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Dica da Semana: Better Call Saul, série, Netflix

Filhote de Breaking Bad supera a trama que o inspirou 

Better Call Saul é talvez a melhor série que o autor destas linha já assistiu. Longa, com quatro temporadas e mais uma ainda não exibida no Brasil, que fecha o enredo, Better Call Saul é um drama criado por Vince Gilligan e Peter Gould. A série é uma pré-sequência derivada de Breaking Bad, que também foi criada por Gilligan. Os eventos decorrem a partir de 2002 e contam a história de um simples advogado chamado James Morgan "Jimmy" McGill (Bob Odenkirk em atuação magistral), seis anos antes de sua aparição em Breaking Bad, mostrando sua trajetória e seus problemas antes de se tornar o advogado Saul Goodman. 
Cada temporada tem 10 episódios, o que se assiste é uma sucessão de enroscos e confusões em que Jimmy-Saul se envolve junto com Kim Wexler (Rhea Seehorn), com quem se casa na quarta temporada e o investigador particular e ex-policial Michael "Mike" Ehrmantraut, personagem vivido por Jonathan Banks, outra atuação memorável, personagem que também tem participação importante em Breaking Bad. Outros personagens de destaque são o advogado Howard Hamlin (Patrick Fabian), co-fundador da Hamlin, Hamlin & McGill, Charles "Chuck" McGill (Michael McKean, esplêndido), irmão de Jimmy, e portador de uma suposta hipersensitividade eletromagnética, e Gustavo Fring (Giancarlo Esposito, sensacional), dono dos famosos Pollos Hermanos, que também integra o enredo de Breaking Bad.
Entre os bandidos da trama ambientada no Novo México estão Michael Mando como Nacho Varga, Raymond Cruz como Tuco Salamanca, Cesar Garcia como No-Doze, auxiliar de Tuco, Jesus Payan Jr. como Gonzo, também auxiliar de Tuco, Mark Margolis como Hector Salamanca, tio de Tuco e membro do alto escalão do Cartel de Juárez, Daniel e Luis Moncada como Leonel e Marco Salamanca, irmãos gêmeos assassinos do Cartel de Juárez e sobrinhos de Hector, Jim Beaver como Lawson, um vendedor de armas conhecido de Mike, e Maximino Arciniega como Krazy-8, além de Laura Fraser como Lydia Rodarte-Quayle da Madrigal Electromotive, na verdade uma funcionária de Frings. Todos esses maus elementos aparecem em Breaking Bad, alguns com maior espaço do que em Better Call Saul.
Além da atuação de Odenkirk, que já faria valer assistir a série, a concepção e o roteiro brilhante de Vince Gilligan e Peter Gould fazem desta uma obra obrigatória. A trajetória de Jimmy e sua transformação em Saul são, no fundo, o retrato de um Estados Unidos que perdeu a mão. Há diversas citações à Constituição e Corte Suprema, mas o que se vê é delinquência pura, uma sequência de desrespeito à Lei e à Ordem, muito antes de Donald Trump assumir o comando do país. É guerra aberta entre traficantes e cartéis de drogas, jovens perdidos em uma sociedade que perdeu completamente o rumo, sem ética nem valores, o que de certa forma também é a explicação para a vitória de Trump, que vendeu o resgate dos valores contidos no famoso American Dream como plataforma de governo. Era fake news, claro, hoje sabemos.
Há espaço também para os dramas humanos, especialmente na difícil relação de Jimmy com seu irmão Chuck, permeada de inveja, golpes baixos de parte a parte, culminando em uma tragédia anunciada. Também na relação de Jimmy com sua namorada e depois mulher, casamento arranjado mas fruto de uma relação genuína. Ou na de Mike com a neta e nora, também cheia de altos e baixos após o assassinato do filho de Mike em uma típica vingança mafiosa. Mike, aliás, é dos personagens mais densos de Better Call Saul e Breaking Bad, roubando a cena em diversos episódios, valeria uma série só para ele.
Se o foco de Breaking Bad é no tráfico de drogas, em Better Call Saul o tema aparece, claro, mas lateralmente, não é a principal questão da história. Saul Goodman se apresenta com um defensor dos direitos dos idosos, causa nobre, denunciando a exploração dessas pessoas por conglomerados, um em particular, do segmento de asilos, o que, aliás, também é típico dos Estados Unidos, onde as famílias usualmente colocam os parentes idosos nestas instituições. Saul começa fazendo testamentos e tem a sacada de perceber que pode mover uma class action, modalidade de ação bem típica do direito norte-americano, contra o conglomerado, vai juntando as provas em situações hilárias – há muito humor corrosivo em Better Call Saul – e convence o HHM a pegar o caso. Claro, confusão na certa, no final é Saul mesmo quem toca o processo, imaginando ser este o deal da sua vida.  
Além da questão dos idosos, há muito da esperteza e sagacidade que, mal comparando, se vê no Brasil nos rábulas que exploram o povo humilde em processos coletivos, o autor destas mal traçadas teve a oportunidade de atender uma grande seguradora, a maior do país, em um típico caso de judicialização de seguros habitacionais em Pernambuco, no qual um espertalhão explorava os proprietários de apartamentos do antigo BNH para que eles processassem a companhia, em uma conta que eu, você, amigo leitor, pagamos, pois no final da linha, era a Caixa Econômica Federal que pagava advogados, muitos, e a derrota nos tribunais. A palhaçada acabou quando a CEF percebeu que estava escorrendo apenas um bilhão de reais nesta brincadeira, que por sinal ainda não terminou. 
Em Better Call Saul, portanto, há de tudo. Crítica ao American Way of Life, profunda, estocadas em gente como Trump, mas também à esquerda que gosta de falar muito, mas pouco faz de relevante. Vale, e muito, assistir. #ficaadica!  (por Luiz Antonio Magalhães, em 13/6/2020)



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