. “As categorias de esquerda ou direita não dão conta desse tipo de manifestação. O que, por sua vez, (...) não significa que o antagonismo ideológico não seja mais importante (...). Ele apenas não contempla a explosão de movimentos contraditórios”, escreve.
Essa ambiguidade, segundo a autora, pode ser observada na falta de consenso entre os caminhoneiros da greve de 2018. Em meio à crise econômica e política do país, o que unia esses motoristas era a rejeição aos políticos e o apoio a uma intervenção militar ordenadora, como em 1964. No entanto, os caminhoneiros dividiam-se quanto a Bolsonaro e chegavam até mesmo a relativizar o impeachment de Dilma. “Tiraram a mulher de lá para roubar mais”, disse um caminhoneiro citado no livro.
No caso dos “rolezeiros” - jovens que marcavam encontros em shoppings e despertaram incômodo em clientes e administradores -, o que se viu foi tripartição no perfil dos jovens, dois anos depois. “Parte grande dos jovens tinha se transformado em ‘bolsominions’, mas também havia outra parte que era radicalmente contrária a essa posição, aderindo a lutas contra o fascismo, a homofobia, o racismo e o machismo”, escreve a autora no livro. “Houve também uma grande parte que seguiu indiferente à política.”
Para Rosana, por mais que o cenário político, para muitos brasileiros, seja catastrófico, é necessário abrir-se para a escuta, o diálogo e a complexidade do contexto nacional, além de atuar na coletividade e abrir espaço para as novas figuras que estão surgindo. E não “apontar o dedo” pelas redes sociais, com provocações do tipo “Eu avisei” a cada notícia ruim sobre o governo.
“Uma das partes da constituição do nosso ‘eu’ é autoritária e conservadora. Bolsonaro conseguiu acionar esse lado. Isso não quer dizer que não sejam as mesmas pessoas que votaram no Lula. Tem uma tendência ao autoritarismo, mas tem diversas indignações que são legítimas. A gente tem que mostrar outros caminhos.”
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