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Para Anne Krueger, solução para crise está no multilateralismo

Anne Krueger, ex-economista-chefe do Banco Mundial, critica Trump e Bolsonaro e diz que, contra um inimigo comum a todos, solução tem de ser global, escreve Robinson Borges em artigo imprescindível publicado nesta sexta, 5/6, no Valor Econômico. Abaixo, na íntegra.

No dia 24 de maio, enquanto a edição dominical do “New York Times” estampava o nome dos quase 100 mil mortos de covid-19 em solo americano em sua primeira página, o “Daily News” estabelecia um duro contraste. Distante da austeridade do concorrente, a capa do quinto maior jornal do país trazia uma fotografia do presidente do país com a seguinte legenda: “Don joga golfe, enquanto as mortes nos EUA se aproximam de 100 mil”.
As duas publicações apresentavam a polarização em torno da covid-19: de um lado o avanço trágico nos EUA, de outro, a forma como o presidente Donald Trump lida com a pandemia. Para a ex-economista-chefe do Banco Mundial Anne Krueger, após ignorar alertas de cientistas sobre as implicações letais da covid-19, Trump responde à crise da “pior maneira imaginável”. “A falta de liderança deixa marcas. E as pesquisas sugerem que suas chances de reeleição estão diminuindo”, diz ela, em referência a sondagens como a do “Washington Post” e da rede ABC, que mostra o democrata Joe Biden com 53% das intenções de voto, contra 43% de Trump.
Na visão de Krueger, que também foi vice-diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), a sociedade americana pagará o preço por uma resposta leniente à pandemia. “A demora de três semanas, quando Trump dizia não ser nada, pode ter um custo de 36 mil vidas. O vírus se espalhou muito mais rápido antes de as medidas serem tomadas”, afirma. “A falta de testes e de uma coordenação nacional para oferecer equipamento de proteção individual também foi prejudicial.”
Segundo a economista, a tática de Jair Bolsonaro (sem partido), que tem mimetizado Trump em seu negacionismo, pode ter um resultado econômico negativo, diferentemente do que promete o presidente. “Tenho visto que o Brasil tem um surto tremendo de covid-19. Se persistir e crescer, as empresas domésticas vão ter dificuldade de quitar suas dívidas”, diz Anne Krueger. “A crise financeira global de 2008 começou com dívidas nos EUA, e elas eram todas em dólares.”
Assim como disseram o ex-economista-chefe do FMI Maurice Obstfeld e o ex-secretário do Tesouro dos EUA Larry Summers ao Valor recentemente, Krueger considera que a economia brasileira pode sofrer mais do que a de outros países por causa da resistência do presidente em adotar medidas de contenção do novo coronavírus. “Certamente concordo com Obstfeld. Para a saúde, a prioridade é a vida humana. Para a economia, tem de ser controlar a pandemia.”
Na avaliação de Krueger, a retomada econômica depende, antes de tudo, da rapidez da contenção do vírus, pois só assim a população vai ter sensação de segurança outra vez. “Parece que muitas pessoas acreditam que a abertura foi muito precoce e não é seguro sair; o resultado é que não há sequer a retomada da atividade econômica, como os 50% da capacidade permitida em restaurantes que eram esperados”, afirma.
Krueger atribui seu interesse pela economia aos efeitos da Segunda Guerra e à criação de organismos internacionais no pós-guerra para a estabilidade financeira global, como o FMI. Com esse ponto de vista e seu currículo no Banco Mundial e no próprio Fundo, considera que a economia global corre o risco de chegar a uma situação pior do que esteve na crise financeira de 2008, uma vez que agora os EUA praticamente fecharam a porta para a cooperação internacional. Sem uma resposta multilateral, os americanos sofrerão tanto quanto qualquer outro país.
Apesar do alarme, Krueger vê diferenças entre o choque de 12 anos atrás e o atual. “A pandemia é uma emergência de saúde global que desencadeou a crise econômica. O setor financeiro está em uma condição muito melhor do que em 2008, mas até os números indicarem que a covid-19 está sob controle - ou seja, R menor do que um, em que R é o número médio de pessoas contaminada por alguém que contraiu o vírus -, não sabemos quanto tempo durará a recessão”, afirma Krueger. “Se R cair rapidamente, 2008 terá sido pior. Mas, se os países não diminuírem efetivamente o contágio, ela poderá durar muito mais tempo e ser pior.”
No passado, a comunidade internacional teve uma resposta coordenada para crises com certas características da atual. As ameaças de Sars em 2003; o H1N1 em 2009; Mers em 2012; ebola em 2014-2016 e a crise financeira global de 2008 foram contidas por meio de ação multilateral rápida, compara. “Mas Trump mostrou apenas desprezo pelo multilateralismo, o que ajuda a explicar por que uma resposta global à crise da covid-19 ainda não se concretizou.”
Na semana passada, Trump encerrou as relações do país com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e disse que o organismo foi pressionado pela China para dar “direcionamentos errados” sobre o novo coronavírus.
Antes da pandemia, diz Krueger, já havia tendências desanimadoras para o protecionismo na economia mundial. “Certamente, seria de esperar que se reconhecesse que este é um inimigo comum de todos nós e que aproximasse os países da luta contra isso”, comenta a economista. “Em vez disso, a resposta inicial foi muito nacionalista. Se isso continuar, haverá claramente efeitos estruturais de longo prazo.”
Ao atacar a OMS e lançar outra frente na guerra comercial, Trump quase garantiu que a crise piorará, pondera Anne Krueger em artigo para o Project Syndicate. Para ela, a pandemia surgiu no contexto de uma tempestade econômica perfeita, combinando pressões recessivas já existentes, ampla disrupção do comércio global e um novo e inesperado problema: uma queda acentuada nos preços do petróleo.
Perguntada sobre como vê o impacto da elevação da tensão entre Washington e Pequim, Anne Krueger responde: “Eu estou muito preocupada com uma nova Guerra Fria entre a América e a China.”
No clima de incerteza, os exportadores não sabem se terão novas tarifas de repente, e os importadores relutam em expandir a capacidade produtiva doméstica porque não sabem se ou quando as tarifas existentes serão rescindidas, critica Krueger. O resultado, avalia ela no artigo, é que as políticas protecionistas continuam a interromper as cadeias de suprimentos e desencorajar o investimento em todo o mundo. “Esses fatores não apenas tornarão a próxima recessão mais severa; também estão tornando muito mais difícil organizar uma resposta global.”
Para ela, a pandemia não estará sob controle enquanto houver taxas crescentes de infecções em outras partes do mundo. “Um contágio viral é como um incêndio: são necessárias apenas algumas faíscas para desencadear um ressurgimento.” Por isso, não importa quão rigorosamente os países ricos tentem impedir que o vírus atravesse suas fronteiras, sempre haverá transmissão para constituir novo surto. Ou seja, sem vacina, o combate da pandemia, defende Krueger, também deve se dar nos países mais pobres, que estão mal equipados para a tarefa.
O problema é que a maioria dos países pobres não tem espaço fiscal para gastar na prevenção, tratamento e ajuda econômica. Para evitar uma tragédia humanitária, Krueger tem apelado para uma coordenação global de ajuda.
Aos 86 anos, Krueger continua ativa no debate, seja como professora na Universidade Johns Hopkins, senior fellow na Universidade Stanford ou nos artigos que escreve com regularidade. Entre 1982 e 1986, foi a primeira mulher a ocupar o posto de economista-chefe do Banco Mundial. Somente agora, com a indicação de Carmen Reinhart, a função passou a ser exercida por outra mulher. No governo de George W. Bush, aos 67 anos, tornou-se a primeira vice-diretora-geral do FMI. Entrou para a história do organismo como uma economista brilhante que se atreveu a manter as conversas focadas.
É conhecida sua visão da economia, que teria como função a compreensão do mundo. “Se você entender, pode dizer: ‘Aqui está o que não está funcionando’. É sobre entender o comportamento.” Hoje, diante de graves crises - sanitária, recessiva e, em muitos casos, política e social -, a atividade de economista parece ainda mais complexa e muito mais desafiadora.



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