Pular para o conteúdo principal

Irresponsabilidade é um método de ação política para Bolsonaro

Os governos democráticos, por definição, devem responder ao público e assumir as responsabilidades pelos atos governamentais, por meio de informações fidedignas que possam ser acessadas de forma transparente e que sirvam para a fiscalização da sociedade e de instituições públicas independentes. Há na língua inglesa um termo para esse processo: “accountability”, cuja tradução mais usada no Brasil tem sido responsabilização, porque, além da prestação de contas, espera-se que os governantes sejam responsabilizáveis por suas políticas públicas. Dito isto, pode-se dizer que a irresponsabilidade é a marca do presidente Bolsonaro, tornando-se um método de ação política para todo o bolsonarismo. Cabe lembrar que a “accountability” foi rara ao longo da história brasileira porque a democracia demorou para florescer nestas terras. Somente com a Constituição de 1988 é que os governantes se viram obrigados a responder constantemente ao público. Comparado ao que ocorrera em toda a trajetória republicana do país, houve muitos avanços, de modo que os governos se tornaram mais abertos ao escrutínio público, escreve Fernando Luiz Abrucio no Valor, em artigo publicado em 28/5 no jornal. Continua abaixo.


Evidentemente é preciso aperfeiçoar vários dos instrumentos de responsabilização do poder público, fazendo da “accountability” um processo marcado mais pela cobrança do que fora efetivamente feito pelos governantes e menos um objeto de vingança política ou de tentativa de substituir os eleitos por não eleitos que se acham salvadores da pátria. Só que os ajustes devem servir para continuar na trilha de maior fiscalização governamental, e não para reduzir os controles democráticos sobre os governantes.

O governo Bolsonaro é um corte profundo no processo de aumento da responsabilização dos governantes brasileiros. Não apenas porque seu desejo é não ser fiscalizado ou controlado pela sociedade e pelas instituições públicas. O bolsonarismo tem uma sede incomensurável pelo poder, mas sua peculiaridade maior é ter criado um método que busca a legitimidade pela irresponsabilidade.

Em outras palavras, ser irresponsável não é apenas uma maneira de evitar ser controlado para concentrar poder. Soma-se a esse desejo de ser “unaccountable” o ponto central do bolsonarismo: o uso de verdades alternativas como forma de manter seu exército de apoiadores e enfraquecer o sistema de controles. O fato é que Bolsonaro não quer apenas ser poupado do dever de responder ao público pelos atos de seu governo; mais do que isso, ele quer subverter toda a lógica que sustenta a democracia contemporânea.

A expressão verdades alternativas advém aqui dos “alternative facts” inventados pelo trumpismo e seus ideólogos. O objetivo desse conceito é contrapor-se à lógica do “sistema”, tratado como um “conluio contra o povo”, e criar um modo paralelo de exercer o poder. Para instaurar esse método de irresponsabilidade como forma de governar e de legitimar suas ações políticas, o movimento bolsonarista utiliza cinco instrumentos: o uso constante da mentira pública, a comunicação maciça nas redes sociais em torno de mitos e confusões, o repasse da culpa de todos os problemas a terceiros, a criação de um governo guiado pela intransparência e, por fim, ações deliberadas para enfraquecer ou mesmo inviabilizar os controles democráticos.

A primeira característica da lógica das verdades alternativas é mentir descaradamente, mesmo quando fatos, documentos ou números desmentem o que foi exposto por membros do governo. No fundo, o bolsonarismo usa uma estratégia política: afirma que tudo que é contraposto às suas falas deriva de visões deturpadas produzidas pela mídia, por políticos que discordam do governo, pela ciência, por juízes e por todos aqueles que representariam uma elite que esconde a “verdadeira verdade” (vi esse termo numa rede social bolsonarista). Por meio desse método discursivo, o que importa não é o conteúdo que foi dito, mas quem disse.

Seguindo essa lógica da mentira descarada, bolsonaristas puderam negar o verdadeiro tamanho do número de mortos pela pandemia e, ancorando-se nisso, invadir hospitais para ver se havia mesmo um contingente grande de pacientes. Por essa mesma toada o ex-ministro Pazuello pôde mentir sobre vários fatos vinculados à sua gestão e aparecer como um herói nas redes bolsonaristas. O uso da mentira tem como suporte fontes de informação não oficial e a utilização sistemática de sofismas, como demonstra bem o caso da defesa da cloroquina pelo presidente Bolsonaro e sua trupe. Afinal, se alguns médicos, mesmo sem embasamento científico, defendem o uso desse remédio com fins preventivos contra a covid-19, isso se justifica como argumento contra a comunidade científica e a necessidade de comprovação robusta que a ciência exige. Isto porque, para os bolsonaristas, os acadêmicos e a Organização Mundial da Saúde (OMS) estão a serviço do “establishment” e do globalismo, de modo que o discurso deles é, por definição do sujeito que fala, ilegítimo e falso.

O uso da mentira repetida só consegue ter poder de legitimação política se acompanhada por forte comunicação dirigida ao público mais suscetível à lógica bolsonarista. Trata-se da segunda característica do método das verdades alternativas: utilizar as redes sociais, de forma avassaladora (inclusive com milhares de robôs), para disseminar mitos sobre os fatos e confundir o debate público. Com muita sagacidade política, o bolsonarismo segue a máxima de Chacrinha, um gênio da comunicação de massa, que dizia: “eu não vim aqui para explicar, eu vim para confundir”. Assim, são criadas versões, às vezes estapafúrdias, para rebater todas as críticas recebidas pelo governo, e quando existe um movimento maior na sociedade que discorda da posição governamental, novos assuntos aparecem como os “verdadeiros problemas do país”, para desse modo mudar o eixo do debate público.

A tática de espalhar mitos e confusões pela via das redes sociais, alimentadas cada vez mais por atos públicos comandados pelo presidente Bolsonaro, constitui uma forma eficaz de rebater discursos e fatos divulgados amplamente pela mídia tradicional, gerando argumentos para que os seguidores do bolsonarismo possam defender uma verdade alternativa. Só que, como a mídia continua a criticar o governo, gera-se a necessidade de lançar mão de um terceiro instrumento: nunca admitir a responsabilidade por nenhum problema e, ademais, terceirizar a culpa.

No caso do combate à covid-19, essa foi uma das estratégias dominantes. Conforme este argumento, o governo federal não é responsável por nada e tudo esteve nas mãos de governadores e prefeitos, culpados pelo fechamento da economia e pela corrupção no plano subnacional. Jogar a batata quente para os Estados e municípios é uma forma de se esquecer que o modelo de clientelismo desbragado que orienta o casamento de Bolsonaro com o Centrão é uma das principais alavancas das irregularidades administrativas locais com dinheiro federal.

O repasse da culpa para os outros é o argumento que vai sustentar a defesa do governo na CPI. Perguntado sobre o caos humanitário que aconteceu em Manaus, o ex-ministro Pazuello tentou, com base em mentiras, incriminar os agentes públicos locais pela falta de oxigênio e remédios aos doentes que morreram de forma trágica. Na versão mais grotesca dessa desresponsabilização governamental, está a célebre frase de Bolsonaro sobre o crescimento dos óbitos: “eu não sou coveiro” - aqui, ele estava transferindo a culpa para o vírus, o verdadeiro carrasco do país.

Mesmo evitando ser responsabilizado por qualquer dificuldade ou erro governamental, dados sobre decisões e ações oficiais podem desmontar essa estratégia, como está se vendo no caso do atraso da compra das vacinas. Por isso, é necessário usar um quarto instrumento: aumentar a intransparência sobre as informações do governo Bolsonaro. Vários dados sobre políticas públicas que foram construídos com muita luta nos últimos 30 anos estão sendo agora destruídos. A criação de um orçamento secreto, com cerca de R$ 3 bilhões, é um ato contra a ideia de que o governo democrático deve estar aberto ao controle e escrutínio social. Quanto mais difícil for saber o que efetivamente fizeram o presidente e seus ministros, mais fácil será implementar a lógica das verdades alternativas.

Sobra um último obstáculo contra a estratégia bolsonarista: as instituições incumbidas do controle dos governantes. Por isso, Bolsonaro tem gasto boa parte de seu poder político para enfraquecer a autonomia da burocracia de carreira - como o Ibama ou as Forças Armadas -, o Ministério Público, a Polícia Federal, o Congresso, o TCU e, quem sabe, como principal sonho, o STF. Tem havido resistências e derrotas para o bolsonarismo em algumas dessas frentes, mas não se pode dizer que a democracia esteja funcionando plenamente no seu modo normal, pois os resultados da política ambiental e de saúde revelam claramente como a falta de fiscalização independente colocou o país numa situação trágica de destruição da natureza e de milhares de mortes.

É possível lutar contra lógica das verdades alternativas e evitar a irresponsabilidade como método de governo adotado pelo bolsonarismo? Esse é o desafio que deveria unir todos aqueles que são favoráveis à “accountability” como coração da governança democrática do país.

Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe