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Maria Cristina Fernandes: Congresso remoto terceiriza enfrentamento com o Executivo e tem pressão por impeachment

Sob deliberação remota há quatro meses, parlamentares terceirizaram ao STF o enfrentamento com o Executivo e agora se preparam para enfrentar pressão redobrada pelo impeachment, escreve a colunista do Valor Econômico em artigo publicado dia 11/6. Excelente análise, como sempre, vale a leitura.

A aprovação do projeto que transfere terras da União para os Estados de Roraima e Amapá, antigos territórios federais, arrancou vivas tanto do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), integrante da turma que morde o bolsonarismo, quanto do seu principal artífice, o presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), capitão da banda que assopra.
O dueto de antagonistas conterrâneos foi interrompido pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN). Votara a favor da iniciativa, mas denunciava a manobra que havia levado todos a retirar projetos prioritários de pauta em função do acordo para apenas colocar em votação remota o que estivesse relacionado à doença: “Ou a gente muda a regra ou cumpre a regra. Isso não tem absolutamente nada a ver com a covid”.
Não era a única queixa do senador. Prates reclamou ainda que os colegas que pediam para falar “pela ordem” deviam ser colocados para o fim da fila de quem se inscreveu para falar os três minutos regulamentados pela norma da votação remota.
O procedimento, comum nos apartes parlamentares, virou uma guerra no plenário virtual. O presidente do Senado, cuja contemporização com o bolsonarismo rendeu, além da transferência de terras, benesses como um hospital de campanha federal no Amapá, prometeu resolver o rolo dos apartes, mas não disse palavra sobre os jabutis da pauta.
Quatro meses depois, os procedimentos adotados pelas mesas da Câmara e do Senado para manter os trabalhos em funcionamento durante a pandemia se transformaram num poço de controvérsias. Se todos concordam que as sessões remotas foram a saída possível para manter as deliberações do Congresso, sobram divergências em relação ao poder redobrado dos presidentes, do colégio de líderes e até dos burocratas das mesas diretoras.
Os presidentes das Casas e os colégios de líderes definem a pauta, abrem a sessão e depois de manifestações parlamentares de três minutos, os projetos são votados. Se houver acordo com os líderes, o projeto entra em regime de urgência, o que não permite qualquer obstrução. Nos chats, foi aos funcionários que os parlamentares passaram a dirigir pedidos desesperados de que querem se fazer ouvir.
Apesar de ter como objetivo o bloqueio dos mais de 40 pedidos de impeachment que lá se acumulam, as negociações do governo com os parlamentares do Centrão também tiveram como pano de fundo o poder redobrado dos líderes partidários na nova dinâmica. Paralelamente, a oposição, além de perder poder de manobra, também não tem como se articular para reagir ao governo.
Os grupinhos que tradicionalmente se formam para articular, dentro e fora do plenário, as votações e encaminhamentos, estão inviabilizados. Se os parlamentares decidirem fazer uma chamada coletiva para discutir um projeto, paralelamente à sessão, correm o risco de perder a votação.
A discussão dos projetos também perdeu qualidade técnica porque nem sempre é fácil para o parlamentar manter conversas paralelas com os consultores legislativos durante a sessão. No plenário físico é mais fácil saber a quem se deve ou não prestar atenção. No virtual, o parlamentar que se descuidar pode acabar perdendo o encaminhamento de um projeto.
“As discussões muitas vezes se dão depois da votação”, queixa-se a senadora e presidente da CCJ do Senado, Simone Tebet (MDB-MS). Foi o que aconteceu na votação do projeto de ajuda aos Estados, quando o senador José Serra (PSDB-SP) acabou só tendo oportunidade de falar três horas depois que a votação já havia se encerrado. “Não dá para achar que, ao colocar sua posição em rede social o parlamentar esgota a discussão. A defesa de posições, a contestação e o debate se dá em plenário”, diz a presidente da CCJ.
É difícil encontrar, no Congresso Nacional, quem negue a mitigação da democracia remota. Foi essa a razão de o mecanismo ter enfrentado resistências no mundo inteiro. No Reino Unido foi aprovado em abril, mas se limitou a regulamentar sessões para discussão de temas relativos à pandemia, não votações. Sem reuniões deliberativas desde então, o Parlamento britânico tenta retomar as sessões 100% presenciais, mas enfrenta a resistência dos integrantes mais velhos em comparecer.
Nos Estados Unidos, onde a Câmara também adotou sessões remotas, as deliberações foram permitidas contra o voto de 189 deputados (e 217 a favor). As regras, no entanto, exigem que o voto seja dado em plenário por um representante do parlamentar devidamente autorizado a fazê-lo. A resistência dos republicanos ao sistema se deve à percepção de que se trata de um instrumento de força nas mãos da presidente da Casa, a deputada democrata Nancy Pelosi, que estaria a suprimir o debate e os espaços de contestação.
Desde o início do funcionamento do Sistema de Deliberação Remota no Brasil, os entraves à negociação confirmam, em grande parte, os temores mundo afora em relação ao sistema. Na votação do projeto de lei de ajuda aos Estados e municípios, um parlamentar quis tirar o destaque a uma emenda, já contemplado por um colega, e foi impedido pelo presidente da Casa. “Ligue para ele, deputado”, disse Rodrigo Maia, sugerindo que o colega colocasse a sessão no “mute” para negociar com o colega por telefone.
Maia não abriu mão da presença na Câmara. Enquanto comanda os trabalhos, o presidente da Casa, conhecido por não largar o celular, também troca mensagens com os deputados, registradas nas notas taquigráficas, mandando-os tirar o microfone da função mudo ou se valer do ícone com um aceno para pedir uma questão de ordem.
No Senado, o chat das sessões virtuais é conduzido pela secretária-geral-adjunta da mesa diretora, identificada nas notas taquigráficas apenas como SGM Adjunta, que passa quase todo o tempo domando os incautos. “Senadora Soraya [Thronicke], para se inscrever basta ‘levantar a mão no sistema’”, recomendou a funcionária numa sessão do dia 16 de abril. Oito minutos depois, a senadora bolsonarista do Mato Grosso do Sul, que continua no PSL, ainda não havia descoberto onde ficava a mãozinha virtual.
Câmara e Senado também adotaram meios distintos para regulamentar o trabalho remoto. O presidente da Câmara aprovou, em plenário, uma resolução com as normas. O do Senado se limitou a baixar um ato da mesa diretora. No Congresso, valeu o modelo do Senado e passou a ser regulado por um ato da mesa. Ambas as Casas desenvolveram um aplicativo que o parlamentar pode baixar ou acessar o Zoom para ter acesso. Depois que foram identificadas falhas de segurança, as duas Casas passaram a adotar uma senha enviada apenas meia hora antes de seu início. Maia conduz as sessões da própria mesa da Câmara, enquanto Alcolumbre o faz de uma sala no Prodasen, a Secretaria de Tecnologia da Informação do Senado. Para validar o voto, o parlamentar deve se colocar frente à câmera do computador.
O Sistema de Deliberação Remota tem se restringido ao plenário. “É nas comissões onde, de fato, se dá o processo legislativo. Como são poucas as sessões, as matérias chegam cruas ao plenário”, diz o consultor legislativo do Senado, Luiz Alberto dos Santos. “Foi a saída possível para o Congresso, mas acaba atrofiando seu papel. É nas comissões, por exemplo, onde são realizadas as audiências públicas, onde se dá a interlocução com a sociedade”, confirma o deputado Silvio Costa Filho (PE), primeiro vice-líder do Republicanos.
Há um acordo tácito para que as deliberações remotas não sejam alvo de judicialização. Nem todos os pressupostos desse acordo, no entanto, são cumpridos. A ausência de sessões deliberativas nas comissões ampliou as brechas para a inclusão de temas não relacionados à proposição original das medidas provisórias, os chamados “contrabandos”. O Supremo havia imposto um limite para isso determinando que as MPs só seriam levadas ao plenário depois de apreciação pela comissão mista. Com a pandemia, a restrição caiu por terra.
No Senado, durante a votação sobre as novas atribuições do Banco Central na operação de títulos no mercado, a mesa diretora acabou chancelando o acolhimento de uma emenda de mérito sob a roupagem de “emenda de redação”. O quiproquó acabou no Supremo. Outro acordo rompido foi o de que, durante o trabalho remoto, nenhuma emenda constitucional seria votada. Abriu-se exceção para a votação do “Orçamento de Guerra”, que deu plenos poderes para o Executivo nos gastos relativos à pandemia.
Nem o ato da mesa do Senado nem o projeto aprovado pela Câmara estabeleceram prazo para o funcionamento remoto, mas tanto Maia quanto Alcolumbre já se comprometeram com o retorno do trabalho presencial em julho.
A extensão do trabalho remoto tem preservado os presidentes das duas Casas tanto das pressões pelo andamento das representações contra os filhos do presidente, o deputado Eduardo (sem partido-SP) e o senador Flávio (sem partido-RJ), no Conselho de Ética, quanto do acolhimento de um dos mais de 40 pedidos de impeachment já protocolados.
É mais confortável para os comandantes do Congresso terceirizar o embate com o Executivo para o Judiciário, até porque o presidente da República tem sido agressivo na atração de parlamentares para sua base de apoio. A pressão para que o Congresso entre na briga, no entanto, só cresce. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) se valeu do Twitter para deixar pública sua pressão: “É imperioso retomar as sessões presenciais. Com distanciamento, votação em gabinetes, poucos assessores, mas com a tribuna aberta. Precisamos engrossar o respaldo ao Judiciário”. Preservado da covid-19 pelas sessões remotas, o Congresso está com os dias contados para ser contaminado pela disputa em torno da abreviação do bolsonarismo.
Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente


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