Muito interessante o texto do colunista Helio Gurovitz na Época. Escreve o jornalista: Pela segunda vez desde 2002, a poupança perdeu para a inflação brasileira no ano passado. Mas quem deixou dinheiro na poupança pelo menos ganhou alguma coisa. Nos mercados globais, quem se dispõe a emprestar a governos ou empresas é obrigado com frequência a pagar por isso. Sim, em vez de ganhar, paga para deixar o próprio dinheiro aplicado em títulos da dívida. O total de papéis com rendimento negativo passou de US$ 17 trilhões no semestre passado, uns 30% do mercado. Depois recuou e fechou o ano em torno de US$ 11 trilhões. Mesmo assim, a estranheza persiste: por que alguém aceita pagar para investir o próprio dinheiro se pode fazer qualquer outra coisa com ele? A resposta envolve os conceitos mais básicos — e até hoje mais controversos — da economia: O que é o dinheiro? Como deve ser tratado? “Os problemas econômicos mais importantes que enfrentamos derivam de visões erradas sobre moeda e governo”, escreve o historiador econômico britânico Robert Skidelsky em Money and government.
Continua abaixo:
Integrante da Câmara dos Lordes que já passou por três partidos políticos e se define hoje como independente, Skidelsky não esconde que o objetivo de sua obra é provocar. “O colapso de 2008-2009 deveria ter deslocado a atenção da macroeconomia da inflação para a instabilidade, em especial financeira”, afirma. “Que mal tenha feito isso é meu principal pretexto para ter escrito este livro.” O herói de Skidelsky, ele também não esconde, é John Maynard Keynes, tema de uma biografia premiada em três volumes de sua autoria. Mas seria um equívoco confundi-lo com os keynesianos que tomam conta dos debates brasileiros defendendo como panaceia um coquetel em proporções variáveis de juros baixos, déficits fiscais e câmbio desvalorizado. Skidelsky é antes de tudo um historiador sofisticado, conhece o assunto a fundo e, embora não se furte a dar opiniões, não tem o medo da dúvida que tanto assombra outros economistas.
Seu livro reconstitui a história econômica com base nas duas visões predominantes sobre a moeda ao longo dos séculos: ora meio de pagamento para facilitar trocas, ora meio de armazenar valor para lidar com o futuro. “Foi a existência da incerteza radical que deu à moeda sua propriedade econômica peculiar”, diz Skidelsky. “Quando o futuro é incerto, ela oferece uma escolha entre gastar e não gastar.” Ao formular de modo preciso as consequências dessa incerteza, Keynes fundou a macroeconomia moderna.
Funcionou assim até pouco antes das crises inflacionárias dos anos 1970, quando o sistema keynesiano soçobrou, segundo ele “vítima do próprio sucesso”. “O capitalismo controlado que introduziu foi incapaz de controlar a inflação com economias a pleno emprego.”
O restabelecimento da visão ortodoxa extinguiu o fogo inflacionário e propiciou uma nova era de globalização e redução da pobreza. O combate keynesiano ao colapso de 2008 embaralhou de novo as cartas. Parecia que o lorde inglês sairia reabilitado. Só que não. Skidelsky, como outros defensores de Keynes, ficou inconformado: “Ficar com a ‘vitória sobre a inflação’ como único objetivo é arcaico, na verdade sem sentido, já que nos últimos dez anos o problema tem sido a deflação, não a inflação”. Na última parte do livro, ele troca o papel do historiador pelo do político. Acredita que, num mundo deflacionário como o atual, não devemos tentar blindar as decisões econômicas das circunstâncias políticas. “A reinvenção da macroeconomia requer inserir a sociedade no estudo da economia”, afirma. Isso envolveria não apenas transformar o arcabouço institucional que rege a política econômica — do papel dos bancos centrais às regras fiscais —, mas a construção de uma economia política menos “técnica” e mais “democrática”. É uma receita que não convence em tudo, muito menos se aplicada ao Brasil. Mas ao menos não é dogmática.
MONEY AND GOVERNMENT: A CHALLENGE TO MAINSTREAM ECONOMICS
Robert Skidelsky, Penguin Books
2019 | 512 páginas | US$ 20
Helio Gurovitz é jornalista e blogueiro do portal G1
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Integrante da Câmara dos Lordes que já passou por três partidos políticos e se define hoje como independente, Skidelsky não esconde que o objetivo de sua obra é provocar. “O colapso de 2008-2009 deveria ter deslocado a atenção da macroeconomia da inflação para a instabilidade, em especial financeira”, afirma. “Que mal tenha feito isso é meu principal pretexto para ter escrito este livro.” O herói de Skidelsky, ele também não esconde, é John Maynard Keynes, tema de uma biografia premiada em três volumes de sua autoria. Mas seria um equívoco confundi-lo com os keynesianos que tomam conta dos debates brasileiros defendendo como panaceia um coquetel em proporções variáveis de juros baixos, déficits fiscais e câmbio desvalorizado. Skidelsky é antes de tudo um historiador sofisticado, conhece o assunto a fundo e, embora não se furte a dar opiniões, não tem o medo da dúvida que tanto assombra outros economistas.
Seu livro reconstitui a história econômica com base nas duas visões predominantes sobre a moeda ao longo dos séculos: ora meio de pagamento para facilitar trocas, ora meio de armazenar valor para lidar com o futuro. “Foi a existência da incerteza radical que deu à moeda sua propriedade econômica peculiar”, diz Skidelsky. “Quando o futuro é incerto, ela oferece uma escolha entre gastar e não gastar.” Ao formular de modo preciso as consequências dessa incerteza, Keynes fundou a macroeconomia moderna.
Funcionou assim até pouco antes das crises inflacionárias dos anos 1970, quando o sistema keynesiano soçobrou, segundo ele “vítima do próprio sucesso”. “O capitalismo controlado que introduziu foi incapaz de controlar a inflação com economias a pleno emprego.”
O restabelecimento da visão ortodoxa extinguiu o fogo inflacionário e propiciou uma nova era de globalização e redução da pobreza. O combate keynesiano ao colapso de 2008 embaralhou de novo as cartas. Parecia que o lorde inglês sairia reabilitado. Só que não. Skidelsky, como outros defensores de Keynes, ficou inconformado: “Ficar com a ‘vitória sobre a inflação’ como único objetivo é arcaico, na verdade sem sentido, já que nos últimos dez anos o problema tem sido a deflação, não a inflação”. Na última parte do livro, ele troca o papel do historiador pelo do político. Acredita que, num mundo deflacionário como o atual, não devemos tentar blindar as decisões econômicas das circunstâncias políticas. “A reinvenção da macroeconomia requer inserir a sociedade no estudo da economia”, afirma. Isso envolveria não apenas transformar o arcabouço institucional que rege a política econômica — do papel dos bancos centrais às regras fiscais —, mas a construção de uma economia política menos “técnica” e mais “democrática”. É uma receita que não convence em tudo, muito menos se aplicada ao Brasil. Mas ao menos não é dogmática.
MONEY AND GOVERNMENT: A CHALLENGE TO MAINSTREAM ECONOMICS
Robert Skidelsky, Penguin Books
2019 | 512 páginas | US$ 20
Helio Gurovitz é jornalista e blogueiro do portal G1
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