Pular para o conteúdo principal

Na corrida ao Oscar, ‘1917’ é um épico de guerra da era digital, por Pedro Butcher

Mais uma resenha de filme que concorre ao Oscar deste ano. Na íntegra, abaixo.
 
Dirigido por Sam Mendes, “1917” mostra trajetória de dois soldados que precisam entregar mensagem para evitar um massacre — Foto: Divulgação
Sam Mendes chegou de mansinho nesta temporada de prêmios do cinema americano para arrebatar, de surpresa, os Globos de Ouro de melhor filme dramático e melhor diretor. Desde que começou a circular, no Natal do ano passado, o novo longa do cineasta inglês de “Beleza Americana” (1999) e “Operação Skyfall” (2012) vem sendo comentado por ter sido feito em um único “take”, isto é, uma imagem contínua, sem cortes.
A pergunta que se impõe é: por quê? A resposta não é simples. Há um lado de virtuosismo? Sem dúvida. Do ponto da produção, tudo fica um pouco mais difícil. Mas essa dificuldade, na era digital, já não representa algo tão virtuoso assim - até porque a continuidade total é uma ilusão criada por efeitos de pós-produção que apagam no computador os momentos necessários de interrupção.
Do ponto de vista estético, os resultados são os mesmos de um filme com cortes. Sam Mendes não faz uso do plano-sequência no sentido “moderno”, isto é, com o objetivo de incorporar ao filme as possibilidades do tempo e do acaso, deixando os olhos do espectador mais livres.
A trajetória de dois jovens soldados que precisam entregar uma mensagem para evitar um massacre é contada da forma de sempre: planos gerais para mostrar a amplidão do espaço, planos de distância média para acompanhar o movimento dos atores, planos mais próximos nos momentos mais íntimos e dramáticos. A montagem não é feita pelo corte, mas “dentro” da própria imagem.
Mas, então, por quê? O virtuosismo, ainda que relativo, pesa, sem dúvida. No meio cinematográfico, principalmente acadêmico, o plano-sequência é um grande fetiche, um motivo de deleite que certamente será reconhecido na premiação do Oscar (sobretudo na categoria melhor fotografia, assinada pelo craque Roger Deakins). Do ponto de vista estético, a diferença é nenhuma: “1917” é um épico de guerra visualmente espetacular como qualquer outro.
Do ponto de vista narrativo e emocional, talvez exista uma diferença um pouco maior, na medida em que o recurso amplia as possibilidades de uma identificação mais sensorial entre os protagonistas e o espectador.
Curiosamente, não são raros os momentos em que o plano contínuo nos faz lembrar um videogame. Acompanhamos a missão dos soldados Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay) como um jogador que controla seu “avatar” em um jogo eletrônico, na medida em que eles precisam superar obstáculos físicos para cumprir sua missão.
Por suas características técnicas (o falso “take” único) e narrativas (a guerra como um jogo de obstáculos), “1917” talvez seja o primeiro grande épico hollywoodiano de guerra da era digital.
“1917” EUA, 2019. Direção: Sam Mendes Dist.: Universal. Estreia: dia 23 BBB
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And