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  Bolsonarismo é inimigo da educação

Um dos principais pilares do governo Bolsonaro é a destruição das estruturas educacionais do país. O MEC é o epicentro desse processo. Desde a redemocratização, nunca suas políticas foram tão irrelevantes, o seu orçamento tem se reduzido nestes dois anos e meio de mandato e os recursos existentes não são gastos. A completa ausência do governo federal em meio à pandemia aumentou a desigualdade educacional e milhões de alunos pobres brasileiros terão negado o seu direito ao aprendizado. Agora o alvo da vez é o INEP, principal responsável pelas provas e indicadores nacionais, que passa por uma operação de desmonte. Mas por que o bolsonarismo quer destruir a educação? Quais os efeitos disso para o desenvolvimento brasileiro? Três razões explicam a visão e a estratégia bolsonarista em relação à educação. A primeira é que o governo Bolsonaro prioriza a guerra cultural em detrimento das políticas públicas. Ou seja, o mais importante é defender um conjunto de valores, mais do que se preocupar com a garantia dos direitos e a qualidade dos serviços públicos. Além disso, como segundo fator, os atores educacionais são considerados inimigos fundamentais na batalha do bolsonarismo para conquistar e manter o poder, não só no plano político imediato, mas na busca da hegemonia social. Por fim, o enfraquecimento da política educacional significa reduzir informação, reflexão e debate, algo essencial para um presidente que busca reduzir ao máximo o controle sobre seu poder, escreve Fernando Abrucio no Valor, em artigo publicado dia 14/5. Continua a seguir.


A predominância da guerra cultural como norteador do modelo bolsonarista de governo tem sido apontada por vários estudiosos, com destaque para o trabalho de João Cezar Rocha. Trata-se, na verdade, de um formato que se espalha internacionalmente entre os grupos populistas de extrema direita. No fundo, o embate dos valores ganha proeminência sobre a gestão das políticas públicas. O bolsonarismo ignora os consensos técnicos em cada setor e as evidências científicas, além de evitar o diálogo com os especialistas, quando não os confronta ou até os persegue.

Recém-lançado, o livro “Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política”, organizado por Leonardo Avritzer, Fábio Kerche e Marjorie Marona (Editora Autêntica), mostra como o bolsonarismo está desmontando todo o aparato de políticas públicas que o Brasil construiu por pelo menos 30 anos, o que ampliou o acesso a direitos e produziu resultados muito importantes em vários setores, mesmo que ainda haja a necessidade de aperfeiçoamento da gestão pública brasileira. Só que a prioridade dada à lógica da guerra cultural pelo governo Bolsonaro impossibilita continuar o processo de melhoria da efetividade, eficiência e equidade das ações estatais.

O exemplo educacional é paradigmático da forma como funciona o bolsonarismo em relação às políticas públicas, como notei no capítulo que escrevi para o livro sobre governo Bolsonaro citado acima. O modelo adotado foi o de destruir e desfazer o que havia, sem se importar muito com o que colocar no lugar em termos técnicos e de estruturação de programas. Slogans sem amparo nos estudos ou na experiência internacional ganharam força e profissionais com pouquíssimo conhecimento sobre o assunto - quando o conheciam - foram escalados para os principais postos do MEC. Para piorar, esse exército de amadores têm brigado constantemente, quase sempre para ver quem agrada mais ao guru intelectual - Olavo de Carvalho -, ao presidente da República e, agora, a interesses de certas igrejas.

Por ora, a maioria das propostas do MEC bolsonarista, geralmente sem pé nem cabeça, tem sido derrotada no Congresso Nacional e no STF, enquanto outras ações não têm tido muita aderência junto aos governos subnacionais. Além disso, houve vitórias da coalizão educacional no front legislativo, sendo o novo Fundeb a principal delas.

Mas persistem pautas ideológicas vinculadas à guerra cultural que rondam a política educacional. A mais perigosa é a do “homeschooling”, uma forma sorrateira de destruir a escola pública, reduzir ainda mais o status social dos professores e repassar recursos para as igrejas que apoiam o bolsonarismo na sua luta para proteger as famílias do contato com as ideias do mundo moderno.

O “homeschooling” resume bem o projeto de Bolsonaro: em vez de emancipar os cidadãos mais pobres por meio de direitos e políticas efetivas, o objetivo é prendê-los a estruturas arcaicas que os mantêm na posição de eternos subordinados. Enfraquecer a gestão pública e seu arsenal científico é garantir a líderes messiânicos ou populistas o monopólio da verdade. Não há a menor chance de o Brasil e sua população mais carente terem um futuro melhor se o “homeschooling” virar uma política ampla. Essa constatação não sensibilizaria o presidente da República: seu projeto não é de modernização do país, mas sim de manutenção do poder em alianças com grupos cujo objetivo é evitar que nosso relógio da história ande para frente.

Mas a destruição da política educacional não se dá apenas com a apresentação de projetos ideológicos que propõem valores culturais arcaicos e sectários. O modelo bolsonarista precisa sempre de inimigos e o campo educacional é um dos mais visados, uma vez que professores, pesquisadores, gestores educacionais, alunos de universidade e até de ensino médio geralmente pensam de forma independente. Não se pode esquecer que a primeira grande manifestação contra o governo Bolsonaro foi em defesa da educação, em maio de 2019.

A luta contra os atores da educação, enfraquecendo ou destruindo as estruturas educacionais, envolve duas dimensões temporais. De um lado, é preciso sucatear universidades, não apoiar as redes de ensino subnacionais e brigar com especialistas e professores para evitar que a coalizão educacional tenha influência no presente, como adversários imediatos do governo. Mas, por outro lado, há um projeto claro e mais amplo, que vem desde a proposta da “escola sem partido”, de destruir qualquer espaço que possa gerar mentes independentes, algo que, segundo essa visão, é a origem de todos os males recentes do país desde a redemocratização. O bolsonarismo tem um propósito anti-iluminista, de defesa da tradição, tal qual interpretada pelos aliados políticos e religiosos do presidente Bolsonaro.

Em outras palavras, no mundo defendido por Bolsonaro não há lugar para profissionais como os da educação, que atrapalham o seu projeto político e destoam de sua visão de sociedade. Como defendeu o grande pensador e educador americano John Dewey, o processo educacional é uma escola de democracia, de debate plural, tolerante e crítico das ideias. O bolsonarismo deseja o oposto disso: o povo deve ser livre para fazer o que quiser, contanto que siga o líder.

Como último risco ao bolsonarismo, a educação pode ser uma fonte importante de processos de “accountability” social e político, pois seus estudos geram informação, sua prática cotidiana é norteada pela reflexão e pelo debate, podendo mobilizar pessoas e instituições a controlar mais os governantes. E inegavelmente o presidente Bolsonaro e seu séquito sabem bem o valor que a informação tem na sociedade contemporânea, dado que desde as eleições esse grupo tem sido pródigo em produzir “fake news”, contrapondo-se rapidamente e em larga escala a tudo que é dito contra eles. Tal preocupação tem se mantido na atuação governamental, com a luta informacional que tem havido no meio ambiente, por conta da degradação da Amazônia, na saúde, por causa da contabilidade de casos mortes por covid-19, bem como no desmonte do IBGE, cujo símbolo máximo foi a inviabilização do Censo demográfico.

Governos que almejam a autocracia não gostam das pressões geradas pelos dados produzidos por pesquisadores e professores. Assim ocorre na Hungria, na Venezuela, na Turquia, na Polônia e na Rússia. O sonho de Bolsonaro é trilhar este caminho de corroer a democracia por dentro dela. Para tanto, é preciso reduzir ou desgastar paulatinamente os controles. É sempre mais difícil ou pelo menos mais ruidoso mexer logo de cara com a Suprema Corte ou com o Congresso Nacional, mas tirar a autonomia da educação é menos visível para o cidadão comum e mesmo para a imprensa. E isso gera um efeito subterrâneo e de longo prazo.

Afinal, menos educação pode significar mais gente acreditando na cura milagrosa da cloroquina, na guerra química produzida pela China por meio do vírus da covid-19, na existência de hospitais vazios em meio à pandemia, na fraude com o voto eletrônico e no desenvolvimento econômico que não respeita o meio ambiente, como o garimpo ilegal e o turismo predatório. Se não houver espaços de produção de informação, debate e reflexão como as escolas e a universidade, o trabalho do bolsonarismo de vender a falsa ilusão de um mundo feliz com mais armas e “famílias normais” fica facilitado.

Quatro anos destruindo a educação resultará num custo alto ao Brasil, pois os efeitos das ações educacionais demandam anos para serem semeados. Seguindo nesta toada, teremos mais desigualdade, menos capital humano qualificado e cidadãos menos preparados para o controle democrático dos governantes. A necropolítica bolsonarista não é responsável apenas pela inépcia que está matando milhares de brasileiros por covid-19. Bolsonaro quer matar a educação para colher no futuro um país atrasado e subserviente.

Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente



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