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O fim da era de ascensão social

Os quase cem anos da era de ascensão social no país estão chegando ao fim nestes dias de incerteza e de desorientação política. É verdade que o Brasil da Revolução de Outubro de 1930, que confirmou a opção pelo trabalho livre com direitos sociais, começara a decair com a opção econômica neoliberal de 1964. Esse processo poderia ter sido revertido se houvesse aqui, em vez de golpismo lucrativo, suficientemente amplo discernimento político e empresarial. Aquela foi uma era de otimismo e esperança em que os gestores políticos da economia brasileira criaram condições para que o país superasse os bloqueios do atraso para ingressar no mundo moderno. Eram inteligentes, criativos e patriotas. As sociedades não mudam da noite para o dia. Precursores daquele momento de reconfiguração social, de opções corajosas e criativas, já haviam começado a agir nas décadas finais da escravidão, escreve José de Souza Martins no Valor, em artigo publicado dia 7/5. Continua a seguir.


O pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910) analisou e interpretou o escravismo na perspectiva do que poderia ser o Brasil e ainda não era porque agrilhoado ao cativeiro, que escravizava corpos e mentes. Também dos senhores de escravos. Eles próprios, cativos da mentalidade senhorial.

O grande empresário paulista Antônio da Silva Prado (1840-1929), conservador, o maior fazendeiro de café do mundo, banqueiro, industrial, diretor e acionista da melhor ferrovia brasileira, ministro do Império na crise do escravismo, revolucionou o Brasil. Promoveu e personificou a modernidade possível, que o país podia e de que carecia. Seria o primeiro prefeito de São Paulo por dez anos.

Fez na cidade uma precursora revolução urbana, transformando-a de um povoado de casas de taipa numa metrópole moderna.

Morreu em 1929, deixando ao Brasil o maior legado de sua história social e econômica: desenvolvera a estratégica política de extinção da escravidão contra os interesses imediatistas dos fazendeiros, especialmente os de café. Abriu o caminho para a generalização do trabalho livre através da imigração subvencionada. Foi um subversivo do bem.

A princesa Isabel teve a clareza de assinar a lei que resultou da interpretação social e econômica e da articulação política desses dois artífices da história.

O principal aspecto da trama abolicionista e modernizadora foi a da sua “engenharia social”. Está num discurso de Antônio Prado ao Senado, em 1888, que definiu a política de abolição da escravatura por meio de mecanismos de política econômica e social que assegurariam aos trabalhadores liberdade e possibilidade de ascensão social.

Os milhões de desvalidos do país, pela primeira vez em nossa história, tornaram-se trabalhadores livres, mas também e sobretudo, ainda que de diferentes modos, sujeitos de direitos sociais.

Em contraste com esse momento politicamente criativo, a iníqua falta de política social de agora está revertendo o trabalho a mero instrumento de uma riqueza desproporcional e em contraste com a extensa e clamorosa miséria dos dias atuais. A maior metrópole do país miserabilizada por favelas, cortiços e cafofos de moradores de rua, gente despejada da vida e despejada do Brasil. Um país que fabrica miséria.

Não apenas Nabuco e Prado devem ser lembrados nesta hora de desencanto e medo em face da incompetência organizada dos omissos e irresponsáveis. Lembro de Roberto Simonsen (1889-1948), engenheiro formado pela Escola Politécnica de São Paulo, industrial, fundador da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.

Empresário esclarecido, foi um dos fundadores da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, que inaugurou entre nós as pesquisas e estudos sobre a cidade e sobre as condições e o modo de vida da classe trabalhadora. Um jeito de administrar o risco de efeitos perversos na acumulação capitalista sem compromisso social.

Simonsen era também historiador da economia brasileira e professor na ESP. Seus estudos lhe mostraram a importância de encerrar a história econômica de ciclos - o ciclo do pau-brasil, o ciclo da cana-de-açúcar, o ciclo do ouro, o ciclo do café. Uma nova era econômica era possível, baseada na indústria como polo dinâmico da economia brasileira, com o reconhecimento ao direito de ascensão social da classe trabalhadora.

Foi teórico do nacional-desenvolvimentismo, o modelo econômico do empresário responsável e consciente, preocupado com a empresa e a economia, mas também com a responsabilidade social do capital e do capitalista.

A manipulada insurreição eleitoral antipolítica de 2018 subverteu a ordem. Anexou o Brasil ao Ministério da Economia como uma província secundária e incômoda. Lugar de um experimento econômico e sanitário sem fundamentos científicos. E dos caprichos de um presidente sem compromisso com o bem comum.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).



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