Pular para o conteúdo principal

Estratégias das empresas centenárias para sobreviver a pandemias e guerras mundiais

Elas enfrentaram a Gripe Espanhola, duas guerras mundiais, revoluções, a Grande Depressão de 1929, levantes militares, todo tipo de instabilidade econômica do país e, agora, a pandemia de covid-19. E continuam em pé. Empresas com mais de 100 anos de existência buscam na sua longa trajetória subsídios para a tomada de decisões que permitem atravessar de maneira segura mais um período de turbulências, desta vez provocadas pelo coronavírus. Uma das principais armas para a longevidade, segundo executivos de companhias centenárias, é a capacidade de se reinventar ao longo da história para adaptar-se aos novos tempos e a resiliência para atravessar momentos difíceis. “Sabe o que eu digo da empresa? Ela nasceu na esteira da Primeira Guerra Mundial, sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, a meia dúzia de revoluções, uns 15 planos econômicos e vai fazer 100 anos”, diz o presidente da laticínios Aviação, Geraldo Alvarenga Resende Filho, no livro em comemoração ao centenário da empresa, celebrado no ano passado. A marca nasceu na capital paulista, em 1920, mas se consagrou ao mudar a sede para São Sebastião do Paraíso (MG), em 1977, onde está até hoje, escreve Marcus Lopes no Valor, em matéria publicada dia 14/5. Continua abaixo.


“A pior crise enfrentada por uma empresa ao longo da sua história é sempre a atual, pois se sabe como ela começou, mas nunca como terminará”, explica o vice-presidente da Aviação, Roberto Rezende Pimenta Filho, que é bisneto do fundador. Segundo ele, a receita da empresa familiar para atravessar os momentos de incerteza, como o atual, é o conservadorismo estampado até nos rótulos dos produtos como manteiga, queijos e doce de leite: o avião sobre fundo laranja. É uma estampa tão conhecida que remete o escritor Ignácio de Loyola Brandão aos tempos da Segunda Guerra Mundial e da infância em Araraquara (SP), sua terra natal.

“Foi então que dei com uma lata vermelho-alaranjada de não sei quantos quilos de manteiga Aviação, a mais bonita que havia, com aquele avião desenhado”, registrou o escritor no livro comemorativo da empresa. No caso, Loyola conta a história dos meninos araraquarenses que adaptaram latas de manteiga para a construção de lanternas caseiras, alimentadas por vela, com o objetivo de driblar o racionamento de energia elétrica ocorrido durante o período da guerra.

“Sempre crescemos e nos modernizamos, mas somos muito conservadores na tomada de decisões. Preferimos um crescimento gradativo e sólido”, afirma Pimenta Filho. “O bolso do brasileiro está menor. Por isso ele não gosta de errar na hora de comprar um produto e prefere as marcas antigas e nas quais ele confia.”

A Aviação, que hoje tem capacidade total de produzir 600 mil unidades por dia de seus produtos, continua apostando na diversificação para continuar a crescer. Uma delas é o café solúvel, que entrou na linha de produtos há seis anos. “Nossa meta é ser uma empresa que fornece o café da manhã completo do brasileiro”, diz Pimenta Filho.

Um dos momentos mais difíceis para a Aviação foi nos anos 1980, com o tabelamento de preços de produtos no varejo imposto pelo governo federal para tentar driblar a hiperinflação que assolava o país. Naquele período, diretores do laticínio tiveram de ir várias vezes a Brasília para negociar os preços da tabela com a Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab), órgão federal responsável pelo tabelamento de preços dos produtos aos consumidores.

Crises também são momentos de oportunidades e adaptação às necessidades dos clientes. Durante a Gripe Espanhola, em 1917-1918, aumentou muito a procura por atendimento durante a madrugada na farmácia do imigrante italiano João Baptista Raia, em Araraquara (SP).

Solícito, Raia sempre abriu as portas do estabelecimento, fundado em 1905, a qualquer hora da noite para quem precisasse de remédios ou atendimento, já que era comum, naquela época, as pessoas recorrerem ao farmacêutico em caso de doença. Nascia ali o conceito de farmácia 24 horas, que seria implementado décadas depois na rede Droga Raia, atualmente RaiaDrogasil, que possui mais de 2,3 mil lojas em 24 Estados brasileiros.

“Meu avô tinha uma grande vocação para cuidar das pessoas, e esse continua sendo o nosso norte até hoje”, diz o engenheiro Antonio Carlos Pipponzi, presidente do conselho administrativo da RaiaDrogasil. Segundo ele, um dos grandes segredos para a longevidade é manter a calma nos momentos adversos.

“Primeiro é preciso entender com calma o que está acontecendo para depois agir. Essa serenidade é muito importante, inclusive neste momento de pandemia”, diz Pipponzi, lembrando que o segmento em que atua é muito resiliente, já que as pessoas, mesmo com todas as dificuldades externas, não podem deixar de comprar duas coisas em momentos de crise: comida e remédios. “Essa resiliência fez que com que a empresa suportasse todas as oscilações, década após década.”

Serenidade também é a palavra de ordem na Granado Pharmácias, fundada em 1870 e que já enfrentou as mais diversas crises nacionais e mundiais ao longo de sua história. “Em momentos como este, é necessário não entrar em pânico e pensar em alternativas rápidas e se adaptar ao momento para conseguir manter o negócio”, explica a diretora de marketing e vendas da Granado Phebo, Sissi Freeman.

Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, diante da escassez de matéria-prima, rapidamente a Granado substituiu as embalagens de metal do tradicional polvilho antisséptico, que era o principal produto da empresa de cosméticos, por embalagens de papelão. Na atual pandemia, desenvolveu novos produtos para ampliar e adequar o portfólio ao momento em que vivemos, como o álcool 70% em gel e líquido.

Com as pessoas ficando mais em casa por causa da pandemia e o comércio físico com sérias restrições de funcionamento, o comércio eletrônico da Granado também foi turbinado, com crescimento de 700% nas vendas no último ano. “O que faz uma empresa centenária é conseguir se reinventar sem perder a sua essência de qualidade”, diz Sissi, que é filha do presidente da Granado Phebo, Christopher Freeman (1921-2010).

Outra centenária que se adaptou rapidamente aos tempos atuais foi a Lupo, fábrica de meias fundada em 1921, no interior de São Paulo. No ano passado, a linha de produção da empresa começou a fabricar máscaras de proteção facial contra o coronavírus.

 

Sissi Freeman, da Granado: empresa tem de conseguir se reinventar — Foto: Divulgação

“Adaptamos nossa fábrica para passar a produzir as máscaras, o que nunca tínhamos pensado em produzir antes. É um dos grandes exemplos de superação, e as máscaras são, hoje, um dos produtos mais vendidos da Lupo”, explica Liliana Aufiero, diretora-presidente da Lupo e neta do fundador da marca, Henrique Lupo (1877-1963). Segundo Liliana, a administração definiu que as máscaras, pelo caráter social e de emergência, deveriam ter uma margem mínima de lucro, para serem mais acessíveis à população.

Buscar referências históricas e medidas tomadas no passado pode ser a chave do sucesso para desafios em tempos atuais. Daí a importância de uma empresa preservar a sua memória. Mais do que um patrimônio cultural, a memória corporativa pode ser um ativo administrativo importante da corporação, em especial as mais antigas.

“A palavra inovação é muito ligada a ações destinadas ao futuro. Mas é importante recorrer às inovações que ocorreram no passado de uma empresa para aumentar a capacidade de reação positiva no presente”, explica a museóloga Maria Ignez Mantovani Franco, diretora da Expomus, empresa de assessoria que desenvolve projetos de memória institucional para empresas e instituições públicas, incluindo museus, exposições e projetos editoriais.

“A história de uma empresa a fortalece, fornece estrutura e lastro para o horizonte futuro. Olhando para o passado se enxerga como os momentos difíceis foram atravessados naquele momento e orientam como superar o atual”, diz Maria Ignez. “Ou seja, a memória não é ligada apenas ao saudosismo. A memória institucional é ativa e propositiva para ajudar nas estratégias para o futuro”, acrescenta.

Integrante da quinta geração de fundadores da SulAmérica, Patrick Larragoiti Lucas, presidente do conselho, afirma que um dos lastros da seguradora, fundada em 1895, no Rio de Janeiro, é justamente a inovação constante aplicada pela companhia ao longo das décadas. “Uma das características mais importantes de uma empresa longeva é ter quebrado paradigmas ao longo da sua história e ser inovadora sempre.”

Ele lembra que a inovação e a diversificação foram fatores importantes para o crescimento da empresa desde o fim do século XIX. A seguradora nasceu oferecendo seguros de vida às pessoas em um período em que o país era assolado por doenças como a febre amarela e, posteriormente, a Gripe Espanhola.

“Começar uma empresa oferecendo seguros de vida justamente nessa época não deve ter sido nada fácil”, diz Larragoiti Lucas. A seguradora tem cerca de 4 mil funcionários e fechou 2020 com R$ 45,9 bilhões de ativos sob sua gestão. No fim da década de 1920, já começou a diversificação de seus negócios oferecendo outros tipos de apólices, como seguros para automóveis, que ainda não eram tão comuns circulando nas ruas brasileiras.

Para o economista e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Josilmar Cordenonssi, a tradição das marcas é algo importante, mas a empresa que pretende atravessar séculos de existência deve saber dar guinadas necessárias em momentos difíceis, principalmente aquelas que pertencem a setores que passam por muitas transformações.

“Em alguns momentos cruciais, a empresa tem de tomar medidas duras e se reinventar, até por uma questão de sobrevivência”, explica Cordenonssi, que cita exemplos de gigantes do passado que não resistiram às mudanças impostas pela modernidade, como a Kodak, que faliu em 2012. “O apego à tecnologia antiga foi muito ruim para a empresa”, diz Cordenonssi.

Na outra ponta, como exemplo bem-sucedido de empresa tradicional, Cordenonssi cita a rede de varejo Magazine Luiza, que nos últimos anos investiu fortemente no comércio eletrônico. Entre 2011 e 2019, os papéis da empresa se valorizaram mais de 1.000% na bolsa de valores. “Essa valorização ocorreu pela capacidade da empresa em desenvolver ideias mais alinhadas aos cenários atuais”, diz.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe