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Conti: com estouro do cafofo de Atibaia, novos verbetes para as Forças Armadas

Artigo sensacional do jornalista Mario Sergio Conti, publicado neste sábado na Folha de São Paulo. Vale muito a leitura, íntegra a seguir.

O estouro do mocó de Queiroz-Bolsonaro em Atibaia botou os milicos no olho do pancadão. Ficou difícil entender a diferença entre quadrilha e esquadrilha, briga de rua e brigada na rua. É urgente atualizar o “Almanaque do Exército”, que na ditadura informava quem era quem na caserna e nos porões. A seguir, alguns novos verbetes, adequados às novas aventuras e desventuras da força armada.
Armas. Millôr Fernandes dizia que o voto era a arma do cidadão. Dava uma paradinha e completava: e o tanque de guerra é o voto do Exército. A arma do voto fez com que os tanques recobrassem o direito de voto. Agora eles são chamados a votar pelo sagrado direito à rachadinha.
Artigo 142. Juristas liberais dizem que esse item da Constituição impede o golpe. Mas José Murilo de Carvalho, grande estudioso do assunto, prova em “Forças Armadas e Política no Brasil” que a Constituição confere, sim, papel moderador aos militares —por obra e graça dos civis, inclusive de esquerda.
Ele escreve: “Parece haver um acordo tácito em torno da ideia de que a República ainda precisa dessa bengala. Não por acaso, chefes militares repetem sistematicamente que é seu dever constitucional intervir quando julgarem que as instituições correm risco”. É sintomático, diz, que em 31 anos de Constituição cidadã, os cidadãos nunca tenham tentado alterar o artigo 142.
Boquinhas. Comandante do Exército em 2018, o general Villas Bôas pressionou o Supremo a proibir que Lula concorresse à Presidência. Amparou o Cavalão, ganhou uma escrivaninha no Planalto e sua filha abiscoitou um cargo de confiança. O presidente, que não dá ponto sem nó, botou 3.000 milicos na Esplanada. Boquinhas prefiguram rachadinhas?
Braço forte e mão amiga. O lema do Exército resume suas funções: pau nos inimigos e afago nos amigos. Logo, deveria ajudar os brasileiros na pandemia. Mas o general que ocupou o Ministério da Saúde logo ocultou o número de vítimas e sabotou o confinamento. Não tem estratégia para o caso de desabastecimento ou vacinação em massa.
Curió, major. Bolsonaro lhe jogou confetes por ter assassinado guerrilheiros desarmados no Araguaia. Vice-rei de Serra Pelada, comandou a maior mina de ouro a céu aberto do mundo e virou estandarte do empreendedorismo milico-amazônico. Vide Mourão, Hamilton.
Estátuas fora do lugar. Como não houve revolução na Alemanha, seus filósofos suavizaram o 1789 francês. Da mesma forma, comentaristas brasileiros condenam a derrubada de estátuas de escravocratas nos Estados Unidos e na Europa. Acham imprudente que uma revolta popular derrube Bolsonaro.
Estátuas no lugar. O cronista Lourenço Diaféria escreveu na Folha, em 1977, que o povo urinava ao pé de estátuas de heróis como o Duque de Caxias, patrono do Exército. A ditadura o prendeu e ameaçou fechar o jornal. A estátua do dono de escravos continua lá —na cracolândia.
Lynn, Vera. Cantora britânica que morreu na quarta-feira, aos 103 anos. Era chamada de “namorada das Forças Armadas” porque ia às frentes de batalha e cantava para os soldados em guerra contra o fascismo:
“Don’t know where
Don’t know when
But I know
We’ll meet again
Some sunny day”.
Milhões morreram até que a gente pudesse se reencontrar num dia de sol. A pandemia não é a Segunda Guerra Mundial, mas o caminho será longo e difícil. Já são quase 50 mil os brasileiros mortos.
Haiti. Se o PT não tivesse mandado as Forças Armadas ocuparem o Haiti por 13 anos, a um custo de R$ 3 bilhões, os militares não teriam ficado tão saidinhos —a ponto de reocuparem o Planalto. O partido hoje evita o assunto.
Mourão, Hamilton. Vice-presidente, foi ungido marechal da Amazônia. Numa live com o cientista político Renato Lessa, o filósofo Paulo Arantes disse que a região é relevante porque, devido à sua diversidade ambiental, está fadada a ser um berço de pandemias. Se for presidente, Mourão —que rima com porão— tem tudo para revitalizar o empreendedorismo amazônico linha-dura.
Queiroz, Fabrício. Elo entre Bolsonaro, milicianos, PMs e funcionários-fantasma, é um pobre diabo que, contudo, expressa uma configuração contemporânea —o Estado mafioso. Exemplos: a Rússia de Putin, cleptocracias africanas, oligarquias das ex-repúblicas soviéticas, o Chile da Escola de Chicago e do general Pinochet, corrupto e assassino.
Retroescavadeira. Foi pilotada por Cid Gomes, coronel de Sobral, para atacar um motim de PMs bolsonaristas. Levou dois tiros e abriu uma nova fase na política nacional.
Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".



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