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Marina Silva: Não é normal não ter uma casa, não ter água para beber, não ter um trabalho para tirar seu sustento

No Dia Mundial do Meio Ambiente, a ambientalista e ex-ministra Marina Silva reflete sobre gênero, raça, as desigualdades geradas pela pandemia e a política ambiental do governo Bolsonaro: A única coisa que o Brasil tem para celebrar é a ação da sociedade civil, reporta  Leda Antunes em matéria publicada no site do jornal O Globo na sexta, 5/6. Sempre importante ouvir o que Marina tem a dizer. Abaixo, na íntegra.

Em meio a um aumento de 171% no desmatamento na Amazônia em abril, uma intensificação das ameaças a terras indígenas e áreas de proteção ambiental e mais de 30 mil mortes e 500 mil infectados pelo novo coronavírus, o Brasil terá a pior semana do meio ambiente da sua história em 2020. A avaliação é da ex-ministra Marina Silva (Rede) sobre o período do ano usualmente marcado por ações de conscientização sobre a importância da preservação ambiental, em referência ao Dia Mundial do Meio Ambiente, comemorado em 5 de junho. "A única coisa que o Brasil tem para celebrar é a ação da sociedade civil, que tem conseguido, ao longo da História, frear e barrar agendas de grandes retrocessos ambientais", afirmou a ex-senadora.
Marina Silva participa nesta sexta da live "Os desafios para o meio ambiente no pós-pandemia" ao lado do fotógrafo Sebastião Salgado e do físico Paulo Artaxo. Com mediação da colunista Miriam Leitão, o debate está marcado para às 11h e será transmitido no site do GLOBO e nos canais do jornal nas principais plataformas digitais.
Em entrevista à CELINA,  Marina  critica o que considera a política "anti-ambiental" do governo Bolsonaro, fala sobre o futuro pós pandemia, sobre as dificuldades que enfrentou em sua trajetória por ser mulher, negra e de origem pobre e ressalta a importância do debate sobre gênero e racismo no país. Ela conta ainda que está desenvolvendo com intelectuais, pesquisadores e outros representantes políticos uma ação no Brasil que já tem sido executada na América Latina e na Europa, articulando um manifesto em defesa de uma retomada sustentável da economia após a pandemia. "No Brasil, isso é imperativo", diz.
Ao longo da vida, Marina Silva contraiu cinco malárias, três hepatites e uma leishmaniose. Agora, aos 62 anos, está no grupo de risco da Covid-19. Cumprindo o isolamento em Brasília desde o dia 1º de março, ela tem se dividido entre os compromissos públicos, agora todos virtuais, e as responsabilidades da casa. A ex-ministra afirma que dispensou os funcionários que a ajudavam, mantendo seus salários: "Eles também têm direito de ficar em quarentena.
CELINA: Apesar da pandemia e do isolamento social, o desmatamento aumentou e se intensificaram as ameaças sobre terras indígenas e áreas de proteção pelo garimpo. Há pessoas e empresas se aproveitando desse momento para intensificar a atividade predatória na Amazônia? A floresta e as comunidades tradicionais estão ainda mais vulneráveis?
MARINA SILVA: Com certeza a floresta e as comunidades tradicionais estão mais vulneráveis neste período em todos os biomas brasileiros: no Pantanal, na Amazônia, no Cerrado e na própria Mata Atlântica, onde o ministro do Meio Ambiente aproveitou para tomar medidas para regularizar áreas ilegalmente ocupadas até 2008, quando isso é proibido por lei [o ato foi revogado por Ricardo Salles na quarta-feira, 3]. E digo que não sei se dá para a gente dar esse nome de “empresas”. É a indústria da grilagem, a indústria do roubo de madeira e a indústria do garimpo ilegal que estão atuando a todo vapor. Nem merecem esse título de “empresa”. Nós temos uma situação em que o governo faz vista grossa para todas as denúncias, principalmente as do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, que monitora o desmatamento], e ainda pune os servidores do Ibama e do ICMBio que cumprem com suas obrigações.
As comunidades indígenas também estão totalmente vulneráveis. Os dados nos mostram que elas estão vivendo uma situação muito complicada em relação às ameaças que estão sofrendo. Já são 70 etnias que foram alcançadas pela pandemia, mais de 1.600 infectados e mais de 160 mortes por Covid-19 envolvendo os povos indígenas. É uma situação de total vulnerabilidade, principalmente nos municípios que são muito remotos, onde não só os indígenas, mas a população também sofre, pois não há sistema de emergência, de UTIs. No Amazonas, por exemplo, acho que só tem UTI na capital. A situação é muito difícil.
Na questão ambiental, o aumento do desmatamento é uma coisa assustadora em relação a esse período. Tivemos um aumento de 171% na área desmatada da Amazônia em comparação com o mês de abril de 2019.
A senhora acha que esse avanço do desmatamento ganha força com a fala do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril? Que avaliação faz da fala dele?
A fala em si já é execrável, porque é um ministro do Meio Ambiente tramando contra a sua própria pasta e a sua própria atribuição. Ele tem um mandato legal. A lei 6.938, de 1981, estabelece o ministro do Meio Ambiente como aquele que lidera a implementação do Sistema Nacional de Meio Ambiente. Essa liderança é feita em convergência com todo o arcabouço legal existente no país,  principalmente o artigo 225 da Constituição. O ministro estava prevaricando e praticando desvio de função de acordo com a lei, tanto em relação ao artigo 225, quanto em relação a lei 6.938, de 1981.
E a fala é mais execrável ainda em função do contexto em que foi dita. Naquele momento, já tinhamos mais de 40 mil pessoas contaminadas, 2.900 pessoas mortas pela Covid. E ele diz que era bom aproveitar que vocês da imprensa estavam dando atenção só para o coronavírus, como se dissesse que é uma coisa menos importante, para “passar a boiada” e desregulamentar tudo que precisa ser desregulamentado. Se esse tipo de atitude favorece os contraventores? Com certeza. E ele próprio tentou a medida para regularizar áreas na Mata Atlântica durante a pandemia, o governo pautou a MP da Grilagem para ser votada e ela só não foi votada por uma grande mobilização da sociedade.
Também houve a demissão de servidores, a imposição de que os servidores não falem com a imprensa. Isso nunca aconteceu. Um técnico tem o direito de dizer quais são as suas observações, para a sociedade saber o que o olhar técnico está dizendo exatamente e, assim, evitar que as decisões sejam políticas. Tudo isso favorece a contravenção. O cenário que temos hoje de desrespeito à legislação ambiental, de práticas criminosas que envolvem desmatamento, grilagem, liberação em massa de agrotóxicos venenosos que são banidos em outros países favorece o caos ambiental.
Por outro lado,  durante a pandemia, mundo afora se viu uma redução de emissões e poluição em função da menor circulação de pessoas e da diminuição da produção industrial. Até os peixes voltaram a aparecer nos canais de Veneza. Essa resposta da natureza, de uma recuperação rápida com a pausa nas atividades humanas, pode trazer uma lição positiva?
A lição que está sendo colocada é que, se mudarmos a nossa maneira de produzir, consumir, a nossa forma de depositar resíduos e de gerar energia, a natureza responde. Obviamente que essa não é uma situação desejável, em que a proteção do meio ambiente aconteça em prejuízo da vida e das condições materiais de vida das pessoas. Ninguém pode fazer apologia dessa forma. A única coisa que temos é uma evidência de que a natureza responde positivamente quando os seres humanos são proativos e agem no sentido de reverter seus processos de degradação ambiental. Mas agora temos uma situação em que o lixo parou de ser reciclado, então vamos ter uma quantidade inimaginável de resíduos sendo lançados em aterros sanitários e chegando nos oceanos. A forma correta é, daqui para frente, sabendo que a natureza responde, fazer isso proativamente, não porque é uma imposição com base no sofrimento, mas porque há uma ação com base no entendimento de que é o que deve ser feito.
Mas a senhora acha que faremos tudo da mesma forma? Ou existe uma possibilidade de mudança?
A gente teve experiências muito importantes de solidariedade, de pessoas que estão ressignificando suas experiências em relação a temas muito importantes, mas por mais sonhadora que eu seja — uma “sonhática inveterada”, que foi um termo que eu inventei — eu não acredito que vamos ter uma conversão em massa das pessoas para algumas causas, sejam elas ambientais, sociais ou o que for. Porque é um processo que tem que ser disputado. É uma disputa, um investimento. Do mesmo jeito que temos muitos que estão fazendo ações fantásticas de cooperação, de solidariedade e de entendimento de tudo que está acontecendo, por outro lado vamos ter aqueles que vão voltar mais ávidos para precarizar ainda mais o trabalho, para flexibilizar mais ainda os regulamentos ambientais — como estão fazendo o ministro e seus apoiadores.
Na Europa, há um grupo relevante de pessoas do mundo acadêmico, do mundo político e  cultural com um manifesto pedindo uma recuperação sustentável da Europa. Temos também uma ação da própria União Europeia nesse sentido. Na América Latina, eu mesma sou signatária de uma articulação semelhante. E, no caso do Brasil, tenho conversado com algumas pessoas para que a gente possa fazer a mesma iniciativa. Estamos iniciando isso para termos algo ativamente aqui no Brasil.
A senhora avalia que no Brasil a articulação precisa ser mais incisiva, pelo fato de o próprio governo agir dessa forma em relação à questão ambiental?
A necessidade é no mundo inteiro, em vários níveis. Claro que, aqui no Brasil, ela se coloca como um imperativo, porque nós estamos vivendo um governo que deliberadamente resolveu destruir a governança ambiental brasileira. No Brasil, essa necessidade é maior e o sucesso dela dependerá da ação não só de governos estaduais e municipais, mas é fundamental a ação das empresas. Elas podem fazer acontecer a diferença, num contexto inclusive de desautorização das atrocidades que vêm sendo cometidas pelo governo.
Nesse momento, essa mudança também vai depender não só de questões de natureza técnica e de investimento econômico, mas de elementos de natureza política. Uma vitória dos democratas nos Estados Unidos, por exemplo, vai ajudar muito nessa agenda que a União Europeia está se dispondo a encaminhar no processo de reconstrução. Hoje, com o governo dos republicanos, com o Trump, o governo chinês muito mais fala do que faz em prol do meio ambiente, porque não tem um concorrente ativo nessa agenda. Eles caminham com certo alinhamento nessa agenda ambiental, o que dificulta muito os esforços do mundo, especialmente da União Europeia.
Isso consequentemente afetará o Brasil…
O Brasil já está sendo afetado pela sua agenda anti-ambiental. Quando o Fundo soberano da Noruega exclui a Vale e a Eletrobras, isso já é consequência das atitudes anti-ambientais desse governo; quando uma rede de empresas do Reino Unido decide que, se medidas contrárias a povos indígenas e à proteção da floresta e da biodiversidade continuarem em curso no Brasil, elas não comprarão mais os produtos brasileiros; ou quando a Holanda decide que não vai ratificar o acordo de comércio do Mercosul com a União Europeia, isso já é o Brasil sofrendo consequências dessa agenda.
Nessa Semana do Meio Ambiente, que talvez seja uma das piores de toda a nossa História, a única coisa que o Brasil tem para celebrar é a ação da sociedade civil. Só não tivemos a MP da Grilagem aprovada em função da mobilização da sociedade. Claro que o presidente Rodrigo Maia cumpriu um papel importante, mas ele cumpriu esse papel porque foi o tempo todo pautado, orientado e pressionado e teve a sensibilidade política de tirar da pauta alguns projetos anti-ambientais, principalmente a MP da Grilagem. A sociedade civil tem conseguido, ao longo da História, frear e barrar agendas de grandes retrocessos na questão ambiental.
Existem evidências de que as mulheres são mais afetadas pelas mudanças climáticas, pela devastação ambiental e, inclusive, pela pandemia. Defensores do meio ambiente são extremamente ameaçados no Brasil, mas quando a ativista é uma mulher, essa vulnerabilidade aumenta. Considera importante olhar as questões ambientais sob uma lente de gênero?
Com certeza. Aliás, as mulheres têm dado uma grande contribuição para a agenda da sustentabilidade e da defesa do meio ambiente. Nós temos mulheres como Vandana Shiva, como Wangari Maathai, que infelizmente perdemos. Aqui no Brasil, temos o símbolo dessa luta na figura da Irmã Dorothy, que também perdeu sua vida. E temos mulheres que continuam sendo ameaçadas hoje por defender suas comunidades e seus territórios. São mulheres de comunidades tradicionais, ativistas e mulheres indígenas.
Eu penso que a sensibilidade do olhar feminino ajuda muito no debate sobre a necessidade da mudança de modelo, para um que não crie essa dicotomia entre economia e ecologia, em que a ecologia não tenha que ser submetida aos interesses imediatos da economia. As mulheres têm um olhar muito mais voltado para a cooperação, para projetos que tem mais resiliência em termos ambientais.
Nesse contexto em que as comunidades indígenas estão muito ameaçadas, qual é a importância do fortalecimento de lideranças indígenas femininas, como a deputada Joenia Wapichana, e a ex-candidata à vice-presidência Sonia Guajarara?
É muito importante. E isso é uma conquista das mulheres indígenas dentro do movimento, em que elas passaram a ter um papel de liderança. No início, você tinha a presença muito maior de lideranças masculinas, mas no decorrer desse processo, as mulheres foram assumindo esse protagonismo a ponto de termos mulheres como Sonia Guajajara, que atua no conjunto da sociedade representando a causa. Temos a Joenia, a primeira mulher indígena eleita deputada federal em 500 anos de História. É a primeira índia no pleno do Congresso para defender a causa do seu povo.Temos uma mulher que é simbolo dessa luta de defesa do seu povo e da sua terra que é a Tuíra Kayapó.
A senhora tem uma vivência de anos na defesa do meio ambiente e na política institucional. Sofreu preconceito por ser uma mulher, negra, do Norte do país?
Sim. Sou negra, sou mulher, sou de origem pobre. Sempre vem aqueles que tentam desqualificar o seu trabalho e até mesmo impedir a sua trajetória. Eu sempre tive um respeito muito grande das pessoas, inclusive de adversários, mas quando você vai conquistando uma posição nos espaços de poder e tem possibilidades de ampliar a sua fala e a sua atuação, essas formas de preconceito acontecem de forma velada, mas nem por isso deixam de ser cruéis, autoritárias, anti-democráticas, quando não são mesmo do preconceito estrutural.
Eu me lembro da primeira vez que viajei com uma amiga querida. Ela é branca, descendente de italianos. Não fazia muito tempo que eu tinha chegado em Brasília, eu não era tão conhecida. Fizemos uma viagem juntas e, quando chegamos no hotel, aconteceu aquela coisa que é inconsciente, é da própria cultura, e a pessoa faz sem nem saber: a pessoa que ajuda a guardar as bagagens pegou as da minha amiga, já estava guardando, entregando a chave do quarto. Minha amiga ficou meio constrangida e de uma forma delicada disse: “Talvez seja melhor você levar primeiro a senadora, porque ela está muito cansada e ainda vai fazer a palestra daqui a pouco”. A pessoa quase soltou as malas no chão e falou: “Mas ela é a senadora? Pensei que fosse a senhora.”
Essas são coisas mais leves, que você lida de forma educativa, construtiva, porque foi uma pessoa simples, inclusive uma pessoa negra que fez isso, porque para ela, aquele lugar é sempre ocupado pelos brancos. Não tem como fazer uma crítica a essa pessoa, mas atuar educativamente para transformar isso de forma que todos nós tenhamos igualdade de oportunidades para ter representação em pé de igualdade em todos os segmentos da sociedade brasileira.
Mas nas campanhas, por exemplo, a violência com que fui tratada, principalmente em 2014, com certeza tinha a ver com o fato de eu ser uma mulher negra, com o fato de eu ser seringueira, do Norte, de ser evangélica. Me eram atribuídas coisas como adversária que não eram atribuídas aos candidatos homens. As pessoas se davam o direito de decretar coisas completamente cruéis em relação aos meus compromissos e a minha biografia, que com certeza não fizeram com adversários homens. E por que fazer isso comigo? Isso eu fui elaborando depois. Porque falar de uma mulher com uma aparência que não é o protótipo do político que fala grosso, que bate na mesa, que é de origem pobre, dizer que ela é fraca, que é chorona, que é isso, ou aquilo, fica muito mais fácil. A campanha publicitária da Dilma, orquestrada pelo João Santana, usou todos os ícones do machismo e do patriarcalismo para me atacar, fazendo exatamente aquilo que duas campanhas femininas deveriam estar combatendo.
A senhora trouxe na sua fala um pouco da discussão sobre o racismo e essa discussão emergiu com mais força nessa última semana com os protestos contra a morte de George Floyd tomando cidades nos EUA e chegando ao Brasil, onde ganham o reforço das denúncias de violência policial contra jovens negros. Acha importante que esse debate aconteça neste momento?
É fundamental que esse debate aconteça, questionando o racismo estrutural que está plasmado nos equipamentos públicos, no atendimento às pessoas, na abordagem policial, nas oportunidades nos postos de emprego, nas oportunidades nos postos de comando dentro de empresas, instituições de ensino, dentro dos órgãos públicos e dos meios de comunicação. Esse debate já vem acontecendo, quebras de paradigmas estão sendo feitas, mas ainda é numa velocidade muito aquém da necessidade social, cultural, política, ética e de justiça.
O debate é mais que oportuno, mas infelizmente ele é pautado quando acontecem grandes atrocidades contra a população negra. Ele deveria ser parte do processo da discussão política, da discussão que deve plasmar o cotidiano político, social e cultural, mas que não acontece e, em momentos de grandes atrocidades, ele aflora. Isso é terrível. Eu não consegui assistir aquelas cenas. São terríveis. Uma pessoa que não consegue respirar. E não é a primeira vez. Isso virou um símbolo da falta de oxigênio político, de oxigênio das oportunidades, de oxigênio econômico para a população negra.
Na quarta-feira (3), registramos mais um recorde de mortes por Covid-19 em 24 horas no Brasil. Nesta mesma semana, o presidente Jair Bolsonaro disse que lamentava as mortes, mas que esse era o destino de todo mundo, e medidas de flexibilização da quarentena estão sendo adotadas nos estados. A senhora acredita que há uma negação da gravidade da situação por parte de alguns governantes?
O Bolsonaro, de todos os governantes, é o que continua sem arredar pé da sua loucura negacionista. Ele é negacionista em relação à ciência e traduz isso quando nega as mudanças climáticas e, agora, chega ao paradoxismo do negacionismo que é negar a própria pandemia, que está matando milhares de pessoas no país. Já são mais de 500 mil contaminados, mais de 30 mil mortos. Essa atitude de negação da realidade tem um custo econômico, social e, espero, que também político. Espero que todas essas negligências sejam percebidas pela população.
A única forma de encarar a pandemia com alguma eficiência é ajudando no isolamento social. E o presidente promove uma ação contrária a isso. Ele toma medidas tímidas de financiamento das medidas de isolamento social, e isso precisa ser bancado pelo governo, tanto em relação às pessoas, quando em relação às empresas, para que a gente não tenha demissões em massa, principalmente nas pequenas e médias empresas e os microempreendedores.
O presidente Bolsonaro promove a desorganização. É um absurdo  isso aconteça na provável pior crise em termos de saúde pública, de prejuízos econômicos e sociais deste século. Se não fosse a mídia, que está cumprindo seu papel de informar, as pessoas não estariam nem sequer sendo orientadas. Nós temos uma situação de duplo crime: de lesa-pátria e lesa-humanidade.
A senhora acredita que há uma convergência entre a postura negacionista em relação às mudanças climáticas e  à própria pandemia? E a quem esse discurso interessa?
A convergência é total. A negação da pandemia é a própria negação da ciência e uma negação da própria realidade. Estamos vivendo quase um espaço de loucura, de alucinação política, porque as pessoas estão morrendo. Mais de 30 mil mortes é mais do que a população de vários municípios do Brasil. É como se pegássemos a população inteira de um município de 30 mil pessoas e tivéssemos todas elas em caixões. Negar uma situação como essa, não ter uma atitude de solidariedade, dizer de uma hora para outra que isso é normal, que é isso mesmo que vai acontecer com todos nós, é um ato de profunda insensibilidade e de desdém com a vida.
Parece que ainda estamos no olho do furacão, especialmente no Brasil. Mas outros países já retomam alguma normalidade, e muito se discute sobre o que vai ser o mundo pós-pandemia. O que a senhora espera do futuro?
Nós temos visto experiências muito bonitas de solidariedade, de respeito ao sofrimento dos outros, de formas criativas de ajuda e de como continuar fazendo nossas atividades nesse período. A tecnologia tem ajudado muito nisso. É muito diferente uma pandemia no século XXI, com os meios tecnológicos que dispomos hoje. Mas não acredito que vamos ter uma conversão em massa para novas práticas e posturas. Temos manifestos na Europa, na América Latina, buscando que esse novo normal não repita as anormalidades anteriores. Não é normal não ter uma casa, não ter água para beber, não ter um trabalho para tirar seu sustento. A concentração de renda do mundo, onde 1% tem mais riqueza do mais de 4 bilhões, tudo isso já não era normal.
Nós vamos ter que investir num mundo que aposte muito mais nos negócios sociais, como diz o professor Muhammad Yunus, Nobel da Paz. São negócios cujo objetivo não é gerar e acumular riqueza para poucos, para um grupo, mas é oferecer bons produtos, bons materiais, que sejam produzidos protegendo a água, as florestas, as populações, que gerem mais empregos e que os dividendos sejam sempre reinvestidos em melhores produtos, mais bons materiais e mais bons empregos. É isso que eu quero que aconteça.



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