Excelente a análise do colunista da revista Época sobre o fato da semana, a nomeação da atriz global no lugar o nazista Roberto Alvim. Pergunta Xexéo: qual faceta da atriz assumirá o posto de secretária especial da Cultura: a “namoradinha” do Brasil dos anos 1960 ou a Malu Mulher? Na íntegra, abaixo.
Sempre houve duas Reginas Duartes: a namoradinha do Brasil e a Malu Mulher. A primeira, meio sonsa, muito ingênua, conquistava o mundo com um sorriso; a segunda, assertiva, batalhadora, tentava mudar o mundo para, depois, conquistá-lo. A etapa inicial de sua carreira na televisão foi construída pela interpretação de mocinhas de novelas que sofriam durante uma centena de capítulos até encontrar o final feliz com o galã da ocasião. Desde sua estreia na TV, como modelo de um comercial de pasta de dentes, ela investiu na Regina namoradinha. Foram 14 anos de heroínas românticas até protagonizar, em 1979, Malu mulher, um seriado que faz parte da história do feminismo no país. Mas, mesmo antes, já havia sinais de que a Regina Malu estava ali por perto. Em seu primeiro trabalho como atriz, a novela de época A deusa vencida, exibida pela extinta TV Excelsior em 1965, Regina Duarte parecia já se apropriar do arquétipo das mocinhas que a transformariam na atriz mais popular da história da televisão brasileira. Romântica, vítima de uma doença incurável, ela circulava, numa cadeira de rodas, entre personagens que sofriam as consequências de cartas anônimas reveladoras dos segredos de todos. No último capítulo, o espectador descobria que a suposta vítima — a certa altura, ela também recebia uma carta contando que sua doença não tinha cura — era a autora das cartas. A primeira mocinha de Regina foi, na verdade, uma de suas raras vilãs. O nome da personagem? Malu!
Pelo menos uma novelista — a maior de todas, Janete Clair — percebeu essa dualidade na personalidade artística de Regina Duarte e a escalou, mais de uma vez, para papéis que expunham esse conflito. Em Selva de pedra, de 1972, ela era a dócil Simone até metade da trama, quando trocava de peruca e transformava-se na vingativa Rosana Reis. Em Sétimo sentido, de 1982, era a tolinha Luana Camará até mudar de figurino e virar a decidida Priscila Capricce. Na verdade, Regina sucumbiu à imagem de namoradinha só na televisão. No teatro, onde também forjou uma carreira de respeito, ela sempre buscou desconstruir essa imagem. O público comprava ingresso para ver a heroína romântica que conhecia da TV e surpreendia-se com papéis ousados como o da prostituta Janete, da peça Réveillon, de Flávio Márcio, que ela produziu em 1975. No palco, Janete planejava com a família um suicídio coletivo na noite da virada do ano. A plateia não acreditava que aquela Malu era a mesma namoradinha que estava acostumada a ver nas novelas.
Agora que, se for oficializada sua nomeação para a Secretaria Especial da Cultura, Regina Duarte vai enfrentar o papel mais desafiador de toda a sua trajetória, resta saber quem está se transferindo para Brasília: a namoradinha ou a Malu?
No Instagram, veículo que mais tem utilizado para expor seu pensamento, as duas Reginas estão sempre à mostra. “De tudo, quero tirar uma lição e um aprendizado. E ‘vambora’! Com muito amor no coração”, comentou, quando foi divulgado o convite que recebeu do presidente Bolsonaro. Um post romântico, como faria a namoradinha. “A liberdade de expressão tem que ter limites regulados pelo bom senso, pela educação e pelo respeito ao próximo”, escreveu, quando o especial de fim de ano do grupo Porta dos Fundos, aquele que encenava satiricamente a festa de aniversário de 30 anos de Jesus Cristo, provocou polêmica. Um post assertivo, como seriam os de Malu Mulher, se já existisse Instagram naquele tempo.
O convite a Regina foi, até agora, o movimento mais positivo do governo Bolsonaro em direção à área da Cultura. Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro parecia ter um único sentimento em relação à classe artística: desprezo. Pior: age há um ano como se quisesse se vingar de uma classe que não apoiou sua eleição. Talvez o nome de Regina Duarte não pacifique a relação entre artistas e governo. Mas, certamente, traz dignidade a um cargo e prestígio a uma área que estavam sendo tratados com desdém. E aqueles que movimentam a Cultura perceberam isso. Até porque, contra ou a favor do governo, os artistas sabem que precisam manter um diálogo com ele para que os mecanismos de fomento ao setor continuem em atividade. E dialogar com Regina Duarte é muito mais fácil do que com qualquer um dos três que ocuparam o cargo antes dela nos últimos 12 meses.
A aprovação aparece nos comentários aos posts da atriz no Instagram. “Torcendo por você”, comentou a novelista Glória Perez numa postagem em que Regina pede “para curtir um pouquinho mais a alegria de sentir que posso ser respeitada no meu amor pelo Brasil e pelo povo brasileiro”. Quando a atriz contou que estava “noivando” com Bolsonaro, o ator Ary Fontoura mandou-lhe dois beijinhos por meio de emojis. A produtora Flora Gil, mulher do ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, aproveitou um post sobre São Sebastião — aquele em que Regina confundiu o padroeiro do Rio de Janeiro com Santo Expedito — e mostrou otimismo: “Pense e nos surpreenda com sua competência. Estou torcendo por você e pela cultura do nosso país”.
Mesmo com torcida aparentemente a favor, Regina será obrigada a tomar decisões em áreas sensíveis que costumam ser muito caras à classe artística. A Lei Rouanet, por exemplo. Em entrevista dada há seis meses no programa Conversa com Bial, ela deixou claro como pensa que deve ser utilizado o principal instrumento de fomento à Cultura no Brasil. “Famosos, fora!”, disparou. “Eu acho que o governo que usa o dinheiro da população deveria apoiar os que estão iniciando na arte, apoiar os novos talentos, a cultura regional, de acordo com uma legislação específica. Eu sou a favor de que o Estado não patrocine cultura nos moldes atuais. O governo precisa mais é cuidar do surgimento dos novos talentos, dar força para os novo artistas, promover a renovação e o acesso de novas plateias.” Regina já disse mais de uma vez que pretende pacificar a relação entre governo e classe artística. Mas é difícil acreditar que esse pensamento sobre a Rouanet seja capaz de pacificar alguma coisa.
Regina Duarte foi uma rara unanimidade nacional até seu lado Malu prevalecer sobre o lado namoradinha. Foi quando ela começou a expor suas posições políticas. Já dividiu um palanque com Lula no movimento Diretas Já. Gritou em passeatas pela Anistia. Nunca se filiou a partido político algum, mas durante um bom tempo deixou claro que se identificava com o PSDB. Fez campanha por Fernando Henrique pela prefeitura de São Paulo e por José Serra em eleição para presidente. Nas eleições de 2018, fez diferente da maior parte de seus colegas, revelou-se conservadora, declarou-se de direita e apoiou Bolsonaro. Mais de um ano depois, continua em paz com sua opção.
Nunca é demais lembrar o tanto de respeito que este governo tem pelo seu povo”, escreveu em uma rede social para comemorar os dez meses do atual governo. “Um Oscar pra você que foi para a rua derrubar o governo mais corrupto da história”, comentou, ao relembrar o movimento das ruas de 2013. “O Brasil é um país imenso, rico, cheio de oportunidades. Sem corrupção, agora então, vai ser cada vez mais show”, previu há algumas semanas. “2019 foi de lutas; 2020 vai ser de vitórias”, festejou no fim do ano passado.
Na Secretaria Especial da Cultura, Regina terá de resolver se mantém os nomes polêmicos que o secretário anterior pôs na direção de instituições importantes como a Funarte, a Biblioteca Nacional ou a Casa de Rui Barbosa. Terá de decidir se mantém as regras do Prêmio Nacional de Cultura ou o que fazer com os R$ 20 milhões que já estavam destinados aos futuros premiados. Terá de apoiar o presidente ou fazê-lo desistir da ideia de criar “filtros” para a produção cinematográfica com a chancela da Ancine. Terá de gerir uma infraestrutura administrativa complexa e cara com um orçamento de apenas R$ 320 milhões. Terá de... talvez seja muito para uma só Regina. Mas sempre houve duas Reginas Duartes: a namoradinha do Brasil e a Malu Mulher.
Sempre houve duas Reginas Duartes: a namoradinha do Brasil e a Malu Mulher. A primeira, meio sonsa, muito ingênua, conquistava o mundo com um sorriso; a segunda, assertiva, batalhadora, tentava mudar o mundo para, depois, conquistá-lo. A etapa inicial de sua carreira na televisão foi construída pela interpretação de mocinhas de novelas que sofriam durante uma centena de capítulos até encontrar o final feliz com o galã da ocasião. Desde sua estreia na TV, como modelo de um comercial de pasta de dentes, ela investiu na Regina namoradinha. Foram 14 anos de heroínas românticas até protagonizar, em 1979, Malu mulher, um seriado que faz parte da história do feminismo no país. Mas, mesmo antes, já havia sinais de que a Regina Malu estava ali por perto. Em seu primeiro trabalho como atriz, a novela de época A deusa vencida, exibida pela extinta TV Excelsior em 1965, Regina Duarte parecia já se apropriar do arquétipo das mocinhas que a transformariam na atriz mais popular da história da televisão brasileira. Romântica, vítima de uma doença incurável, ela circulava, numa cadeira de rodas, entre personagens que sofriam as consequências de cartas anônimas reveladoras dos segredos de todos. No último capítulo, o espectador descobria que a suposta vítima — a certa altura, ela também recebia uma carta contando que sua doença não tinha cura — era a autora das cartas. A primeira mocinha de Regina foi, na verdade, uma de suas raras vilãs. O nome da personagem? Malu!
Pelo menos uma novelista — a maior de todas, Janete Clair — percebeu essa dualidade na personalidade artística de Regina Duarte e a escalou, mais de uma vez, para papéis que expunham esse conflito. Em Selva de pedra, de 1972, ela era a dócil Simone até metade da trama, quando trocava de peruca e transformava-se na vingativa Rosana Reis. Em Sétimo sentido, de 1982, era a tolinha Luana Camará até mudar de figurino e virar a decidida Priscila Capricce. Na verdade, Regina sucumbiu à imagem de namoradinha só na televisão. No teatro, onde também forjou uma carreira de respeito, ela sempre buscou desconstruir essa imagem. O público comprava ingresso para ver a heroína romântica que conhecia da TV e surpreendia-se com papéis ousados como o da prostituta Janete, da peça Réveillon, de Flávio Márcio, que ela produziu em 1975. No palco, Janete planejava com a família um suicídio coletivo na noite da virada do ano. A plateia não acreditava que aquela Malu era a mesma namoradinha que estava acostumada a ver nas novelas.
Agora que, se for oficializada sua nomeação para a Secretaria Especial da Cultura, Regina Duarte vai enfrentar o papel mais desafiador de toda a sua trajetória, resta saber quem está se transferindo para Brasília: a namoradinha ou a Malu?
No Instagram, veículo que mais tem utilizado para expor seu pensamento, as duas Reginas estão sempre à mostra. “De tudo, quero tirar uma lição e um aprendizado. E ‘vambora’! Com muito amor no coração”, comentou, quando foi divulgado o convite que recebeu do presidente Bolsonaro. Um post romântico, como faria a namoradinha. “A liberdade de expressão tem que ter limites regulados pelo bom senso, pela educação e pelo respeito ao próximo”, escreveu, quando o especial de fim de ano do grupo Porta dos Fundos, aquele que encenava satiricamente a festa de aniversário de 30 anos de Jesus Cristo, provocou polêmica. Um post assertivo, como seriam os de Malu Mulher, se já existisse Instagram naquele tempo.
O convite a Regina foi, até agora, o movimento mais positivo do governo Bolsonaro em direção à área da Cultura. Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro parecia ter um único sentimento em relação à classe artística: desprezo. Pior: age há um ano como se quisesse se vingar de uma classe que não apoiou sua eleição. Talvez o nome de Regina Duarte não pacifique a relação entre artistas e governo. Mas, certamente, traz dignidade a um cargo e prestígio a uma área que estavam sendo tratados com desdém. E aqueles que movimentam a Cultura perceberam isso. Até porque, contra ou a favor do governo, os artistas sabem que precisam manter um diálogo com ele para que os mecanismos de fomento ao setor continuem em atividade. E dialogar com Regina Duarte é muito mais fácil do que com qualquer um dos três que ocuparam o cargo antes dela nos últimos 12 meses.
A aprovação aparece nos comentários aos posts da atriz no Instagram. “Torcendo por você”, comentou a novelista Glória Perez numa postagem em que Regina pede “para curtir um pouquinho mais a alegria de sentir que posso ser respeitada no meu amor pelo Brasil e pelo povo brasileiro”. Quando a atriz contou que estava “noivando” com Bolsonaro, o ator Ary Fontoura mandou-lhe dois beijinhos por meio de emojis. A produtora Flora Gil, mulher do ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, aproveitou um post sobre São Sebastião — aquele em que Regina confundiu o padroeiro do Rio de Janeiro com Santo Expedito — e mostrou otimismo: “Pense e nos surpreenda com sua competência. Estou torcendo por você e pela cultura do nosso país”.
Mesmo com torcida aparentemente a favor, Regina será obrigada a tomar decisões em áreas sensíveis que costumam ser muito caras à classe artística. A Lei Rouanet, por exemplo. Em entrevista dada há seis meses no programa Conversa com Bial, ela deixou claro como pensa que deve ser utilizado o principal instrumento de fomento à Cultura no Brasil. “Famosos, fora!”, disparou. “Eu acho que o governo que usa o dinheiro da população deveria apoiar os que estão iniciando na arte, apoiar os novos talentos, a cultura regional, de acordo com uma legislação específica. Eu sou a favor de que o Estado não patrocine cultura nos moldes atuais. O governo precisa mais é cuidar do surgimento dos novos talentos, dar força para os novo artistas, promover a renovação e o acesso de novas plateias.” Regina já disse mais de uma vez que pretende pacificar a relação entre governo e classe artística. Mas é difícil acreditar que esse pensamento sobre a Rouanet seja capaz de pacificar alguma coisa.
Regina Duarte foi uma rara unanimidade nacional até seu lado Malu prevalecer sobre o lado namoradinha. Foi quando ela começou a expor suas posições políticas. Já dividiu um palanque com Lula no movimento Diretas Já. Gritou em passeatas pela Anistia. Nunca se filiou a partido político algum, mas durante um bom tempo deixou claro que se identificava com o PSDB. Fez campanha por Fernando Henrique pela prefeitura de São Paulo e por José Serra em eleição para presidente. Nas eleições de 2018, fez diferente da maior parte de seus colegas, revelou-se conservadora, declarou-se de direita e apoiou Bolsonaro. Mais de um ano depois, continua em paz com sua opção.
Nunca é demais lembrar o tanto de respeito que este governo tem pelo seu povo”, escreveu em uma rede social para comemorar os dez meses do atual governo. “Um Oscar pra você que foi para a rua derrubar o governo mais corrupto da história”, comentou, ao relembrar o movimento das ruas de 2013. “O Brasil é um país imenso, rico, cheio de oportunidades. Sem corrupção, agora então, vai ser cada vez mais show”, previu há algumas semanas. “2019 foi de lutas; 2020 vai ser de vitórias”, festejou no fim do ano passado.
Na Secretaria Especial da Cultura, Regina terá de resolver se mantém os nomes polêmicos que o secretário anterior pôs na direção de instituições importantes como a Funarte, a Biblioteca Nacional ou a Casa de Rui Barbosa. Terá de decidir se mantém as regras do Prêmio Nacional de Cultura ou o que fazer com os R$ 20 milhões que já estavam destinados aos futuros premiados. Terá de apoiar o presidente ou fazê-lo desistir da ideia de criar “filtros” para a produção cinematográfica com a chancela da Ancine. Terá de gerir uma infraestrutura administrativa complexa e cara com um orçamento de apenas R$ 320 milhões. Terá de... talvez seja muito para uma só Regina. Mas sempre houve duas Reginas Duartes: a namoradinha do Brasil e a Malu Mulher.
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