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Para ex-secretário do Tesouro dos EUA, esta será a pior crise desde a Segunda Guerra

Desemprego será maior do que na crise financeira de 2008 e 2009, diz Summers em entrevista o Valor Econômico, publicada dia 22/05 no jornal. Vale a leitura.

O ex-secretário de Tesouro dos Estados Unidos e professor emérito de Harvard Larry Summers concedeu entrevista ao Valor, por telefone. Leia os principais trechos a seguir:
Valor: O preço do sucesso na contenção da propagação do novo coronavírus é a desaceleração da atividade econômica. Alguns líderes, como o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, dizem que devemos sacrificar vidas para salvar a economia. Como o senhor vê essa questão?
Larry Summers: A estratégia, por assim dizer, de sacrificar vidas para salvar a economia, no fim das contas não vai salvar nem uma, nem outra. São considerações morais completamente distintas. A verdade é que a principal razão pela qual as pessoas ficam em casa não são as regras criadas pelos governos, e sim o medo de se exporem à doença ou de contaminar outros. Por exemplo, se olharmos a Suécia e a Dinamarca, veremos que a queda nos gastos com consumo foi quase igual na Suécia, onde não houve restrições. Na Dinamarca houve enormes restrições. Ou podemos observar a experiência dos Estados Unidos, onde as pessoas começaram a evitar lojas e grandes aglomerações e a ficar em casa antes que o governo decretasse essas medidas
Valor: Uma reabertura rápida não resolve a questão, portanto?
Summers: Antes de mais nada é preciso dizer que uma reabertura mais rápida, na verdade, não resolve o problema principal, que é o medo que as pessoas têm da doença. Em segundo lugar, se você tem uma epidemia mais forte e faz menos para conter e controlar a epidemia no início, você terá um período mais longo de risco substancial à população, portanto o prejuízo econômico será maior. A ideia de que existe uma espécie de estratégia que sacrifica os valores da saúde, mas preserva os valores econômico é improvável.
Valor: Como deve ser o processo de abertura da economia?
Summers: É preciso ser mensurado. Tem que ter havido uma redução significativa do número de pacientes na região em questão, durante um intervalo de tempo significativo. Por exemplo, duas semanas. Acho que o nível de pacientes inicialmente prevalente tem de ser relativamente baixo. Tem de haver uma capacidade claramente demonstrada de monitorar os fatos e testagem aleatória da população. Tem de haver uma forma de detecção de casos da doença e de colocar essas pessoas em quarentena de modo eficaz e de rastrear com quem essas pessoas tiveram contato. Caso esses requisitos sejam atendidos, uma clara redução para um número relativamente baixo de casos, medições da população para prever tendências futuras, capacidade de testagem substancial e rastreamento dos contatos substancial, acho que podemos, em grande medida, voltar à normalidade, contanto que haja regras de bom senso quanto a evitar grandes aglomerações, além do uso de máscaras em locais públicos onde a proximidade entre as pessoas é inevitável.
Valor: Essas medidas seriam suficientes para uma volta com segurança?
Summers: Em um contexto como esse, é possível iniciar ou prosseguir com um processo de reabertura econômica, mas acho bem perigoso tentar fazer isso antes da hora. Tive uma lesão bem grave nas pernas há mais ou menos um ano, rompi os tendões das duas pernas e tive de usar aparelhos que mantinham meus joelhos completamente retos, o que me causou muita frustração e desconforto. E eu sempre dizia: “Quero tirar o aparelho!”. E o médico dizia: “Se você tirar os aparelhos, vai lesionar os tendões de novo e vai ter de recomeçar todo o processo”. Se você fizer direito, só precisa fazer uma vez. O mesmo vale para a saída dessa pandemia: se tentarmos fazer antes da hora, no fim vai demorar mais.
Antes do fim da crise, a taxa de desemprego nos EUA chegará perto de 20%, e acho que esta será a maior crise econômica global desde a Segunda Guerra"
Valor: Quais as suas expectativas com relação à recuperação dos Estados Unidos e também da economia mundial?
Summers: Não há muita dúvida de que essa será a maior crise econômica desde a Segunda Guerra Mundial. Acredito que antes do fim da crise, a taxa de desemprego nos EUA chegará perto de 20%, e acho que esta será a maior crise econômica global desde a Segunda Guerra. A economia estará em queda devido ao pós-choque. Haverá demissões em quantidades significativas nos próximos meses, à medida que as empresas utilizam suas reservas de caixa. O que não está claro é qual será a velocidade de recuperação. Acredito que inicialmente a recuperação será bem rápida. Penso que tem muita gente que ficou sem trabalho, mas que vai poder voltar ao trabalho quando isso for possível. Mas acho que isso não será suficiente para que a taxa de desemprego volte a um patamar satisfatório. Penso que o desemprego ainda será maior do que na crise financeira de 2008 e 2009. Em linhas gerais, a taxa de desemprego será de dois dígitos, mas não muito alta, e no fim de 2021 poderá ficar entre 9% e 10%. Pode até ser que consigamos erradicar ou, pelo menos, controlar o vírus a ponto de podermos conviver com ele antes do previsto, mas não acredito que isso vá acontecer.
Valor: Alguns economistas, como o ex-economista-chefe do FMI Maurice Obstfeld, afirmam que a economia do Brasil poderá ser mais afetada do que a de outros países em razão da atitude de Jair Bolsonaro com relação às medidas de contenção. O FMI prevê uma queda de 5% no PIB brasileiro neste ano. Esse número pode ser ainda pior devido à resposta de Bolsonaro?
Summers: Sem dúvida acho que se o problema fosse encarado com mais seriedade, minimizá-lo com informações falsas, comparando-o a uma gripe, não me parece servir aos objetivos políticos, aos objetivos de ninguém. Isso prejudica a credibilidade das pessoas que assumem essa posição, e a credibilidade de um líder nacional é um fator muito importante para um país. É provável que isso incentive as pessoas a correr riscos imprudentes, e caso isso leve a mais casos, consumirá recursos que de outro modo poderiam ter sido investidos em crescimento econômico, então eu ficaria bem preocupado.
Valor: Como o senhor vê as medidas dos bancos centrais para conter a crise? Jerome Powell, presidente do Federal Reserve, já disse que talvez o banco central americano tenha de adotar medidas adicionais. Há margem de manobra para lidar com a situação?
Summers: Acho que cabia aos bancos centrais agir de forma muito decisiva e ousada diante de uma crise desse tipo. Caso contrário teria havido um risco além de tudo do que está ocorrendo. Teria havido um dano enorme à superestrutura financeira. Logo, sou favorável a tudo o que os bancos centrais fizeram. Dito isso, me preocupa o alto grau de envolvimento dos bancos centrais nas economias, e me preocupam as implicações futuras disso. Em linhas gerais, é preciso agir muito energicamente diante de uma emergência, mas se todos passarem a contar com a possibilidade de ajuda dos bancos centrais em vez da rentabilidade fundamental para segurar os preços dos ativos, poderá haver um problema bem sério mais adiante.
Valor: O economista Paul Krugman disse que as políticas monetárias do Brasil e alguns outros países latino-americanos poderão perder tração em breve com as taxas de juros chegando perto de zero, o que já ocorreu com os Estados Unidos e a União Europeia. Como o senhor vê esse problema?
Summers: Nós teremos de depender mais da política fiscal e menos da política monetária de agora em diante. É quase inevitável, em parte porque as taxas de juros estão próximas ou abaixo de zero. Uma parcela muito menor do PIB é oriunda de produtos cuja compra pode ser adiada ou antecipada ao longo do tempo. E, na impossibilidade de adiar ou antecipar essas compras, o impacto de mudanças na taxa de juros nos níveis de investimento será apenas relativo, logo a política monetária terá menos efeito do que normalmente teria. A estabilização macroeconômica em nível mundial, em termos gerais, terá de se basear mais na política fiscal e menos na política monetária.
Valor: De que forma o senhor acha que as economias emergentes, e a do Brasil em particular, poderão absorver a quantidade de dinheiro necessária para proteger seus cidadãos e suas economias?
Summers: Será especialmente difícil para países como o Brasil, que tradicionalmente têm problemas, dívidas em moeda estrangeira, e que têm um histórico complicado em termos de inflação. O desafio macroeconômico será muito substancial em países como o Brasil. Estou decepcionado em não ver uma reação mais enfática do sistema global em termos de ajuda ao Brasil, com alocação de SDR [direitos especiais de saque] e perdão da dívida, o que eu suspeito que será necessário em algum momento.
Valor: Como deve ser esse auxílio do sistema global aos emergentes?
Summers: Precisamos incrementar a capacidade de concessão de empréstimos das instituições financeiras internacionais tradicionais, FMI, Banco Mundial, Banco de Desenvolvimento Interamericano, em um primeiro momento. Em segundo lugar, temos de garantir uma alocação substancial de SDR. Isso permitirá o aumento da liquidez em países que precisem suavizar suas despesas neste período. Em terceiro lugar, penso que vamos precisar de uma base para negociação com uma ampla gama de credores. Em particular, precisamos assegurar que o setor privado fará sua parte enquanto grande credor de diversos países.
Valor: Na crise de 2008, o afrouxamento monetário (“quantitative easing”) não trouxe inflação nos Estados Unidos. O senhor acredita que agora haverá inflação?
Summers: Certamente, acredito que, dado o legado da dívida que foi assumida, é mais provável que haja inflação. Por outro lado, não acho que seja inevitável, dado o nível baixíssimo das taxas reais de juros e dada o substancial aumento da incerteza, que tende a reduzir a propensão ao investimento. Diria que estou mais preocupado com a inflação do que normalmente estaria, mas ainda não posso prever com certeza que haverá inflação significativa.
Valor: O senhor ajudou os Estados Unidos a atravessarem várias crises econômicas no passado. Como este choque se compara aos anteriores?
Summers: Esta crise decorre de um fenômeno natural, e não de política local equivocada. No passado, as crises na América Latina em geral tiveram como causa fundamental políticas equivocadas dentro da própria América Latina, que por sua vez tiveram como causa a política econômica. Acho que isto não se aplica à crise atual. Alguns países estão se saindo melhor, outros estão se saindo pior, mas o evento definidor, neste caso, é a pandemia. Por isso, acho que uma resposta mais global, e mais generosamente global, é mais apropriada nesta crise do que em crises passadas. Mas, como você sabe, não há como ajudar quem não ajuda a si mesmo. Assim, ajustes dolorosos terão de ser feitos em países importantes da América Latina.
Valor: Como será a resposta dos americanos à crise nas próximas eleições?
Summers: A maioria dos analistas diria que a eleição do ex-vice-presidente Biden é mais provável do que a reeleição do presidente Trump. Dados históricos sugerem que, certo ou errado, o eleitorado reage a mudanças na economia, e decerto a economia terá piorado bastante nos nove meses anteriores à eleição de novembro. E acho que não se pode afirmar em termos objetivos que o presidente e seu governo tenham feito um bom trabalho de contenção desta crise.
Valor: O senhor já afirmou que uma nova Guerra Fria entre Estados Unidos e China o preocupa. Por quê?
Summers: Porque acho que um acontecimento que poderia ter unido os dois países acabou causando mais rivalidade, tensão e conflito. E acho que para fortalecer sua posição em ambos os países, atores políticos locais se valeram de argumentos nacionalistas e tentaram culpar o outro país pelos problemas, e esse tipo de coisa pode se tornar uma profecia que se retroalimenta.
Valor: O senhor acha que a crise terá um efeito mais transitório sobre a globalização, ou será estrutural?
Summers: Acho que provavelmente já passamos do auge dos esforços pela integração global, e penso que de agora em diante o foco vai passar da integração global à cooperação global.



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