Excelente a provocação do jornalista e é ex-correspondente do New York Times no Brasil para o portal online do El País. Mais uma vez, a comparação entre Trump e Bolsonaro, e aqui com a visão de quem olha o Brasil de fora, já tendo vivido um bom tempo nos trópicos. Na íntegra, a seguir.
Virou lugar-comum dizer que Jair Bolsonaro é “o Trump dos Trópicos”, e é fácil entender por quê. Os dois presidentes são homens de linguagem chula, propensos às teorias de conspiração e às ideias esdrúxulas, provedores habituais de fake news e com pouco entendimento ou curiosidade sobre o mundo fora da esfera restrita em que se formaram. Mandatários inexperientes, são impulsivos, indiferentes aos detalhes de governar, incitadores à violência e, como tal, eternos geradores de caos.
Costumo, inclusive, brincar com meus amigos brasileiros dizendo que Trump e Bolsonaro, Estados Unidos e Brasil, se tornaram países gêmeos: Absurdistão do Norte e Absurdistão do Sul. Mas, em outro plano, o que mais me chama a atenção como estrangeiro são algumas diferenças fundamentais entre a situação de Bolsonaro e a de seu congênere americano. Isso tem a ver, em parte, com a personalidade de cada um. Mas também é resultado dos ambientes políticos divergentes em que ambos operam.
Para citar um exemplo, fico apavorado quando vejo o controle total que Trump mantém sobre o Partido Republicano, um dos dois partidos históricos dos Estados Unidos. Outrora o partido de Lincoln e Theodore Roosevelt, os republicanos hoje ecoam cada besteira e mentira que Trump solta e tentam justificar cada ultraje dele à Constituição americana. Considerado um forasteiro vulgar pelos republicanos tradicionais há quatro anos, Trump hoje é o senhor absoluto deles. E Bolsonaro? O ex-capitão não consegue comandar nem seu próprio partido. Em compensação, ninguém pode negar a legitimidade de sua vitória eleitoral. Pode-se gostar ou não dele, mas, em outubro de 2018, uma convincente maioria do eleitorado votou nele.
Donald Trump, por outro lado, nunca gozou do apoio de uma maioria do povo americano. Foi eleito com apenas 46% dos votos válidos, enquanto a “perdedora” Hillary Clinton recebeu 3 milhões de votos a mais. Em 2016, pela primeira vez na vida, senti na carne o verdadeiro significado daquela frase bem brasileira que sempre ouvia na época da ditadura militar: “Ganhou, mas não levou”. E tem mais: desde que ele entrou na Casa Branca, todas as pesquisas de opinião pública registradas mostram que o apoio a ele não cresceu, apenas minguou.
Na história do Brasil republicano, o país em vários momentos enfrentou crises em que a ordem constitucional perigava (ou até caía). Como consequência, o brasileiro desenvolveu meios e ferramentas para lidar com essas situações, principalmente por meio dos movimentos de cunho popular. Na história recente, basta olhar para as campanhas das “Diretas já” e dos caras-pintadas, que tanto fortaleceram o estado de direito e a soberania popular. O americano, porém, é marinheiro de primeira viagem em matéria de crises constitucionais. Nunca um presidente ousou desdenhar por completo de uma demanda legítima do Congresso para entregar documentos e testemunhas, como acontece agora com o (bem-merecido) impeachment de Trump. Os fundadores do sistema americano no século XVIII nunca imaginaram essa possibilidade, e o resultado é que estamos perplexos e até indefesos, aparentemente sem mecanismos para frear um presidente desrespeitoso da lei.
É uma herança de nossos antepassados, sempre considerado um fato consumado, tema de aulas de civismo a que a maioria dos alunos nem presta atenção. Acho às vezes que o brasileiro valoriza a democracia mais do que a gente. Somos complacentes demais, na falsa crença de que “não pode acontecer aqui”. Mas está acontecendo, o país está se transformando numa republiqueta.
É por isso que sou mais otimista que o Brasil vai solucionar sua crise atual, e cético que nós do norte possamos facilmente encontrar uma saída institucional e pacífica. Mais dia, menos dia, Jair Bolsonaro vai sair do Palácio do Planalto — ou pelo voto popular em 2022, ou pelo impeachment (como Dilma), ou renunciando (como Collor). Mas Trump sabe como explorar os interstícios de nosso sistema, as lacunas geradas por nosso absurdo Colégio Eleitoral — que na verdade é um tipo de eleição indireta. Os politólogos apontam que Trump pode perder o voto popular em novembro por até 5 milhões e mesmo assim sair vitorioso no Colégio Eleitoral. Para a maioria que despreza Trump, ganhar de novo e não levar seria um sapo difícil de engolir.
Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”
Virou lugar-comum dizer que Jair Bolsonaro é “o Trump dos Trópicos”, e é fácil entender por quê. Os dois presidentes são homens de linguagem chula, propensos às teorias de conspiração e às ideias esdrúxulas, provedores habituais de fake news e com pouco entendimento ou curiosidade sobre o mundo fora da esfera restrita em que se formaram. Mandatários inexperientes, são impulsivos, indiferentes aos detalhes de governar, incitadores à violência e, como tal, eternos geradores de caos.
Costumo, inclusive, brincar com meus amigos brasileiros dizendo que Trump e Bolsonaro, Estados Unidos e Brasil, se tornaram países gêmeos: Absurdistão do Norte e Absurdistão do Sul. Mas, em outro plano, o que mais me chama a atenção como estrangeiro são algumas diferenças fundamentais entre a situação de Bolsonaro e a de seu congênere americano. Isso tem a ver, em parte, com a personalidade de cada um. Mas também é resultado dos ambientes políticos divergentes em que ambos operam.
Para citar um exemplo, fico apavorado quando vejo o controle total que Trump mantém sobre o Partido Republicano, um dos dois partidos históricos dos Estados Unidos. Outrora o partido de Lincoln e Theodore Roosevelt, os republicanos hoje ecoam cada besteira e mentira que Trump solta e tentam justificar cada ultraje dele à Constituição americana. Considerado um forasteiro vulgar pelos republicanos tradicionais há quatro anos, Trump hoje é o senhor absoluto deles. E Bolsonaro? O ex-capitão não consegue comandar nem seu próprio partido. Em compensação, ninguém pode negar a legitimidade de sua vitória eleitoral. Pode-se gostar ou não dele, mas, em outubro de 2018, uma convincente maioria do eleitorado votou nele.
Donald Trump, por outro lado, nunca gozou do apoio de uma maioria do povo americano. Foi eleito com apenas 46% dos votos válidos, enquanto a “perdedora” Hillary Clinton recebeu 3 milhões de votos a mais. Em 2016, pela primeira vez na vida, senti na carne o verdadeiro significado daquela frase bem brasileira que sempre ouvia na época da ditadura militar: “Ganhou, mas não levou”. E tem mais: desde que ele entrou na Casa Branca, todas as pesquisas de opinião pública registradas mostram que o apoio a ele não cresceu, apenas minguou.
Na história do Brasil republicano, o país em vários momentos enfrentou crises em que a ordem constitucional perigava (ou até caía). Como consequência, o brasileiro desenvolveu meios e ferramentas para lidar com essas situações, principalmente por meio dos movimentos de cunho popular. Na história recente, basta olhar para as campanhas das “Diretas já” e dos caras-pintadas, que tanto fortaleceram o estado de direito e a soberania popular. O americano, porém, é marinheiro de primeira viagem em matéria de crises constitucionais. Nunca um presidente ousou desdenhar por completo de uma demanda legítima do Congresso para entregar documentos e testemunhas, como acontece agora com o (bem-merecido) impeachment de Trump. Os fundadores do sistema americano no século XVIII nunca imaginaram essa possibilidade, e o resultado é que estamos perplexos e até indefesos, aparentemente sem mecanismos para frear um presidente desrespeitoso da lei.
É uma herança de nossos antepassados, sempre considerado um fato consumado, tema de aulas de civismo a que a maioria dos alunos nem presta atenção. Acho às vezes que o brasileiro valoriza a democracia mais do que a gente. Somos complacentes demais, na falsa crença de que “não pode acontecer aqui”. Mas está acontecendo, o país está se transformando numa republiqueta.
É por isso que sou mais otimista que o Brasil vai solucionar sua crise atual, e cético que nós do norte possamos facilmente encontrar uma saída institucional e pacífica. Mais dia, menos dia, Jair Bolsonaro vai sair do Palácio do Planalto — ou pelo voto popular em 2022, ou pelo impeachment (como Dilma), ou renunciando (como Collor). Mas Trump sabe como explorar os interstícios de nosso sistema, as lacunas geradas por nosso absurdo Colégio Eleitoral — que na verdade é um tipo de eleição indireta. Os politólogos apontam que Trump pode perder o voto popular em novembro por até 5 milhões e mesmo assim sair vitorioso no Colégio Eleitoral. Para a maioria que despreza Trump, ganhar de novo e não levar seria um sapo difícil de engolir.
Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”
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