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Spike Lee consolida retorno à boa forma com Destacamento Blood

Excelente matéria de Guilherme Genestreti publicada dia 10/6 na Folha de S. Paulo, íntegra a seguir. 

No início dos anos 1970, assolado por uma depressão que o levou a uma tentativa de suicídio, Marvin Gaye se isolou no estúdio da Motown, em Detroit, e gravou o soturno “What’s Going On”. No disco, o cantor de soul trocava os duetos românticos que embalaram casais brancos na década anterior por composições melancólicas e de cunho social, ecos dos embates por igualdade racial.
Inspirado nas cartas que trocou com o irmão militar, compôs uma obra conceitual que adota o ponto de vista inconformado de um veterano da Guerra do Vietnã. Não à toa, os versos desse álbum embalam boa parte dos 156 minutos de duração do filme “Destacamento Blood”, a visão visceral do cineasta Spike Lee sobre como a vida dos homens negros foi afetada por aquele conflito bélico, maior divisor cultural da história americana na segunda metade do século 20.
O longa, que foi selecionado para estrear no Festival de Cannes, suspenso pela pandemia, chega à grade da Netflix nesta sexta (12).
A tese do diretor está escancarada no trecho de um discurso de Malcolm X que abre o longa, comparando os negros obrigados a lutar na guerra àqueles que foram escravizados nos campos de algodão do sul, isto é, levados a servir a uma causa que não a própria.
Os quatro protagonistas da trama são sobreviventes da política que tornou afro-americanos “bucha de canhão” no sudeste asiático —um terço dos combatentes no Vietnã era composto por soldados negros, embora formassem não mais do que 11% da população dos Estados Unidos.
Nos dias atuais, o quarteto retorna a Ho Chi Minh, outrora Saigon, disposto a encontrar uma arca cheia de ouro que esconderam durante a guerra e a achar os restos mortais de Stormin’ Norman (Chadwick Boseman, de “Pantera Negra”), o líder do destacamento de que fizeram parte e uma espécie de mentor politizado dos quatro —“o nosso Malcolm e o nosso Martin”, como descreve um deles.
Quase 50 anos após os combates, cada um carrega as próprias cicatrizes, que vão da pobreza ao vício em opioides. Nenhum deles encarna melhor essas feridas do que o traumatizado Paul (Delroy Lindo), um republicano pró-Donald Trump que vive às turras com o seu filho, o professor de estudos afro-americanos David (Jonathan Majors).
A derrocada da sanidade de Paul, embrenhado no mato com seu boné vermelho “Make America Great Again”, é o ponto alto da história.
Estar de volta ao Vietnã, é claro, reavivará o ressentimento de quem se deu conta que estava morrendo nas selvas da Indochina por um país que permitia que, em seu próprio território, Martin Luther King fosse assassinado e Angela Davis, encarcerada.
“Os soldados negros no Vietnã ouviram sobre o que seus irmãos e irmãs estavam fazendo nos Estados Unidos, onde cidades estavam em chamas”, disse o cineasta, em entrevista ao site de cultura Vulture. “A merda estava vindo à tona e eles não precisavam estar atirando em vietcongues. Mas essa dinâmica não era nova.”
De fato, é uma dinâmica que permeia toda a história americana, como Lee faz questão de frisar no filme, ao incluir uma menção a Crispus Attucks, estivador negro assassinado pelos ingleses em Boston e tido como a primeira vítima da revolução que levaria à independência dos Estados Unidos. “Acreditamos na promessa desse país, mas ainda estamos esperando”, disse Lee.
Não fosse o tema do racismo, “Destacamento Blood” talvez não passasse de uma obra anódina. Na primeira versão, escrita por Danny Bilson e Paul De Meo, os protagonistas da trama eram brancos, assim como os roteiristas. Foi ao chegar a Spike Lee que o roteiro ganhou a sua principal camada.
Lançado enquanto protestos contra a brutalidade policial varrem as metrópoles americanas, o longa faz menções ao Black Lives Matter que soam mais orgânicas do que as referências aos atuais supremacistas brancos que o cineasta inseriu nova-iorquino em “Infiltrado na Klan”, seu título anterior.
Nesse sentido, salvo um ou outro tropeço do roteiro que prejudicam o filme a partir de sua metade, “Destacamento Blood” parece levar o diretor de volta à boa forma dos tempos de “Faça a Coisa Certa”, o longa que em 1989 já antevia os atuais protestos ao encenar uma revolta contra a morte de outro sujeito negro asfixiado pela polícia, no caso, a do personagem Radio Raheem.
Na época de seu lançamento, boa parte da crítica cinematográfica torceu o nariz para o filme e argumentou que seu lançamento poderia incitar a violência. Três meses antes, quatro adolescentes negros e um latino haviam sido injustamente acusados de estuprar e ferir uma corredora no Central Park, no escândalo judicial que inspiraria a minissérie “Olhos que Condenam”.
De lá para cá, Lee sedimentou sua carreira como o maior cronista das tensões raciais na América em filmes como “Febre da Selva” e, sobretudo, na cinebiografia “Malcolm X” que, ele afirma, jamais seria feita por um grande estúdio nos dias de hoje.
Especialmente após “A Hora do Show”, de 2000, o diretor tem apurado o seu olhar crítico para a forma como Hollywood buscou embranquecer a história dos Estados Unidos —não custa lembrar que um dos primeiros longas-metragens de todos os tempos, “O Nascimento de uma Nação”, dirigido por D.W. Griffith e lançado em 1915, é uma peça racista de ode à Ku Klux Klan.
Lee já havia desancado o clássico “...E o Vento Levou” em “Infiltrado na Klan”, por exemplo. Em “Destacamento Blood”, ele mira as revanches sanguinolentas de “Rambo” e “Braddock”, tentativas de reabilitar o moral da superpotência militar que havia levado uma surra dos vietcongues.

E ao prestar duas homenagens a “Apocalypse Now”, o mais conhecido retrato cinematográfico da Guerra do Vietnã, faz indagar por que há tão poucos registros desse conflito sob o ponto de vista daqueles que foram um terço do total de combatentes.
Nesse sentido, Spike Lee é uma espécie de anti-Quentin Tarantino, seu superestimado desafeto. Enquanto o diretor de “Pulp Fiction” usa seus filmes para reconstruir os fatos sempre sob sua lente pueril e “americanocêntrica”—que o diga o Hitler metralhado de “Bastardos Inglórios”—, seu colega nova-iorquino usa o cinema como um instrumento para reabilitar a história.
Não é por outro motivo que Spike Lee cutuca um herói americano como George Washington a no filme. “Na escola nos ensinaram que ele era um homem que nunca mentia”, disse o diretor à Deutsche Welle. “Nunca nos ensinaram que ele tinha 123 escravos. Deixaram de fora. De propósito.”



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