Todas as ironias de um gênio das letras
“Vai pra Paris, vai pra Cuba!” Chico Buarque deve ser uma das personalidades brasileiras com mais haters do país, mas também a com um dos maiores fã-clubes nas redes, fora do circuito das grandes celebridades. Escritor, compositor, cantor e ativista, Chico é muitas vezes associado com a esquerda, em especial com o PT, e na esteira do crescimento do sentimento anti-esquerda no Brasil, ele tem sido atacado sem dó nem piedade por gente que não separa a produção do autor de suas convicções ideológicas. Uma pena, porque Chico Buarque é um grande artista e sua obra literária traz a mesma qualidade de suas composições geniais. Aliás, para quem conhece a produção musical, fica óbvio que a literatura de Chico conversa muito com o que já produziu como compositor.
Essa Gente, lançado no ano passado, é um dos melhores livros do escritor. E é também um dos mais críticos, apresentando um Rio de Janeiro inviável, cheio de problemas, habitado por espancadores de mendigos, pessoas perdidas em suas angústias, medicadas por sedativos, ansiolíticos e outras drogas, além de prostitutas, pastores tarados, traficantes e bandidos de toda ordem. A elite carioca também já não é mais a mesma do tempo da infância do protagonista, o decadente escritor Manuel Duarte, autor de um romance histórico, O Eunuco do Paço Real, seu único real sucesso.
Talvez este seja o romance mais fácil de se ler de todos que Chico Buarque já escreveu, até pelo formato de capítulos e parágrafos curtos, além de uma narrativa ligeiramente policialesca, mas é também o mais duro e implacável. O leitor acompanha a trajetória de Duarte em uma sequência de episódios lamentáveis, um pior que o outro. O relacionamento do protagonista com seu filho pré-adolescente é assombroso, revelando uma incomunicabilidade geracional chocante, com as ex-mulheres a tensão constante predomina e Duarte tem um único amigo, superficial e alheio às necessidades do escritor.
Há, é claro, um humor corrosivo no livro, típico da obra buarqueana, que recorre à ironia para entregar uma mensagem muito clara sobre um país rachado, dividido entre o “nós contra eles”, presente na política nacional hoje, com Bolsonaro e o ex-presidente Lula ocupando todos os espaços.
Chico data a obra – os capítulos todos são em formato de datas, sendo o primeiro em 2016 e quase todos os demais em 2019. Este é um dado importante, porque se trata de um livro bastante atual e com diversas referências veladas ao que aconteceu no mundo real, no Rio, ano passado – um exemplo é o assassinato pela polícia do músico Evaldo Rosa com 80 tiros, que aparece em uma cena dantesca.
Não se afobe, não/que nada é pra já
O amor não tem pressa/ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário/e na posta-restante
Milênios, milênios/no ar
E quem sabe, então/o Rio será
Alguma cidade submersa/os escafandristas virão
Explorar sua casa/seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos/sábios em vão
Tentarão decifrar/o eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas/mentiras, retratos/vestígios…
O desfecho surpreendente e impactante revela um escritor em sua plenitude e um analista arguto da contemporaneidade, tal qual seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda à sua época. Chico honra o pai que teve e nos presenteia com uma obra-prima, tal qual a canção Futuros Amantes, reproduzida acima. É preciso ler e ouvir Chico Buarque. #ficaadica!
Por Luiz Antonio Magalhães em 10/01/2020.
“Vai pra Paris, vai pra Cuba!” Chico Buarque deve ser uma das personalidades brasileiras com mais haters do país, mas também a com um dos maiores fã-clubes nas redes, fora do circuito das grandes celebridades. Escritor, compositor, cantor e ativista, Chico é muitas vezes associado com a esquerda, em especial com o PT, e na esteira do crescimento do sentimento anti-esquerda no Brasil, ele tem sido atacado sem dó nem piedade por gente que não separa a produção do autor de suas convicções ideológicas. Uma pena, porque Chico Buarque é um grande artista e sua obra literária traz a mesma qualidade de suas composições geniais. Aliás, para quem conhece a produção musical, fica óbvio que a literatura de Chico conversa muito com o que já produziu como compositor.
Essa Gente, lançado no ano passado, é um dos melhores livros do escritor. E é também um dos mais críticos, apresentando um Rio de Janeiro inviável, cheio de problemas, habitado por espancadores de mendigos, pessoas perdidas em suas angústias, medicadas por sedativos, ansiolíticos e outras drogas, além de prostitutas, pastores tarados, traficantes e bandidos de toda ordem. A elite carioca também já não é mais a mesma do tempo da infância do protagonista, o decadente escritor Manuel Duarte, autor de um romance histórico, O Eunuco do Paço Real, seu único real sucesso.
Talvez este seja o romance mais fácil de se ler de todos que Chico Buarque já escreveu, até pelo formato de capítulos e parágrafos curtos, além de uma narrativa ligeiramente policialesca, mas é também o mais duro e implacável. O leitor acompanha a trajetória de Duarte em uma sequência de episódios lamentáveis, um pior que o outro. O relacionamento do protagonista com seu filho pré-adolescente é assombroso, revelando uma incomunicabilidade geracional chocante, com as ex-mulheres a tensão constante predomina e Duarte tem um único amigo, superficial e alheio às necessidades do escritor.
Há, é claro, um humor corrosivo no livro, típico da obra buarqueana, que recorre à ironia para entregar uma mensagem muito clara sobre um país rachado, dividido entre o “nós contra eles”, presente na política nacional hoje, com Bolsonaro e o ex-presidente Lula ocupando todos os espaços.
Chico data a obra – os capítulos todos são em formato de datas, sendo o primeiro em 2016 e quase todos os demais em 2019. Este é um dado importante, porque se trata de um livro bastante atual e com diversas referências veladas ao que aconteceu no mundo real, no Rio, ano passado – um exemplo é o assassinato pela polícia do músico Evaldo Rosa com 80 tiros, que aparece em uma cena dantesca.
Não se afobe, não/que nada é pra já
O amor não tem pressa/ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário/e na posta-restante
Milênios, milênios/no ar
E quem sabe, então/o Rio será
Alguma cidade submersa/os escafandristas virão
Explorar sua casa/seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos/sábios em vão
Tentarão decifrar/o eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas/mentiras, retratos/vestígios…
O desfecho surpreendente e impactante revela um escritor em sua plenitude e um analista arguto da contemporaneidade, tal qual seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda à sua época. Chico honra o pai que teve e nos presenteia com uma obra-prima, tal qual a canção Futuros Amantes, reproduzida acima. É preciso ler e ouvir Chico Buarque. #ficaadica!
Por Luiz Antonio Magalhães em 10/01/2020.
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